O clássico romance da literatura afrofeminista brasileira “Um defeito de cor”, lançado pela escritora mineira Ana Maria Gonçalves, completa 18 anos em 2024 e é usado como uma espécie de matriz para exposição de mesmo nome. Com curadoria de Amanda Bonan e Marcelo Campos, a exposição “Um defeito de cor”, MAR, Rio de Janeiro, e temporada no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (MUNCAB), em Salvador, chega à capital paulista, no Sesc Pinheiros, no dia 25 de abril e reúne aproximadamente 370 obras de diferentes recortes artísticos.
Luiz Gama, s.d. | Autoria desconhecida
O LIVRO
“Um defeito de cor”, ganhou o prêmio literário Casa de las Américas, em 2007. Ele narra a trajetória de Kehinde, uma mulher que ainda criança foi capturada na África e trazida ao Brasil em contexto de escravização. Ana Maria dedicou um total de cinco anos ao projeto dessa história: dois para pesquisa, um para a escrita inicial e dois para reescrevê-la, meticulosamente revisando documentos e escritos da época para embasar o enredo.
O romance tem a Bahia como cenário e a história é contada em primeira pessoa e entrecortada por acontecimentos, contextos sociais e culturais do século XIX, narrando a saga da personagem para realizar o sonho de liberdade e reconstruir a vida após comprar a própria alforria.
A protagonista Kehinde é inspirada em Luisa Mahin, uma figura emblemática do período colonial brasileiro, reconhecida como um ícone da resistência negra no país. Ela é considerada uma heroína da Revolta dos Malês, o maior levante de escravizados na história do Brasil, que ocorreu em Salvador em 1835. Acredita-se que Luisa Mahin tenha nascido por volta de 1812 na região da Costa da Mina e posteriormente trazida como escravizada para Salvador. Ela é reconhecida como a mãe do abolicionista Luís Gama.
(ou Absência), 2022 | Priscila Rezende
A EXPOSIÇÃO
A exposição foi idealizada e concebida pelo Museu de Arte do Rio (MAR), em parceria institucional com a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), e agora sendo realizada pelo Sesc SP.
“Um Defeito de Cor” proporciona uma reflexão profunda sobre a diáspora africana, destacando as experiências dos africanos escravizados e seus descendentes no Brasil e explorando como essas experiências moldaram a sociedade brasileira contemporânea. Combinada de elementos históricos com expressões artísticas contemporâneas para abordar as questões da escravidão e suas consequências.
No Sesc Pinheiros, novidades não tidas nas edições anteriores chegam com destaque, incluindo os figurinos e croquis das fantasias do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela. Essas criações, assinadas pelo artista e carnavalesco Antônio Gonzaga, foram inspiradas no livro de Ana Maria para compor o samba-enredo do Carnaval 2024, no Rio de Janeiro.
Além de ser uma experiência artística, “Um Defeito de Cor” também tem um impacto social e educacional significativo, promovendo o diálogo e a conscientização sobre questões de justiça racial e igualdade no Brasil e além.
Acervo Muncab (Museu Nacional da Cultura Afro-Brasilieira) | Autoria desconhecida
ABRE ALAS
Assim como o livro “Um Defeito de Cor” é dividido em 10 capítulos, a exposição recria esses núcleos, cada um abordando aspectos específicos da história e da experiência dos personagens, através de uma variedade de elementos, como objetos, tecidos, desenhos, pinturas, esculturas, fotografias, vídeos, áudios e instalações, muitos dos quais são criados por artistas negros e negras, incluindo aqueles de origem africana.
As alas da exposição incluem:
Cosmogonia e Perda Familiar: Explora os processos cíclicos de vida e morte pela ótica da cosmogonia, destacando a perda da família de Kehinde no Benin pré-colonização e seu subsequente envolvimento no tráfico transatlântico.
Brasil Colônia: Reflete sobre o cotidiano de Kehinde no Brasil Colônia, desde seu desembarque na Baía de Todos os Santos até sua jornada por diferentes territórios.
Divisão do Trabalho Escravo: Retrata a divisão do trabalho a que os escravizados foram submetidos em ambientes domésticos, urbanos e rurais.
Resistência e Aquilombamentos: Registra a resistência dos negros escravizados e os planos de liberdade traçados através dos aquilombamentos.
Recusa ao Sistema Escravocrata: Aborda a recusa comunitária ao sistema escravocrata e ao sincretismo religioso praticado no território colonizado.
Revoluções e Revoltas: Explora as revoltas populares contra a colonização europeia durante o período Regencial, como a “Noite das Garrafadas” no Rio de Janeiro, a “Sabinada” na Bahia e a “Balaiada” no Maranhão.
Festas Afro-religiosas: Dedica-se às festas afro-religiosas no Brasil, como o “Presente de Iemanjá” em Salvador.
Espiritualidade e Comércio de Escravos: Aborda intuições espirituais, sonhos e o comércio de crianças escravizadas em São Paulo, além das moradias improvisadas no Rio de Janeiro.
Presença Cultural dos Agudás: Narra a presença cultural dos Agudás, africanos libertos que retornaram ao país de origem.
Tragédia e Reencontro: Finaliza com a tragédia que novamente encontra Kehinde, incluindo a perda de seus netos e a descoberta de uma carta escrita por ela durante seu retorno ao Brasil.
Cada ala oferece uma visão detalhada e imersiva da história e da vida dos personagens, proporcionando ao público uma compreensão mais profunda das experiências dos africanos e afrodescendentes no Brasil colonial e pós-colonial.
Balangandã | Autoria desconhecida (Bahia)
CURADORIA
Sobre Amanda Bonan
Amanda Bonan, nascida em Niterói em 1981, é doutora em Artes pela USP e mestre pela UERJ. Desde 2017, atua como coordenadora da equipe de curadoria do MAR, sendo responsável por exposições como “Crônicas cariocas”, “Um defeito de cor” e “Funk – um grito de ousadia e liberdade”.
Sobre Ana Maria Gonçalves
Ana Maria Gonçalves é uma renomada escritora, sócia fundadora da Terreiro Produções. Após 15 anos na publicidade, dedicou-se à literatura, produzindo obras como “Um defeito de cor”, vencedor do prêmio Casa de Las Américas em 2007. Viveu nos EUA por oito anos, onde ministrou cursos sobre questões raciais. Além de escritora residente em universidades como Tulane, Stanford e Middlebury, é roteirista, dramaturga e professora de escrita criativa. Reside em São Paulo e é cocuradora da premiada exposição “Um defeito de cor”.
Sobre Marcelo Campos
Marcelo Campos, nascido, residente e atuante no Rio de Janeiro, é professor associado do Departamento de Teoria e História da Arte da UERJ. Ele também desempenha o papel de curador chefe no Museu de Arte do Rio. Possui doutorado em Artes Visuais pela UFRJ, onde sua tese abordou o conceito de brasilidade na arte contemporânea. Seus escritos sobre arte brasileira foram publicados em diversos periódicos, livros e catálogos nacional e internacionalmente.
Acervo | Ruth Landes
CURIOSIDADE
O título “Um Defeito de Cor” explora as trajetórias de diferentes grupos étnicos em diáspora e suas lutas pela liberdade no Brasil. O título refere-se a um conceito histórico equivocado que relacionava cor e supostos defeitos raciais, uma ideia popular no século XIX. Na época, a racialidade era interpretada de acordo com ideias positivistas, sugerindo que pessoas de origens racializadas, indígenas e negras, possuíam supostos defeitos biológicos, como menor inteligência ou predisposição ao crime, sem considerar as questões sociais e políticas que moldam cada indivíduo. A cor da pele era usada para justificar o que a sociedade considerava como defeito.
Histórias de Ogum, 2014 | J. Cunha
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