A crônica lírico-social do subúrbio carioca 

16/08/2023

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No princípio era o verbo.  

Não. Naquelas noites de 1978, no palco escuro do então Sesc Vila Nova, hoje Sesc Consolação, no princípio eram só sons inarticulados, como no caos de qualquer origem, de que aos poucos foram se formando padrões rítmicos, com batuques percutindo o couro dos animais e gritos se inserindo na linguagem musical, já como parte dela. Era o princípio do show de João Bosco.  

O longo ritual iniciador e iniciático não deixa de narrar, de início sem uma palavra sequer, à base apenas de batuques afrobrasileiros, a gênese da linguagem humana (que, segundo o estado da arte da ciência contemporânea, teria nascido na África subsaariana, há mais de 100 mil anos), se formando aos poucos por meio de gritos, interjeições e, em seguida, protofrases, cujo sentido ainda desconhecemos.  

Mas o que se está contando é, ao mesmo tempo e sobretudo, a gênese de um processo biossociocultural, que é a própria formação do Brasil.  A perspectiva aqui é a de um Brasil profundamente africanizado, gestado no batuque dos negros escravizados, no sangue afrotupi, na barbárie e na liberdade bárbara do período colonial.  Os seis ou sete minutos de batucada narram tudo isso, essa espécie de parto a fórceps de uma comunidade que “nasceu foi no sufoco” – é o que ouvimos, quando emerge finalmente a língua portuguesa, essa última flor do Lácio, ou melhor, esse broto africano, flor de Luanda, de substrato tupi, como a chamou Caetano Galindo.  

O Velho Testamento é assim traduzido para a realidade da formação brasileira, com o parto originário se dando na presença de uma “vaca, um burro e um louco”, no meio do “barro, ao invés de incenso e mirra”, e tendo sido o “cortão cortado com gilete”. No presépio brasileiro, manjedoura é chapa quente, e quando nasce o menino (o menino Brasil) alguém saca o berro, mete faca, um partideiro puxa samba e Oxum vaticina: esse aí promete. É assim que esse Relicário abre as cortinas do passado, do então presente e do futuro brasileiro. Querela, no lugar de aquarela. 

Relicário, nesse contexto, não é apenas um lugar – o teatro, o show – em que se guardam e apresentam uma série de relíquias, as canções. A dimensão religiosa da palavra (as relíquias costumavam ser imagens de santos) se articula com essa gênese subvertida – nada de reis magos: vaca, burro e louco – que prefigura um sentimento corrosivo e terno, e adquire assim um tom irônico e amoroso, tom que marca boa parte da obra de João Bosco e Aldir Blanc (nesse show dirigido por Paulo Emílio, parceiro de ambos em algumas importantes canções). 

Nessa abertura extraordinária, de quase oito minutos, somos apresentados à cosmogonia da parceria que narrou a experiência brasileira durante os anos de chumbo com uma riqueza e uma dureza raramente comparáveis.  Estamos em 1978, no período da diástole, para usar a metáfora cardíaca de descompressão do general Golbery, o ideólogo-mor do regime. A lei da Anistia seria promulgada no ano seguinte. Já se completavam quase quinze anos de ditadura, mas apenas sete anos desde a estreia fonográfica da parceria Bosco/Blanc, no 78 rpm da coleção de bolso do Pasquim, com a canção “Agnus sei” (que, como em “Gênesis”, também virava o cristianismo de cabeça para baixo). Do outro lado do compacto, um já consagrado Tom Jobim apresentava nada menos que “Águas de março” e legitimava a dupla mineiro-carioca – ou, mais exatamente, pontenovense-tijucana. 

O primeiro LP da dupla sairia no ano seguinte. João Bosco, com retrato do compositor feito pelo pintor Carlos Scliar, mostra a formação de uma obra já muito potente desde a saída, mas ainda um pouco indecisa frente a tantas possibilidades. O disco é uma estreia brilhante e tem quase todos os elementos que consolidariam a cara da parceria: o retrato social das classes populares (“Fatalidade: balconista teve morte instantânea”,”Tristeza de uma embolada”), a atitude combativa, de galos de briga da cultura, diante do capitalismo superficial de consumo (“Tristeza de uma embolada”, “Nada a desculpar”), a cabeça e a caneta de nego (“Quilombo”), o samba invocado (“Bala com bala”), a herança barroca das Minas Gerais (“Angra”), o violão excepcional, da perspectiva rítmica como da harmônica, as melodias densas porém cativantes, as letras igualmente densas, porém a serviço do ritmo, das melodias, a um tempo ultrapassando a música e permanecendo fiéis ao objetivo do todo-canção.  

Todos esses traços, e alguns outros mais, viriam a se definir perfeitamente já a partir do álbum seguinte, Caça à raposa, uma coleção de hits e obras-primas que fez grande sucesso de público e crítica. Caça à raposa traz desde o breve épico cubista (para escapar a censura?) da canção homônima, feita de versos estilhaçados sob melodia comovente, até o samba ligeiro e magistral “Kid Cavaquinho”, de breque e refrão irresistíveis. Passando por alguns daqueles sambas absolutamente perfeitos, como “De frente pro crime” e “O mestre-sala dos mares”, e ainda por um samba igualmente perfeito, “Escadas da Penha”, mas em fatura formal muito arrojada, com um compasso seis por oito inserido no meio da peleja, e uma troca da ordem das palavras nos versos (como o fizera Chico Buarque em “Construção”).  

Galos de briga, em seguida, consolida a obra (ainda mais hits, ainda mais joias), de entrada portanto fulminante no cancioneiro nacional. O álbum abre com “Miss Sueter”, bolero lindíssimo, com uma dessas letras de Aldir que se situam num ponto desconcertante entre a ironia e a sinceridade, a paródia e a ternura (eu, particularmente, conhecendo o autor, tenho certeza de que a atitude cultural e humana ali é, no fundo, profundamente amorosa). Apresenta mais dois sambas absolutamente perfeitos, “Ronco da cuíca” e “Incompatibilidade de gênios”, uma marcha-rancho contagiante, “O rancho da goiabada”, que narra a inversão de papéis do carnaval, quando os boias-frias se transformam em “palhaços, marcianos, canibais, lírios pirados” – além de outras joias, como “O cavaleiro e os moinhos” e “Transversal do tempo”. 

O próximo álbum, Tiro de misericórdia, já é lançado em meio a um processo de desgaste pessoal dos parceiros, que João Bosco aliás aborda com franqueza em entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo, por ocasião da estreia do show no Sesc em 1978: “O trabalho que realizamos em nove anos definiu uma linha de conduta, uma visão crítica da realidade que não vai ser abandonada”. Com efeito, o disco seguinte, Linha de passe, apresentaria diversas canções com Aldir, entre elas o excepcional samba homônimo, o ferino partido-alto “Boca de sapo” e o hino da abertura, “O bêbado e a equilibrista”. O propalado afastamento pessoal da dupla portanto em nada comprometeu a qualidade das canções, nos anos seguintes em que o trabalho ainda prosseguiu e/ou um já precioso baú veio a público.  Em Tiro de misericórdia, destaque para a canção-título, uma espécie de Bildungsroman da periferia do capitalismo, de romance de formação de um jovem negro favelado no Rio de Janeiro, com direito a religiosidade de matriz africana, revolucionários de todas as estirpes – e um corpo negro “barbarizado com mais de cem tiros”. Tudo isso vazado numa levada de violão com a marca da indefectível mão direita de João Bosco, terror e glória dos violonistas amadores – e profissionais. 

Relicário extrai suas relíquias desse conjunto então ainda breve (um compacto e quatro LPs), porém excepcional, de canções. Muitas das canções que comentei aqui, representando diversas facetas da dupla Bosco/Blanc, estão presentes no show. Paulo Emilio, o diretor, declarou em entrevista à época ter estruturado o espetáculo em quatro eixos: infância, descoberta da vida, crônica social e “síntese de tudo”. 45 anos depois, considero que essa divisão perde um pouco a nitidez, uma vez que ouvimos o conjunto inevitavelmente com muitas outras informações no pano de fundo da cabeça. Prevalece, a meu ver, um grande afresco da experiência brasileira naquele período contraditório, de aprofundamento estético e regressão das utopias sociais dos anos 60.  

Um afresco em que se pode ver tanto personagens das classes populares em meio à violência urbana (“De frente pro crime”, “Tiro de misericórdia”), ao explícito estado de exceção da ditadura (“Caça à raposa”), e à pobreza econômica, “onde tantos iguais se reúnem contando mentiras pra poder suportar”. Mas em que se pode ver também as dores e as delícias da subjetividade, sobretudo a suburbana (não tem Ipanema nesse universo): o esquecido começo inesquecível, os cometas percorrendo o céu da boca, a alma de artista e os tremores nas mãos, o “teu perfume gardênia”, o uísque com guaraná. Referências e reverências ao modo de viver do outro lado do túnel Rebouças, com que Bosco e Blanc se conectam, após a experiência carioca litorânea e cosmopolita da bossa nova; o pessimismo pop, brasileiro e global do tropicalismo, e a contracultura cigana, com toques de Beatles e o dedo de Deus no repertório de Milton Nascimento e o Clube da Esquina. 

Nesse período de ouro da canção popular (tão rico quanto o dos anos 30/40), Bosco e Blanc articulam tanto a herança do samba do Estácio (e, antes dele, suas matrizes propriamente africanas) quanto sua modernização por João Gilberto – mas deslocam o rumo da prosa para a crônica lírico-social do subúrbio carioca. O violão de João Bosco vem de Dilermando, Garoto, Caymmi, João Gilberto e Baden Powell – e vai para além deles, em caminho próprio. O senso rítmico vem do mundo africano e do bolero hispano-americano. A alma é impregnada de barroco mineiro e de ressonâncias luso-árabes. Já Aldir é capaz de conciliar a tradição da crônica social – retrato, humor e lirismo – com uma fatura formal digna das experiências mais avançadas do alto modernismo.  Vanguarda e subúrbio. Excelência formal e retrato expressivo do modo de ser do povo periférico. 

Não por acaso é “Tiro de misericórdia” a canção que fecha esse Relicário profano, que começara com uma presepada e termina com uma execução. Em apenas nove anos de parceria e sete anos de obra pública, Bosco e Blanc haviam composto um grandioso afresco da vida brasileira sob os coturnos dos generais. Cantaram as múltiplas formas da religiosidade popular; a alegria brotando como flor do asfalto de frente pro crime; os personagens da contra-história política, como o navegante negro, mestre-sala dos mares, almirante João Cândido; o amor suburbano, vazado em uma mistura de lirismo e autoironia que talvez seja única dessa dupla; e muito mais. Tudo isso em fatura formal de alta inventividade, alta complexidade quase miraculosamente conciliada com simplicidade – o que, de resto segue sendo talvez a melhor definição da grande tradição da canção popular brasileira. 

Francisco Bosco é ensaísta, doutor em Teoria da Literatura, letrista de música popular e atualmente participa do programa Papo de segunda (GNT). Fundou e coordenou a rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles.


Sobre Relicário: João Bosco (Ao vivo no Sesc 1978), leia também:


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