Ela mal sentiu a passagem do tempo. E olha que lá se vão muitos e muitos anos. No centenário de Clarice Lispector, a ser celebrado em dezembro, sua obra pulsa. São relançamentos, versões digitais, obras em destaque em sebos e clubes de leitura (leia boxe Somos muitas) para alegrar aficionados e novos leitores.
De origem ucraniana, uma das mais admiradas escritoras brasileiras nasceu em 1920 em Chechelnyk, pequena cidade da região de Vinnytsia, que antes da Revolução de 1917 pertencia ao império russo. Em 1922, a família chegou à calorosa Maceió. A mudança geográfica trouxe outra no rodapé: a alteração dos nomes da família, que passaram a ser abrasileirados. Foi assim que Haia se tornou Clarice.
Não demorou muito para que conhecessem outra cidade, o Recife, onde a família foi morar em 1925. O ano de 1930 é marcado pela morte de sua mãe e pela produção do primeiro texto teatral da pequena Clarice, chamado Pobre Menina Rica. Cinco anos depois, o cenário é o Rio de Janeiro, onde a jovem dá aulas particulares de matemática e português.
Inicia os estudos na Faculdade Nacional de Direito, em 1939. No ano seguinte, a morte do pai coincide com outra transformação profissional, a atuação como jornalista: na Agência Nacional e, posteriormente, no jornal carioca A Noite. A naturalização como brasileira chega só em janeiro de 1943, ano da publicação de Perto do Coração Selvagem, seu primeiro livro.
O casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente, em 1943, a fez cruzar mares rumo à Itália, mas, antes de ali ancorar, ficou uma temporada em Portugal e no norte da África. Seu segundo e terceiro livros vieram na sequência: O Lustre, em 1946, e A Cidade Sitiada, em 1949.
O encontro dos leitores com autores muitas vezes se dá por meio de contos, textos mais curtos, de página ágil, que cativam de imediato. Foi o que aconteceu com Stella Tobar, dramaturga e diretora da peça Minhas Queridas, apresentada no Sesc Pinheiros durante fevereiro. Stella é admiradora da personalidade e da obra de Clarice: “Quando li os contos reunidos em Laços de Família [segundo livro de contos da autora, lançado em 1960] e depois Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (romance, 1969), com pouco mais de 20 anos, decidi que um dia levaria o universo clariceano ao palco”.
A escritora intercalou a atividade na imprensa e a publicação de livros, o que a levou a se enveredar também pela literatura infantil, com O Mistério do Coelho Pensante (1967) e A Mulher que Matou os Peixes (1968). Seguiram-se os clássicos Felicidade Clandestina (1971) e Água Viva (1973). Clarice morreu em 9 de dezembro de 1977 em decorrência de um câncer.
A artista resplandecia em suas narrativas. Um dos pontos de conexão é o corpo feminino, considerado matéria primordial em sua obra, de acordo com a psicóloga e escritora Daniela Pinotti. “O ser só existe no corpo e pelo corpo, por isso sua obra é repleta de sensações e sentimentos que nascem dos órgãos, dos sentidos e do contato do corpo com o mundo”, explica.
Ao instrumentalizar o sentido, a autora chama os leitores para a experiência da sensação. “A ideia é abrir uma percepção mais intensa e mais íntima do corpo, propondo um mapa corporal/emocional!”, acrescenta Daniela.
Ao pensar em Clarice, logo vem à mente A Hora da Estrela. O livro de 1977 é seu último romance publicado em vida e o mais vendido de sua bibliografia. Pedro Vasquez, editor da Rocco, detentora dos direitos da obra de Clarice no Brasil, confirma que o clássico foi impulsionado, também, pela adoção em diferentes etapas escolares, do ensino médio ao universitário. Além disso, alcançou o grande público com a adaptação cinematográfica de Suzana Amaral (o filme foi lançado em 1985). “Com esplêndidas interpretações de Marcélia Cartaxo – agraciada com o Urso de Prata do Festival de Berlim por sua Macabéa – e José Dumont, como Olímpico de Jesus”, diz Vasquez.
A provocação literária da escritora, composta por uma prosa direta e metalinguística, versando sobre o ato de escrever, munida da introspecção e da potência psicológica conferida aos personagens, seus sentimentos e sensações, aparece como um contraponto ao romance regionalista, representado por Graciliano Ramos e José Lins do Rego, entre outros.
A imagem de Clarice era associada à postura de mulher forte, com o rosto anguloso e olhos questionadores, os quais metaforizavam a profundidade de cada pensamento exposto em seus livros. A ficção “tem o poder ou mistério de nos arrebatar, de colocar o leitor para dentro do texto, de envolvê-lo”, identifica Marcelo Maluf, escritor e professor de criação literária. Para ele, esse magnetismo é responsável pela crescente renovação de leitores, no Brasil e no exterior.
“A provocação existencial e espiritual que Clarice propõe a seus personagens transborda das páginas”, completa.
A literatura de Clarice não envolve apenas o leitor brasileiro. Em 2005, ela foi homenageada pela Festa Internacional Literária de Paraty (FLIP) e vem se firmando como uma das escritoras brasileiras mais reconhecidas em outros países. A coletânea Todos os Contos rendeu um lugar na lista dos melhores do ano do New York Times, em 2015. Ela foi a primeira brasileira a estampar a capa da revista New York Review of Books e foi comparada à decantada autora Virginia Woolf pelo Wall Street Journal.
Atestando a inovação formal e a qualidade literária, esses intercâmbios literários têm explicação? “Isso se dá em virtude do caráter universal de sua temática, que trata da condição humana sem se perder em questões regionalistas ou nacionais, com a única exceção de A Hora da Estrela”, afirma Pedro Vasquez. “Da mesma forma que Woolf não reflete apenas a cultura inglesa, nem Kafka pode ser encarado como um escritor eminentemente tcheco, Clarice Lispector não pode ser considerada basicamente brasileira. Esses autores refletem aspectos de suas culturas de origem, porém as transcendem contemplando a condição humana.” As histórias de Clarice ganharam o mundo, com traduções em mais de 30 países, e vêm conquistando uma legião de admiradores, que lhe rendem homenagens. Por exemplo, a autora ganhou uma semana só sua, a Clarice Week, assim chamado o evento anual realizado em terras nova-iorquinas.
C.L., Perto do Coração Selvagem, 1943
C.L., sumário do livro A Hora da Estrela, 1977
C.L., A Paixão Segundo G.H., 1964
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A Hora da Estrela (Suzana Amaral, 1985) – O filme é uma adaptação do romance homônimo e tornou-se um clássico do cinema brasileiro. “A tridimensionalização de Macabéa proposta pela película abriu o meu olhar para uma poesia dentro do simples, do cotidiano, do comum, além do feminino de Macunaíma”, diz Marilene Grama, atriz da peça Minhas Queridas, que esteve em cartaz durante o mês de fevereiro, no Sesc Pinheiros.
Clarice, uma Biografia (2009, Benjamin Moser) – O livro – um dos responsáveis por impulsionar o culto internacional à escritora – reúne em 576 páginas a pesquisa de Benjamin Moser, que faz uma leitura afetuosa para iniciados ou novatos no universo da autora.
O Livro dos Prazeres (Marcela Lordy, 2020) – O filme, com previsão de lançamento para este ano, é ambientado no Rio de Janeiro e traz Simone Spoladore no papel de Lóri e o ator argentino Javier Drolas como Ulisses, formando o casal central da história, que aborda as mulheres e o feminino bem ao modo de Clarice Lispector.
A Paixão segundo G.H. (Luiz Fernando Carvalho, 2020) – As filmagens de mais uma adaptação cinematográfica da obra de Clarice, ou como prefere dizer seu diretor, uma “tradução” da história, tem Maria Fernanda Cândido como a personagem central. O livro, publicado em 1964, é permeado por fluxos de consciência.
A obra da escritora se destaca na programação
O Sesc Pinheiros recebeu, no mês de fevereiro, a temporada da peça Minhas Queridas, com a dramaturgia inspirada na correspondência trocada entre Clarice e suas irmãs, Elisa e Tania, nas décadas de 1940 e 1950, interpretadas pelas atrizes Marilene Grama (foto) e Simone Evaristo, com direção de Stella Tobar.
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