Sesc SP

postado em 02/03/2016

Direito à cultura

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Em uma variedade de temas e pontos de vista, Bens culturais e direitos humanos busca delimitar com mais precisão o que são esses bens e como se exerce o direito a eles

 

A obra Bens culturais e direitos humanos consiste numa coletânea de artigos oriundos de um seminário realizado no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. As organizadoras Inês Virgínia Prado Soares e Sandra Cureau, que também assinam um artigo cada uma, aliam ao seu trabalho como procuradoras da República a reflexão acadêmica e a experiência de pesquisa em arqueologia e meio ambiente, respectivamente.

A proposta da coletânea é estudar a conexão entre bens culturais e direitos humanos numa variedade de temáticas e pontos de vista (jurídico, histórico, sociológico, antropológico). Tal conexão importa porque, como se afirma no prefácio, “os direitos culturais têm sido negligenciados no campo dos direitos humanos”, apesar de incluídos em documentos internacionais desde a pioneira Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Um dos motivos para essa negligência é a imprecisão da definição de direitos culturais, falha que a obra busca dirimir.

Os 21 textos do livro distribuem-se em quatro partes. Os 24 autores e autoras, baseados em nove estados brasileiros, provêm de horizontes profissionais diversos, que abarcam as ciências humanas (filosofia, sociologia, antropologia), as humanidades aplicadas (arqueologia, arquitetura) e as profissões jurídicas (promotoria, procuradoria, advocacia). Todos possuem ampla experiência acadêmica e docente no Brasil e no exterior, e muitos atuam igualmente como consultores de associações de classe, institutos de pesquisa e organizações internacionais (ONU, OEA). Um intercâmbio profícuo com autores argentinos enriquece a variedade de abordagens.

A primeira parte, intitulada “Dimensões dos bens culturais”, contém artigos que procuram definir a natureza e o alcance dos direitos culturais, recorrendo à normativa jurídica e à teoria social e cultural. Os direitos culturais não podem ser enumerados numa lista exaustiva, pois sua definição é tão dinâmica quanto a sociedade e a cultura. No entanto, tais direitos estão sempre ligados a deveres culturais, de responsabilidade de diversos atores sociais, incluindo o Estado, cujo papel compreende a oferta de bens culturais e de estímulos positivos e negativos ao exercício dos direitos culturais. Por fim, depende precipuamente do Estado a garantia dos direitos culturais por meio do aparato jurídico. São citados diversos exemplos de normas nacionais e internacionais de proteção e promoção dos direitos culturais. Num viés mais prático, debate-se se determinadas manifestações tradicionais (tourada, farra do boi) mereceriam ou não o reconhecimento e proteção como bem cultural, e apresentam-se iniciativas de salvaguarda do patrimônio cultural material.

A segunda parte, “Bens culturais, direitos humanos e patrimônio natural”, enfoca bens culturais específicos, tais como o patrimônio natural e o conhecimento tradicional. Quanto ao primeiro, a criação de parques naturais pode chocar-se com os direitos das populações autóctones residentes na mesma área, o que gera um conflito entre o direito de grupos restritos à manutenção de sua cultura e o direito da população em geral à fruição da natureza. Quanto ao segundo, outro conflito manifesta-se entre a indústria farmacêutica e os detentores de conhecimentos tradicionais quando se trata de transpor os recursos da biodiversidade para o mundo da indústria e da tecnologia. Uma das soluções, nesse caso, passa pelo reconhecimento jurídico da propriedade intelectual dos povos tradicionais sobre seus conhecimentos.

A terceira parte, “Direito à memória e direito à verdade”, versa sobre outro bem específico que é a memória e enfatiza a importância da preservação de vestígios materiais para a investigação da verdade histórica e a reparação das graves violações de direitos humanos cometidas sob governos ditatoriais na segunda metade do século XX. Uma forma de preservação é a criação de espaços de memória, que agregam lembranças pessoais e de gerações anteriores. A memória compartilhada por uma coletividade impede o esquecimento de fatos históricos e permite que grupos oprimidos participem da construção da história. A arqueologia, por sua vez, pode desempenhar um papel de resistência à repressão e de investigação da verdade. Enumeram-se iniciativas de governos democráticos para investigar desaparecimentos, criar comissões da verdade e promulgar leis de acesso à informação. Também as obras de arte lidam com a tarefa de recordar um passado doloroso e realizar um trabalho de luto. O caráter efêmero dessas obras ressalta a dificuldade da recordação e expressão das catástrofes e enfatiza a antiga lição de que a memória humana é mais duradoura que os monumentos de pedra.

A quarta parte, “Fruição e garantia dos bens culturais”, aborda o acesso aos bens culturais e sua garantia. O direito ao lazer, por exemplo, depende de direitos trabalhistas (limitação da jornada de trabalho) e de direitos civis e políticos (liberdade de reunião e expressão) para poder se exercer. Nesse intuito, a ação do Estado é fundamental, tanto na promoção da igualdade de acesso às manifestações culturais quanto no respeito à liberdade de criação cultural. Já o direito à cidade se realiza por meio da apropriação do espaço urbano proporcionada por equipamentos culturais como bibliotecas, museus e praças. Um caso particular dessa questão é o acesso das pessoas com deficiência física e mobilidade reduzida aos bens culturais. O acesso à justiça, por outro lado, necessita do trabalho de intérpretes para que as minorias linguísticas tenham direito à defesa.

O mérito da obra é recorrer a uma variedade de temas e abordagens para tratar de um assunto que, por si mesmo, é multifacetado. Assim, torna-se possível delimitar com mais precisão o que são os bens culturais e como se exerce o direito a esses bens. Os numerosos exemplos fornecidos certamente inspirarão outras iniciativas de ação cultural, preservação do patrimônio e garantia de acesso, e lhes fornecerão um embasamento conceitual, jurídico e prático.

 

Veja também:

:: Trechos do livro

 

 

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