Compositor, arranjador, pianista e educador musical, Ricardo Breim lança, pelo Selo Sesc, Sons e Tons, álbum com faixas inéditas de seu repertório. A maioria das músicas nasceu com fins pedagógicos, em estreita conexão com as concepções do autor, que diz: “Sinto-me músico e educador musical o tempo todo, seja no palco ou na sala de aula.”
Produzido por Swami Jr. e Camilo Carrara, o álbum contém dezoito canções, oito delas com parceiros compositores ou intérpretes. Arnaldo Antunes, Ana Amélia Guimarães, Chico César, Diego Ochs, Luiz Tatit, Ina, Mônica Salmaso, Ná Ozzetti, Stella Franco, Zeca Baleiro e Zé Miguel Wisnik, assim como outros músicos do projeto, estão vinculados, de alguma maneira, ao percurso da escola Espaço Musical, dirigida por Breim há quarenta anos.
Quando passou a se interessar intensamente pela composição de canções, o professor passou a tomar como ponto de partida as inúmeras melodias que havia composto para utilizar em sala de aula. “O álbum nasce exatamente disto, o que o faz único”, diz José Miguel Wisnik, e descreve: “Os exercícios transmutam-se em verdadeiras canções. Bebendo do próprio veneno de seus desafios pedagógicos, o mestre revela-se um mago, e o feitiço começa a trabalhar a favor do feiticeiro”.
A faixa “Viva a Vida Viva” é uma homenagem a Milton Nascimento e tem levada, ritmo e arranjo inspirados nas canções desse compositor mineiro, que defendeu publicamente o Projeto de Alfabetização Musical, desenvolvido em 1992 por Ricardo Breim, Elisa Zein e Hermelino Neder para a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Já na faixa “Sons e Tons”, canção que dá nome ao disco, as palavras “sim” e “não” foram associadas, muitos anos depois, a sol e lá, únicas notas da melodia composta nos anos 1980 para as primeiras aulas de alguns instrumentos de sopro.
Breim compartilha interpretações com Zeca Baleiro na canção “Quase um blues”, com Chico César em “Eu, Tu, Elxs”, single lançado em 7 de fevereiro, com Mônica Salmaso em “Destinos Cruzados” e com Ná Ozzetti em “Mi-sol-lá sem Ré” – que tem letra de Arnaldo Antunes. Os shows de lançamento do álbum acontecerão em 22 de fevereiro no Sesc Campinas e em 23 de fevereiro no Sesc Bom Retiro.
Ricardo Breim é um professor de música como pouquíssimos. Ao ensinar percepção e harmonia, por exemplo, não se limita a dar a ouvir os intervalos e a mecânica dos acordes, mas convida a entrar por dentro dos caminhos que levam um som ao outro, a reconhecer as escalas e seus modos de deslizarem nota a nota, a habitar os pulsos e os ritmos. Em outras palavras, leva a passear dentro da música, a percorrer seus atalhos e passagens secretas que abrem mundos. Por isso mesmo, aprender música com ele não está muito longe de compor música.
Este álbum nasce exatamente disto, o que o faz único. De fato, Breim sempre propôs a seus alunos pequenos exercícios envolvendo relações elementares e reveladoras entre sons e tons: que lugar ocupa um som frente a outro? Como a presença de um som ressignifica a presença de outro som? Como um certo som vira um tom, isto é, um feixe de relações sonoras numa trama de sentidos? Quantas possibilidades infinitas cabem num simples do-ré-mi-fá-sol? (veja-se que o disco é abraçado, na sua primeira e na sua última faixas, por canções – “Melodia” e “Onda” – que se baseiam nas singelas e infinitas possibilidades do pentacórdio maior e menor). E o que pode então a harmonia, quando os acordes e os arpejos transfiguram completamente o sentido de uma frase melódica, dando-lhe inesperadas dimensões?
É o caso, justamente, da canção que dá nome ao álbum: “Sons e tons”. Ricardo Breim tomou para si o desafio de construir a melodia só com duas notas vizinhas uma da outra: uma canção de duas notas só. Dinamizadas pelos acordes da harmonia em movimento, as duas notas pendulantes soam sempre novas, como se fossem muitas, como se fossem outras a cada vez. Tece-se entre elas uma tensa e delicada dialética de tensões e repousos. Sem nenhum didatismo, a canção acaba sendo uma aula de harmonia poética, pois as palavras da letra contribuem afinal para fazer do balanço entre as duas notas melódicas um surpreendente jogo entre o sim e o não.
Com o que o professor revela-se compositor (o que mais ou menos já sabíamos) mas o compositor desvela-se cancionista, autor de letras e músicas profundamente integradas – o que não suspeitávamos. Os exercícios transmutam-se em verdadeiras canções. Bebendo do próprio veneno de seus desafios pedagógicos, o mestre revela-se um mago, e o feitiço começa a trabalhar a favor do feiticeiro.
Concorrem para isso outros alquimistas da palavra-música, parceiros entre os maiores, que participam de Sons e tons. Arnaldo Antunes fez a letra de “Mi-sol-lá sem ré”: dessa vez é uma canção com três notas só, nas quais Ricardo Breim identifica a base de “um grande número de brincadeiras infantis”. São, segundo ele, canções que apontam para a escala pentatônica (feita de cinco notas), sem chegar a assumi-la por completo. Essa quase-pentatônica infantil é pois, exatamente, um “mi-sol-lá sem ré”. Arnaldo captou, sem ré e sem dó, o espírito da coisa saindo da “boca oca” da “selva da linguagem”, “aldeia ideia” brincando num “a b c d / rum pi lé / 1 2 3 já / mi sol lá sem ré” (com um toque precioso de Ná). Chico César flagrou deliciosamente em poesia o aumento gradual de células rítmicas que se aproximam do tempo forte do compasso, em “Eu tu elxs”: “eu / e tu / eu e tu / eu ele tu / eu ele ela tu / tu eles eu alguém / fora não fica ninguém / o amor amar aqui além”. Luiz Tatit surpreendeu o delicado movimento de “vem” e “vão” que medra na semente e no embrião que, vindos do “país de outrora”, faltam ao “país de agora” (“Embrião”). Zeca Baleiro percebeu matreiramente nos negaceios da melodia, que escorrega entre vários graus e modos possíveis da escala, a possibilidade de negacear também entre os muitos gêneros virtuais da canção até chegar nesse “Quase um blues”.
Mas quero falar ainda de duas canções que me parecem extraordinárias. Nascida também de uma aula, e contando com a parceria das alunas Ana Amélia Guimarães e Marina Serva, “Destinos cruzados”, interpretada por Breim e Monica Salmaso, faz parte dessa linhagem rara de canções em que duas vozes contracantam em alucinante sintonia melódica, harmônica e poética (como no “Samba em prelúdio” de Baden e Vinícius e em “Sem fantasia” de Chico Buarque), alinhando-se entre elas na escala do sublime.
“Será?”, por sua vez, combina princípios rítmicos e composicionais de José Eduardo Gramani e de Marco Antonio Guimarães (criador do Uakti), fazendo com que células melódicas simples e intuitivas, submetidas a uma métrica em contínua contagem regressiva, entrem em defasagem com o baixo constante num efeito vertiginoso e extasiante de permanência e deslocamento simultâneos. Notem que os versos da letra, escrita pelo próprio Breim, vão diminuindo rigorosamente de tamanho, um por um, sílaba por sílaba, vindo desde a escala cósmica (“em volta do sol a Terra, / incandescente esfera”) até afunilar na pergunta em que está em jogo o destino final do humano (“pensa que no fim / pode encontrar / uma luz, / será?”). A canção não me atingiu tanto de primeira, mas hoje a considero a mais surpreendente entre todas.
“Laser”, que fizemos há mais de trinta anos, reaparece quintessenciada e profunda de dentro de uma nova trama harmônica. Quanta amizade dadivosa há nesse passar do tempo, tudo “preso e solto por um fio”. Lembro-me de ter acabado a letra na véspera da estreia do show em que tocávamos juntos. Nosso companheiro Swami Junior, que produz esse Sons e tons, já estava lá.
Sons e Tons está disponível nas plataformas de streaming e gratuitamente no Sesc Digital.
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