A SALA 33 | Conto inédito de Wesley Barbosa com ilustrações de Léo Daruma

01/04/2024

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Faz alguns dias conheci um sujeito em uma lanchonete perto do meu antigo emprego. Ele me sugeriu um novo ofício por intermédio de um anúncio de jornal, que me ofereceu aparentemente a troco de nada. Na verdade eu estava desesperado, tentando arrumar algo pra fazer, desde o meu último serviço em uma livraria bastante frequentada no centro da cidade. 

Eu não gostava de carregar as caixas de livros, nem de ficar espanando as prateleiras com aquele monte de pó me fazendo espirrar a todo o momento. Mas todas as vezes que o gerente se distraía, eu dava um jeito de folhear um livro e outro, sempre atualizando minhas leituras. 

Um jovem, o desgraçado de um auxiliar administrativo, cheio de querer mandar nos vendedores, ficava me olhando pelo rabo do olho, vira e mexe cochichando algo com o gerente que, por sua vez, vivia bajulando o dono da livraria, demonstrando que daria o sangue por aquele emprego. 

Uma vez, ele me chamou até sua sala e disse: 

— Fulano, infelizmente você não passou na experiência, e a loja não poderá registrá-lo, aqui está o pagamento dos seus dias de trabalho. 

— Mas o prazo de experiência são três meses — observei indignado — e eu estou trabalhando aqui não faz nem quinze dias. 

— Sabe o que é — falou o gerente, forçando simpatia — do jeito que você está trabalhando não vai render muito, não, essa é a verdade. 

Aceitei meu pagamento e fui direto para uma lanchonete local tomar qualquer coisa. Ali, prostrado como um desses vagabundos sem eira nem beira, me perguntava o que eu iria fazer para conseguir o dinheiro do almoço dos dias seguintes. 

A atendente de olhos espertos e bastante sensual perguntou: 

— Boa tarde, vai querer o quê? 

— Um café com leite, por favor. 

— E um pão na chapa pra acompanhar? 

— Só o café com leite mesmo. 

— Volto num instante. 

Foi nesse exato momento que vi um cara se sentando ao meu lado com uma aparência bastante esquisita. A garçonete retornou pousando o copo de vidro (todo sujo nas bordas) em cima do balcão e me lançou um sorriso como que dizendo “se precisar de alguma coisa, é só me chamar.” 

— Essa daí lá em casa eu faria miséria — comentou o cara ao meu lado. 

Concordei balançando a cabeça enquanto o sujeito, que até aquele momento não havia pedido nada, olhava o cardápio do dia. Eu ainda não havia almoçado e, olhando para o relógio de parede da lanchonete, que apontava duas da tarde, era como se eu estivesse sem fome por causa da preocupação. 

— Garçonete — chamou o homem. 

Como que por um passe de mágica, ali estava a moça, outra vez atendendo o cliente de olhos vazios. Ele apontou o dedo para o cardápio, e ela disse ‘já volto’, fazendo parecer que aquela frase saía de sua boca mais de mil vezes por dia. 

— Hoje eu trabalhei que nem um condenado — falou o homem. – Tô com uma fome que, se eu pudesse, comia tudo o que tá aqui neste cardápio. 

— Nem me fale. 

— Trabalha por aqui mesmo, companheiro? 

— Trabalhava. 

— Despedido do emprego? 

— E o desgraçado só me pagou uma mixaria! 

— Era registrado? 

— Estava no período de experiência. 

— Eu sei como é que é, irmão, não tá fácil pra ninguém. 

A garçonete retornou depositando um pratinho à frente do sujeito, que sorriu pra ela exibindo dentes amarelos de nicotina, agradecendo-lhe com uma piscadela furtiva, enquanto apreciava a pequena porção de toucinho que enfiava na boca com os dedos, onde se podiam ver unhas pretas de sujeira. 

Ele disse: 

— Tá servido, irmão? 

— Tô tranquilo. 

Abocanhou mais um punhado de toucinhos e voltou a chamar a garçonete, pedindo-lhe que lhe trouxesse uma garrafa de cerveja. Após a moça servi-lo, colocando o líquido amarelo em seu copo, sem deixar fazer espuma, ele tornou a sorrir, dessa vez olhando-me como se me conhecesse há muito tempo. 

— Eu consegui um serviço faz duas semanas — disse o cara, soltando um pequeno arroto —, estou me dando muito bem lá. 

— E por lá eles tão precisando de gente pra trabalhar? 

— Sempre tão precisando. 

— Você poderia me indicar. 

— Não é bem assim não, meu chapa. 

Fiquei amuado como uma criança sem entusiasmo. No entanto, percebi o sujeito retirando a metade de um jornal que ele trazia consigo dentro do bolso de sua calça jeans surrada. 

— Aqui — falou ele —, eu fiquei sabendo desse trampo através do anúncio de jornal. 

— Obrigado, irmão. 

— Só tô te dando a dica porque fui com a tua cara. 

— Obrigado de verdade. 

— Só mais uma coisa: diga que você é da turma do Luizão (esse é meu nome), que foi eu quem te mandou lá; se você por acaso trombar com um cara magrelo que todo mundo chama de Picuinha, pode dizer pra ele que foi eu quem te mandou. 

… 

No dia seguinte, decidi ir até o lugar que o jornal indicava. Não estava explicado claramente o que era o serviço. Dizia apenas que os interessados deviam seguir a rua Principal, perto de um prédio comercial que ficava próximo à estação de trem. Fiz a barba e coloquei a camiseta mais limpa que eu tinha. Meu sapato furado no calcanhar também não estava tão sujo assim. Soprei na minha mão em concha para ver se eu estava com bafo. Escovei mais uma vez os dentes e fiz o sinal da cruz ao sair de casa. 

Era um prédio de esquina pouco chamativo: a entrada dava em uma escada por onde eu subi alguns lances e segui pelo pavimento superior até encontrar uma salinha, no final do corredor, que apontava o jornal. 

Bati na porta do número 58. Ninguém atendeu. Bati mais duas vezes e esperei. De lá de dentro saiu uma mulher de aparência suja (igual ao sujeito da lanchonete) e eu observei que ela parecia um monte de farrapo ambulante por causa de suas roupas. 

— Pode entrar — falou um sujeito bem vestido de lá de dentro. 

Entrando no local, eu senti um cheiro enjoativo de incenso e me sentei na cadeira que o moço de mais ou menos quarenta anos me indicara. Ele tinha olhos azuis, e seu relógio parecia ser banhado a ouro. Estava me olhando de cima a baixo. 

— Você veio pelo emprego? — perguntou ele, meio desconfiado. 

— Sim, senhor. 

— Quem te indicou? 

— O Luizão, ele disse pra eu falar com o Picuinha, o senhor é… 

— Não, meu amigo. Você está na sala errada, aqui eu só pago pra ficar na frente de agências de bancos… A sala do Picuinha é a 33, nesse mesmo corredor, mas desse jeito que você tá vestido… Não sei, não… 

Na outra sala, Picuinha, que na verdade gostava de ser chamado de seu Estevão, fumava um charuto de cheiro agradável. 

Ele falou: 

— Então o Luizão que te mandou aqui? 

— Sim, senhor. 

— O espertinho não perde uma comissão — comentou Picuinha —, a cada pessoa que ele indica eu pago um valor pra ele. Você já mendigou na sua vida? 

— Como? 

— Esmola, já pediu esmola? 

— Não… 

— É esse o emprego: aqui nós contratamos pra vocês ficarem na frente dos restaurantes. 

Picuinha parou de falar um instante e deu uma longa tragada em seu charuto, depois continuou sua explicação: 

— Nós levamos e buscamos nossos funcionários dentro de uma lotação. Se você topar, são oito horas de trabalho por dia, de terça a sábado, pagamos quarenta por cento do que for arrecadado até o final do expediente e, no último dia do mês, damos um bônus adicional para aqueles que conseguiram arrecadar o maior número de esmolas.  

Ao fazer aquela proposta, Picuinha sorriu de um jeito que jamais vou esquecer. Quando perguntou se eu aceitaria aquele emprego, me detestei por hesitar por um segundo, pois cogitei estender as mãos para os transeuntes nas ruas. 

Lembrei-me da quantidade de pessoas desesperadas no centro, submetendo-se à humilhação. Crianças abandonadas nos semáforos, idosos arrastando carroças e revirando lixo em busca de um pedaço apodrecido de pizza, ou deitados nas calçadas sem ter para onde ir, loucos e bêbados querendo fugir da realidade daquele mundo de derrota e desgraça. 

Levantei-me da cadeira, equilibrando-me entre o sim e o não. Enquanto isso, o patife continuou a sorrir, dizendo que caso a fome apertasse por dentro como um corvo faminto, ele estaria ali, sentado em sua cadeira como o rei da cidade, com as portas da sala 33 abertas. Era o próprio sistema rindo às gargalhadas da vida miserável dos desgraçados.  

Wesley Barbosa nasceu em Itapecerica da Serra (SP) e, desde a adolescência, trabalhou como vendedor ambulante e em diversas outras atividades. É autor de seis livros, entre eles: O Diabo na Mesa dos Fundos (Selo Povo, 2015), Parágrafos fúnebres (Ficções, 2020), Viela ensanguentada (Ficções, 2022) e O rebento do ódio (Barraco Editorial, 2023). 

Léo Daruma, artista visual nascido em Santos (SP), descobriu na colagem uma de suas técnicas favoritas. Inserido na cena hardcore da Baixada Santista, conheceu os fanzines, a street art, o estêncil e os lambe-lambes. Criador e organizador da feira gráfica Goma, dedica-se a oficinas, palestras e atividades educativas voltadas à arte urbana autoral.

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