Meus dois grandes faróis na música nasceram no mês de abril, em anos diferentes, mas separados por apenas dez dias. Ambos iniciados na música pelo cavaquinho — instrumento que toco há quase três décadas. Durante a juventude, por mero prazer. Na vida adulta, ainda por prazer, mas também como forma de aprimorar conhecimentos musicais e auxiliar meu trabalho como jornalista e escritor.
Aos faróis.
Ele, já sob o signo de touro, com a proteção de São Jorge e de Ogum, é de 23 de abril de 1897. Para uns, nascido em Olaria. Para outros, em Ramos. Sabe-se, por certo, que foi na Zona da Leopoldina, no subúrbio do Rio de Janeiro. Figura de maior relevo dentro da história do choro. Flautista de primeira hora, saxofonista revolucionário, arranjador respeitadíssimo, tornou-se um formatador daquilo que ainda hoje se conhece como música popular brasileira urbana. Como compositor, o maior entre os maiores. Seu nome: Alfredo da Rocha Vianna Filho. Pixinguinha.
Ela, ariana, fez sua primeira aparição neste plano em 13 de abril de 1922, em Botafogo, Zona Sul do Rio. Mas morou a maior parte do tempo em território suburbano, tanto em Madureira quanto na Estrada Velha da Pavuna. Biologicamente, é filha de Emerentina e João. Espiritualmente, de Oxum Opará. Neta de jongueiros africanos escravizados, sobrinha de chorão, prima e nora de fundadores de escola de samba, fruto de um amor nascido em um rancho carnavalesco, pode-se dizer que ela é a personagem com a formação mais completa que já existiu no universo do samba. Contralto com grande facilidade em atingir agudos e graves com a mesma excelência em afinação. Cavaquinista, compositora pioneira de refinamento melódico intuitivamente perfeito, logo, inimitável. Desde a infância, ladainhas e missas de Bach conviviam harmoniosamente em sua imaginação. Destaque de ala das baianas, aderecista, porta-bandeira bissexta, sambista. Erudição e popularidade numa só pessoa, contracantos bordados em ouro e água: Yvonne da Silva Lara. Dona Ivone Lara.
Em matéria de domínio da forma, da linguagem e, por consequência, do que há de mais bem acabado em termos de criação artística e de composição, Dona Ivone Lara está para o samba assim como Pixinguinha está para o choro. Ao passo que ele se impõe com Carinhoso e Rosa, ela ascende com Nasci pra sonhar e cantar e Alvorecer.
Dias depois de receber o convite para escrever este texto, chega a notícia de que foi aprovado o Projeto de Lei que insere no calendário oficial o 13 de abril como o Dia Nacional da Mulher Sambista.
Caso tivessem escolhido como marco desta representatividade uma data diferente dentre as que marcam o nascimento de outras artistas ligadas ao samba, a homenagem também teria sido justa: 7 de fevereiro (Clementina de Jesus), 5 maio (Beth Carvalho), 14 de junho (Geovana), 21 de julho (Jovelina Pérola Negra), 12 de agosto (Clara Nunes), 19 de agosto (Aracy de Almeida), 12 de setembro (Leci Brandão), 21 de novembro (Alcione), 13 de dezembro (Gisa Nogueira), 23 de dezembro (Cristina Buarque).
Poderiam também ter optado por mulheres que não atuaram necessariamente no meio artístico, mas que foram fundamentais para que o samba viesse a acontecer. Mulheres como as “mães baianas” da chamada “Pequena África” no Rio de Janeiro no fim do século 19, como Tia Ciata, Tia Perciliana, Tia Amélia, Tia Gracinda, Tia Bebiana e outras mais.
Dentre tantas possibilidades de nomes e datas, escolheram o 13 de abril, nascimento de Dona Ivone Lara, como o Dia Nacional da Mulher Sambista. Por sua vez, o Dia Nacional do Choro, é comemorado no 23 de abril, aniversário de São Pixinguinha. O simbolismo é imenso.
Dona Ivone ganhou do poeta Hermínio Bello de Carvalho o apelido de “Primeira Dama do Samba” por ser de fato a primeira a reunir em uma só pessoa os seguintes atributos: cantar, compor, tocar um instrumento de harmonia, dançar seu inconfundível miudinho e confeccionar os figurinos e fantasias com os quais se apresentava nos palcos ou nos desfiles de Carnaval. Uma mulher que compôs seu primeiro samba aos 12 anos de idade, mas só teve a oportunidade de gravar e lançar seu primeiro disco aos 56.
Há dez anos venho falando que Dona Ivone Lara é um assunto tão amplo e tão complexo que o Brasil ainda não assimilou a dimensão do fenômeno em sua completude. E quando me refiro intencionalmente a Dona Ivone como um “assunto” é pelo seguinte motivo: para além de ouvirmos uma obra artística reconhecida nacional e internacionalmente como algo muito especial, a trajetória de Ivone Lara simboliza, inspira e provoca reflexões e debates sobre muitas das pautas que ainda hoje são necessária e urgentemente debatidas.
Na trajetória de Dona Ivone Lara estão lá os enfrentamentos ao machismo, ao racismo, ao etarismo, à gordofobia, à intolerância religiosa, à sobrecarga (mal ou não remunerada) da mulher que tem de gerir a carreira, administrar a casa e criar os filhos. Por meio de Ivone Lara fala-se de saúde mental, da importância fundamental da assistência social, de ancestralidade, de pioneirismos femininos. Fala-se de acesso e de sucesso.
Personagem ampla e de extrema profundidade, por sua vida e obra Dona Ivone é espelho e reflexo de um país tão diverso como o Brasil. Quantas meninas e mulheres negras se identificam com suas músicas e enxergam em sua figura mais do que um referencial, uma realeza?
Ivone ficou órfã na juventude e se tornou a primeira pessoa de sua família a ter um diploma universitário. Ainda menina, teve a idade aumentada em um ano por sua mãe para que pudesse ser aceita na escola pública e iniciasse uma rica trajetória de formação acadêmica. Formou-se no início da década de 1940 em Enfermagem, especializou-se em Praxiterapia Ocupacional e desempenhou importante papel na equipe da revolucionária Nise da Silveira. Ao longo de 37 anos tratou de pacientes com diferenças mentais com música numa época em que mal se falava em musicoterapia. Para além dos muros, já como assistente social atuou incansavelmente na localização dos familiares e no auxílio à reintegração daquelas pessoas marginalizadas à sociedade.
Em paralelo ao ofício, Ivone Lara foi destaque da ala das Baianas da Cidade Alta por muitos anos. Ocupou – ainda que extraoficialmente – um espaço nobre e proibido até então para as mulheres dentro de uma escola de samba: a ala de compositores. E, por fim, tornou-se a primeira mulher na história a vencer o concurso de samba de enredo numa escola do Grupo Especial do Carnaval do Rio de Janeiro.
Pela música, Dona Ivone Lara povoa o imaginário brasileiro com sua obra ainda sendo tocada no rádio, na televisão e, sobretudo, cantada nas rodas de samba pelo povo. Suas canções, a maioria criada em parceria “mediúnica” com o grande Délcio Carvalho, foram gravadas pelos maiores intérpretes do país, dos mais diferentes estilos e gerações: Beth Carvalho, Gilberto Gil, Gal Costa, Paulinho da Viola, Fundo de Quintal, Elza Soares, Elizeth Cardoso, Maria Bethânia, Monarco, Caetano Veloso, Clara Nunes, Alcione, Jair Rodrigues, Nana Caymmi e Zeca Pagodinho.
Das 150 melodias que compôs – sambas de terreiro, valsas, jongos, partidos-altos, choros-canção, sambas de enredo –, algumas delas Dona Ivone recebeu de outros planos inspiracionais. Não é acaso, vejam só, que seu maior sucesso tenha por título Sonho meu. Durante meses Ivone sonhou com os caminhos melódicos que ela acordava solfejando. Maria Bethânia foi a primeira a gravar, no disco Álibi, de 1978, que fez com que ela se tornasse a primeira mulher a superar a marca de um milhão de discos vendidos no Brasil.
Outra delas, Axé de Ianga (Pai Maior), abro aspas para a própria Ivone contar em depoimento até aqui inédito:
“Dizem que a minha protetora é a rainha da música. Ela me protege muito e me dá essas intuições. Eu acredito muito nos mistérios, eu acredito muito nos espíritos, eu acredito que exista na minha família um mito que nós todos adoramos, que é Tio José. A minha tia [Vovó Teresa, nascida de ventre livre, jongueira ícone do morro da Serrinha], que tinha 120 anos, nos contava muita coisa sobre Tio José. Tio José veio de Angola, é angolano e se tornou um mito na nossa família. Ele morreu e incorpora numa prima que eu tenho e sempre traz uma notícia pra gente ou de bom ou de ruim ou então uma advertência. A última vez em que eu estive com ele foi da seguinte maneira. Eu estive em Angola, fui fazer aquele show, o Kalunga, e quando cheguei lá todo mundo me conhecia por causa de ‘Sonho meu’. Eu senti uma atração espiritual muito grande, parecia que eu já conhecia todo mundo. Quando nós voltamos ao Brasil, todo mundo fez música para Angola. Chico Buarque fez “Morena de Angola”, Djavan fez a dele. Eu falei: também vou fazer uma para Angola, sabendo que os meus ancestrais eram de lá e de Moçambique. Fui à casa de minha prima, ela se concentrou e Tio José desceu e me disse: ‘Oi, neguinha, você esteve em minha terra? Gostou?”. Eu disse: gostei, sim, senhor. Ele disse: ‘Você faz tanta coisa bonita para os outros, por que não faz uma para mim?’. Eu respondi: ‘Bom, vovô, eu estava esperando a licença do senhor e ia pedir umas explicações. Por exemplo, como eu vou fazer uma música para o senhor sem saber uma palavra de seu dialeto?’. Ele falou: ‘Na minha terra, quando as coisas estavam feias, havia muito castigo, a gente sofria e se reunia para fazer ladainha. A gente chamava muito por Ianga, que quer dizer Pai Maior’. Eu saí de lá tão animada. Depois disso ele me iluminou muito, me deu muita intuição, e no dia seguinte eu já tinha feito a música toda com letra. Ele baixou de novo em minha prima e eu cantei para ele. Ah, como ele dançou cateretê comigo, me ensinou a dança da terra dele. E eu cantava para ele: ‘Oi, Ianga, que te poi, Ianga/ Didianga me/ Ianga, Ianga, que te poi, Ianga/ Didianga me/ Ele trouxe na sua munganga, ê/ Didianga me/ A felicidade e deu/ Aos filhos seus/ Ninguém mais lamenta e chora, Ianga/ Didianga me/ Ianga, Ianga, que te poi, Ianga/ Didianga me’.”
Por ser autor de um livro – que, felizmente, caminha para a 3ª edição – sobre Dona Ivone Lara, recebi o presente de poder estar algumas vezes com a biografada e conviver de perto com essas inspirações que surgiam fluentemente de um manancial inesgotável de linhas melódicas tão raras quanto sobrenaturais.
Numa das últimas vezes em que estive na casa de Dona Ivone e sua família, em Madureira, ela estava sentada no quintal, solfejando uma doce e magnética melodia. Me aproximei e perguntei que música era aquela que até então eu desconhecia. Ao que Dona Ivone respondeu: “Esta apareceu hoje de manhã. Acabei de terminar, meu filho”.
Felizmente, o país de Dona Ivone tem na ponta da língua ao menos uma dezena de suas composições. Vale abrir um breve parênteses para relembrar – segundo levantamento do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) – as dez canções mais regravadas de Ivone Lara: Sonho meu, Acreditar, Alvorecer, Nasci pra sonhar e cantar, em parceria com Délcio Carvalho; Enredo do meu samba e Tendência, com Jorge Aragão; Mas quem disse que eu te esqueço?, com Hermínio Bello de Carvalho, Tiê, com os primos Hélio e Fuleiro; Os cinco bailes da história do Rio, com Silas de Oliveira e Antônio Bacalhau; e Alguém me avisou, composto apenas por ela.
Se por um lado comemora-se o fato de muita gente conhecer essas “10 mais” de Dona Ivone, por outro lamenta-se que boa parte do público, incluindo os amantes e fiéis estudiosos do samba, desconheça o restante da obra. Há no cancioneiro de Ivone outras 140 músicas do mesmo quilate.
Que iniciativas louváveis como o Relicário, do Sesc, sigam jogando luz sobre este repertório inspirado, convidando o Brasil a conhecer de fato quem foi a maior compositora mulher do país, Yvonne da Silva Lara.
Lucas Nobile é jornalista, pesquisador, crítico musical e autor de Dona Ivone Lara: a primeira-dama do samba (Sonora Editora) e de Raphael Rabello: o violão em erupção (Editora 34). Curador e diretor artístico da Mostra Dona Ivone Lara: Axé!, realizada pelo Sesc Mogi das Cruzes em 2023. Consultor da Ocupação Dona Ivone Lara, exposição realizada pelo Itaú Cultural em 2015. Também colabora com a Rádio Batuta (IMS).
Sobre Relicário: Dona Ivone Lara (Ao vivo no Sesc 1999), leia também:
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