A potência da alegria, por Muniz Sodré

06/05/2024

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No percurso de nossa movimentação libertária, habituamo-nos à dialética negativa das vitimizações e dos ressentimentos. Confrontamos poderes com o “não”. Mas na etimologia da palavra “poder” se encontra o sentido de fazer. Existe de fato o “poder de fazer”, ou seja, não apenas a estrutura institucional que subordina a coletividade, mas a capacidade interna do indivíduo de agir a partir de sua própria experiência existencial e, soberanamente, dizer “sim”.

Esse é o caminho de entendimento para o que o pensamento nagô chama de “axé”, palavra conhecida no Brasil por suas relações com a musicalidade baiana. Mas é um conceito relevante na filosofia afro, porque axé é precisamente potência, poder de fazer ou não fazer. É a faculdade de sentir, portanto, de experimentar a comunicação original do ser humano com o mundo. O sentir é o corpo enquanto compreensão primordial.

Surge daí a ideia de corporeidade, não como substância da carne humana, mas como uma máquina de conexão das intensidades num plano imanente ao grupo, um sujeito coletivo. Corporeidade é a coleção dos atributos de potência e ação, diferente dos atributos individuais, do mesmo modo que um grupo é diferente de seus membros constitutivos.

Aí se dá a sagração do princípio de sensorialização da linguagem pela voz, como a fonte do fazer poético, isto é, como a linguagem que escapa ao circuito das trocas sociais e conduz ao plano da sabedoria, portanto, da singularidade ou do sentido corporal. Da poesia nasce sensorialmente o sentido. Igual à potência, caracterizada por Aristóteles como um pensamento que pensa a si mesmo, a poesia introduz uma alternativa suspensa no discurso enquanto prática social de linguagem.

É no contexto simbólico do axé que a alegria desponta como potência do sujeito. Alegria entendida como regência de afetos: a afinação (no sentido musical do termo) de todos os sentidos, que se faz reconhecer pelos sentimentos de júbilo, regozijo e gozo. Ela surge de um tempo próprio, como na celebração festiva, quando a alma ganha autonomia e força diante das agruras físicas e mentais. Nela o real não emerge da temporalidade abstratamente criada pelo capitalismo absoluto que hoje satura a existência humana de conexões velozes. Emerge, sim, da singularidade das coisas, no aqui e agora do mundo, como força vital do povo.

Encontro de blocos afro de São Paulo. Foto: Divulgação

Muniz Sodré é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escritor com cerca de 40 livros publicados nas áreas de estudos de mídia e cultura brasileira. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional. É colunista da Folha de São Paulo.

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