Descolonizando o pensamento: releitura de arte

30/09/2022

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A ação tem como objetivo combater o racismo e valorizar pessoas negras (pretas e pardas), apresentando releituras de obras, ressignificando pinturas clássicas, como “A Negra” e a “A redenção de Cam”. Com ilustrações de Mariana Sguilla e curadoria de Carolle Lauriano.

1) A Redenção de Cam, Modesto Brocos
2) A Negra, Tarsila do Amaral
3) Olympia, Edouard Manet
4) Abigail, Di Cavalcanti

A Redenção de Cam, Modesto Brocos

A redenção de Cam, por Mariana Sguilla
Imagem: A redenção de Cam, por Mariana Sguilla

A tela “A Redenção de Cam” e a tese do branqueamento no Brasil. Pintada em 1895 pelo pintor espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos, feita pouco depois de declaradas a abolição da escravidão e da instituição da República no país, explora a questão do branqueamento da população brasileira de forma muito perversa: a cena é composta pela avó negra, a filha mulata e a neta quase branca, pois o pai é um homem branco. A avó agradece pelo branqueamento da família elevando os braços aos céus. O título faz referência à passagem bíblica em que Cam, filho de Noé, é castigado por ter olhado o pai nu e bêbado. O fato de Cam ser apontado na Bíblia como suposto ascendente das raças africanas fez com que tal passagem fosse usada na época como justificativa pelos defensores da escravidão negra. 

Por muito tempo a população negra representava, aos olhos de boa parte da intelectualidade, o passado e o atraso, sendo essas afirmações corroboradas pelo racismo científico, que chegou a justificar tal inferioridade racial a partir de um determinismo biológico. Em meados do século 19 e começo do século 20, novas teorias científicas surgiram, propondo o  branqueamento como solução para um avanço sócio-político-econômico do Brasil, miscigenando a população, incluindo os imigrantes europeus, geração por geração, até mudar o perfil racial do país, de negro para branco. O quadro “A Redenção de Cam”, reverenciado e premiado em sua época, é considerado uma representação visual dessa tese.  

Como proposta de ressignificar a ideia do embranquecimento como única forma de redenção de uma população, a artista Mariana Sguilla faz uma releitura da obra a fim de celebrar as famílias negras. Na aquarela, observamos a matriarca da família não mais com um semblante de alívio por ter um neto embranquecido, mas sim, agora expressando orgulho de seu neto que nasceu negro. Com isso, podemos pensar que a reimaginação da constituição de uma família negra feliz e empoderada de si reforça  que  o  afeto,  por  estar  imbricado  com  a  vida, é terreno da política. 


A Negra, Tarsila do Amaral

Imagem: A Negra, por Mariana Sguilla

Tarsila do Amaral foi o grande expoente do modernismo brasileiro e sua obra contribuiu amplamente para um olhar para as artes brasileiras, especialmente no exterior. Posto a importância da artista para a discussão de brasilidades e a representação dos paradigmas que o país estava vivendo no início do século XX, também é preciso ampliar o espectro do olhar sobre a obra da artista, especialmente na pintura A Negra, que guarda em si, resquícios de um olhar ainda colonial sobre o país, por mais que uma das tentativas do modernismo brasileiro fosse romper com essas questões.  

Em 1923, Tarsila do Amaral produziu A Negra, uma pintura importante para sua carreira por apresentar novas técnicas artísticas que iam ao encontro do Modernismo Brasileiro e com a preocupação do movimento com a identidade nacional. Em uma entrevista, Tarsila chegou a revelar que a figura da obra trazia memórias da infância, que era inspirada em uma das escravas de sua fazenda. Por isso, começo aqui o tensionamento pelo próprio título que a artista confere à obra. Já que a obra foi inspirada em uma pessoa, por que o título da obra leva um nome genérico, como se todas mulheres negras estivessem debaixo de um mesmo guarda-chuva subjetivo e/ou identitário? Por que a obra não leva o nome de sua inspiradora? 

Posto esses questionamentos, vamos nos adentrar a outros detalhes que apontam algumas outras problemáticas de sua obra, e aqui podemos elencar pontos de observação sobre o trabalho em um viés raciail e de gênero, por meio de três questões importantes a serem debatidas amplamente na sociedade: o legado da escravidão sobre as mulheres negras, o corpo sexualizado e o papel social da “mãe-preta”. Em A Negra, de Tarsila, a imagem central é a de uma mulher negra, nua. O corpo preenche quase todo o plano, a cabeça ovoide se mistura com os lábios grandiosos, ela possui um seio enorme caído sob o braço direito, além de pernas grossas e pés agigantados. 

Aqui, é imporante ressaltar que, embora as problemáticas que se estendem sobre a pintura, ela guarda em si uma radicalidade à época: a figura representada no quadro foge dos padrões acadêmicos da beleza europeia, não tem as características da doce senhora paulistana e não pratica uma ação que determine seu posicionamento social como o lavrador de café de Cândido Portinari, ou como as mulatas de Di Cavalcanti. 

Mas essa radicalidade se esbarra na própria relação de empatia que Tarsila dizia ter em relação às memórias das negras escravas de sua infância, não escondendo um lugar de privilégio em que ela se encontrava em relação às negras de sua fazenda, tornando-se preocupante por apresentar uma nostalgia de um não tão distante passado escravocrata. Portanto, A Negra, de Tarsila do Amaral, aqui pode ser compreendida como uma alegoria mítica do que a mulher negra representava no imaginário pós-escravidão, de que a mulher negra é subserviente, sexualmente atraente e que carrega em si o peso do cuidado, não somente dos lares, mas também dos filhos de suas senhoras. Imaginário, inclusive, que segue sendo reafirmado nos dias atuais.  

Com o intuito de romper com esse legado, Mariana Sguilla repensou uma proposta para A Negra. Seguindo os traços que simbolizam a importância da obra enquanto ruptura estética, aqui, ressignificamos essa ruptura não apenas pelo contexto pictórico, mas pelo simbólico. Ao cobrir o seio da Negra e colocar em seus braços um filho seu, Sguilla nos faz pensar a quem pertence o corpo da mulher negra, exceto a si própria. Dessa forma, ela passa a não mais alimentar os outros, passando então a alimentar os seus, recuperando para si a dignificação de sua própria subjetividade e desejos, que outrora lhe foram negados. 


Olympia, Edouard Manet

Imagem: Olympia, por Mariana Sguilla

Quando finalizado em 1863, Olympia, obra do pintor francês Édouard Manet causou controvérsias na sociedade. Inspirado em obras como Vênus de Urbino (1538), de Ticiano, e Vênus Adormecida (1510), de Giorgione, o quadro de Manet gerou polêmicas ao subverter a ordem de retratar mulheres que representavam algum grau de divindade ou elevação espiritual, para colocar no centro da tela uma garota de programa da alta sociedade – Olympia era o pseudônimo frequentemente adotado pelas cortesãs de Paris nesta época.

O quadro chocou a sociedade local por apresentar uma altivez e um olhar provocador de Olympia, que encara o espectador como se ele pudesse ser um de seus clientes – inclusive porque historiadores da arte e estudiosos da obra afirmam que o olhar de Olympia estaria direcionado a um cliente que estava entrando no quarto -, ou como ela ignora todo entorno apresentado no quadro, seja a empregada que lhe oferta flores, ou mesmo pelos símbolos da alta sociedade que a personagem carrega, como o laço no pescoço e as joias, e mesmo assim, ela mantém um certo desdém sobre isso.

Se, por um lado, a pintura inaugura uma nova perspectiva no campo da arte, no qual os pintores estavam interessados em romper com uma ideia de passividade das grandes musas femininas, trazendo um conceito da vida na cidade para suas obras (vale lembrar aqui que estamos falando do início do modernismo e como essa transição entre feudo e cidade impactou na criação artística da época). Por outro, observamos ainda a mulher tendo sua nudez revelada em um quadro e os padrões de beleza reafirmados.

Posto tudo isso, um detalhe que passou a chamar a atenção de pesquisadores e historiadores da arte, especialmente os interessados em discutir processos decoloniais, é a figura que se encontra em segundo plano na tela, tão mimetizado com o fundo preto, que por muito tempo passou despercebida na construção pictórica do quadro. Lida apenas como “a criada”, recentemente historiadores da arte passaram a observar a figura também como central na tela, apresentando estudos sobre a representatividade negra no imaginário poético-visual nos movimentos artísticos de vanguarda.

Em 2019, o Musée D’Orsay, em Paris, dedicou uma exposição a investigar essas incursões de modelos negros no campo da arte e como suas existências foram retratadas nas principais obras de arte, sendo Olympia uma delas. Pioneira no mundo das artes, a exposição “Le Modèle Noir” (O Modelo Negro), obteve um imenso sucesso em Paris, em 2019. Foi através desta mostra que o público pôde descobrir mais detalhes não apenas sobre Laure, mas sobre a representação das pessoas negras na pintura, tirando-as do anonimato.

Aqui, vale lembrar que na época em que ‘Olympia’ foi criada, fazia aproximadamente 15 anos que a escravidão tinha sido abolida na França e em suas colônias da época. É interessante notar que essa pintura mostra como uma modelo negra sobrevivia nesses ambientes artísticos e como as relações sociais podem ser lidas a partir desta presença.

Por isso, para o Projeto Releitura da Arte, Mari Sguilla propõe uma releitura poética da obra, em uma perspectiva decolonial e outra de gênero. Primeiramente, a artista recria uma Olympia negra, mas não como uma cortesã e sim como uma mulher negra digna de ser retratada em liberdade e não mais por um viés de hipersexualidade, a começar pela personagem estar vestida e não mais nua. Em outra perspectiva, a Olympia de Sguilla segue de mãos dadas com “a criada”, que também passa a figurar com um outro imaginário, não mais de serviçal e sim como de uma amiga. Dessa forma, podemos ressignificar uma história que ainda reitera um olhar colonizador sobre corpos de mulheres, especialmente o de mulheres negras e seus papéis na sociedade, recriando um novo imaginário de futuro para suas existências. Podendo concluir que, a história da arte só se enriquece quando caminha neste sentido de revisão de si própria em relação a abarcar novos protagonismos e releituras.

Abigail, Di Cavalcanti

Parte da discussão proposta pelo projeto Descolonizando o Pensamento: Releituras da Arte, do Sesc Guarulhos, é abordar como o racismo faz parte de uma construção social que se esbarra também em uma construção imagética que, subjetivamente, reafirma padrões e normas comportamentais que são ou não aceitáveis. Dessa forma, ao mesmo tempo que o modernismo se aproxima de uma ideia de resgate de uma identidade nacional, olhando exatamente para as complexidades da mesma, por outro lado, o movimento também corroborou para uma docilização da nova sociedade brasileira que se formava no início do século XX.

Parte disso pode se dar pelo fato de parte dos artistas não tensionar as complexidades de um país que vivia as consequências da pós-abolição e de uma população cuja miscigenação dos povos já estava presente na sociedade. Ao longo da história, fomos habituados a acreditar que a sociedade brasileira se constituiu pela mistura harmoniosa de raças, que nossos antepassados – europeus, indígenas, africanos – conformaram uma mistura, étnica e cultural, que deu origem ao mestiço ou, ainda, à identidade brasileira, fundando assim o mito da democracia racial. Estratégica, essa, que naturaliza e sustenta os discursos racistas que permeiam a construção de identidades, embranquecendo assim grande parte das heranças e discursividades de povos historicamente oprimidos.

E desse contexto surge uma discussão importante que estamos tendo recentemente na história da arte é exatamente sobre a questão da retratização de pessoas negras e miscigenadas por artistas brancos e como o racismo estrutural está implicado em situações como mudanças sutis, mas de grande impacto, nos traços dos retratados, fazendo com que os traços se aproximem muito mais de uma branquitude, do que da negritude, a exemplo de um comum afinamento do nariz.

Abigail, de Di Cavalcanti, é uma ilustração perfeita para esse contexto. Não somente no que diz respeito às mudanças do fenótipo, mas também em relação a exotização que esse corpo miscigenado criou no imaginário social, especialmente para as mulheres. Uma das práticas perpetuadas pelo racismo brasileiro foi a de eleger certas características como “puramente negras” e outras tantas como “puramente brancas”, aqui falando abertamente de colorismo e também da mestiçagem enquanto elemento que “eleva” uma nação, como teorizou Gilberto Freyre, no qual o mito da democracia racial então ganha o colorismo como aliado.

Voltando para a pintura de Di Cavalcanti, observamos essas duas teorias acontecendo concomitantemente, apresentando ao público uma Abigail de feições esbranquiçadas, cabelo liso e pele mais clara, reafirmando essas características brancas e negras, funcionando quase como um elogio que a sociedade usa até hoje, de “mas ela não é tão negra assim, tem até alguns traços brancos”. Pensando nisso, Mari Sguilla recriou a pintura a partir de uma perspectiva negra. Os cabelos passam a ser afro e os traços de Abigail negros, devolvendo a ela um contexto também muito importante: o retrato de uma pessoa negra ser feito a partir da subjetividade de uma pessoa negra, resgatando assim a valorização de um povo e não mais o objetificação do mesmo.

Sobre o projeto “Descolonizando o pensamento”

Mariana Sguilla é nascida no interior de São Paulo, mudou-se a trabalho para o Rio de Janeiro aos 24 anos. Sem educação formal em artes, três meses após chegar à cidade experimentou pintar como forma de se distrair e se expressar, auxiliando a adaptação à nova vida e, assim, descobriu o nicho da aquarela em sua forma mais comercial e despojada (i.e.: artistas contemporâneos em redes sociais, como instagram). Na busca por referências e inspirações, se deu conta que os resultados mais populares e disseminados eram majoritariamente brancos, sendo baixa a presença de pinturas com negros e/ou afro-latinos. Assim, comprometeu-se a retratar aquilo com o qual pudesse se identificar, garantindo que produziria sempre algo que trouxesse alguma representatividade para negros. Nos anos seguintes manteve-se autodidata, tendo, a partir de 2018 começado a comercializar algumas pinturas, além de passar a explorar outros tipos de materiais, como tinta acrílica e giz. Em 2020 foi uma das artistas convidadas para o Powerful Profiles, exibição online do Multicultural Heritage Centre, galeria de arte canadense.

Carolle Lauriano é formada em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo. Artista visual, pesquisadora de arte e curadora independente desde 2018, após dez anos de trabalho com a publicidade, ela encontrou uma forte inquietação de reconfiguração de mundo. Percebendo-se crítica para a moda, Carolle formou um grupo de estudo de arte só com mulheres. Curadora adjunta da 13ª Bienal do Mercosul.

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