É de direito enredar um tecido singular e coletivo 

17/05/2024

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“O saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal […] a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida […]” 
¹(Larrosa, 2002, p. 123)

Vivemos um constante ataque ou uma negação dos direitos humanos fundamentais e há falta ou desvalorização de políticas públicas LGBTQIAP+. É importante refletir sobre as propostas de mediação cultural e visibilidade por meio das ações dos movimentos de resistência, de identidade cultural, das mudanças de representação identitária e de grupos vulnerabilizados que possam ofertar trabalhos orientativos e educativos à sociedade e aos públicos diversos como alternativa a movimentos hegemônicos.

O direito de pertencer a algum lugar e de se reconhecer em algo que genuinamente faça sentido é necessário e pode ser inverso a um apagamento social que seria reforçado frente a um processo de “pasteurização”, de padronização universal provocada por um contexto em que vivemos. No lugar de sumir, como “gente” que somos, resistimos à ação de se tornar igual a todos.  

Há um efeito oposto que faz abrir espaços para novas e maiores identidades locais em períodos em que se queira uniformizar tudo². Onde a experiência única de cada pessoa junta-se ao emaranhado de outras vivências para se criar conexões, desmanchando um tecido homogêneo, endurecido, fortalecendo, assim, um espaço de elos singulares, tão característico de um tecido humanizado. Com isso, se acaba produzindo uma teia acolhedora, uma rede de apoio com experiências únicas, que recebe e representa aquele que está agora coberto, aquecido, protegido ou não pela lei. 

Até este ponto, já se pode entender que existe um sujeito que vai carregando sua experiência por onde passa e ao mesmo tempo, ao interagir com os outros, torna-se, ele mesmo, um grupo. Mas quem, de fato, é esta pessoa que está escrevendo? Eu sou João Doescher, hoje moro próximo à zona oeste de São Paulo, em Osasco. Nasci em uma família dita tradicional, com poucas condições financeiras, no interior árido de São Paulo, em Presidente Epitácio. Desde cedo, aprendi o valor do trabalho árduo e a luta diária em um mundo onde as oportunidades eram poucas. Porém, quando pequeno as histórias dos mais velhos me encantavam porque traziam o oposto, muitas outras possibilidades de vida. Ouvia muitas narrativas da Oma, minha bisa, de outros lugares de sua infância na Alemanha. Da minha vó Helena e a importância de ela ter ido para São Paulo trabalhar. Sempre soube que havia algo além dos limites da nossa pequena cidade. 

Na medida em que eu crescia, minhas ânsias também, uma sensação de inadequação ainda sem nome, querendo uma mudança, desejando uma fuga, mas não somente para fora da cidade, havia um desdobramento interno, um olhar lá para dentro, precisava entender minha própria identidade, incluindo minha sexualidade. Era aquele momento inerente a todos, buscar um ambiente, um lugar de identificação. 

Ao meu redor, os modelos de famílias e comportamento se repetiam e eu não me encaixava em nenhuma função. Ser o filho mais velho, ser o aluno, ser somente do grupo dos meninos e fazer o esporte determinado. Essa sensação de estar deslocado, mesmo sem conseguir nomeá-la, ainda deixava minha cabeça em alerta. Mesmo assim, tentava, sentia a necessidade de ser o melhor, de ser indispensável naqueles lugares, de ter importância. Mas, era evidente, sabia que não conseguiria representar aqueles papéis como os demais. 

E foi pelos estudos que muita coisa se desenrolou. Descobri formas de existir e de me relacionar com o mundo. Pude observar a presença de pessoas negras ao meu redor, reconheci a existência de pessoas trans e testemunhei uma grande diversidade de maneiras de performar no mundo. 

 Entendi que não apenas habitamos um espaço físico, mas que este é também um campo de experimentações, onde as normas sociais e culturais ditam quem pode ocupar determinados espaços. Foi nesse mundo que me entendi um homem gay. Ao entrar em contato com diferentes comunidades e perspectivas no cotidiano universitário, percebi que minhas próprias lentes estavam distorcidas pela falta de exposição a outras realidades. Com isso, considero que falar sobre as diferenças é, essencialmente, falar sobre direitos humanos. 

Nesse trajeto, desenrolei outros fios e descobri um espaço de atuação que me movimentou de dentro para fora. Completei a formação em Biblioteconomia e iniciei minha jornada no Sesc, no programa BiblioSesc. Como foi significativo. Fui designado para as periferias da zona sul de São Paulo, onde participei ativamente de diversos projetos, estabeleci conexões com a comunidade em reuniões chamadas de “teias”. 

Essas interações trouxeram um trabalho apaixonado e único com livros e leitura. E entendi, de fato, que até as leituras podiam ser itinerantes, sair do centro privilegiado e abarcar a margem. Fazer sonhar era prioridade, para aquelas pessoas também; era uma resistência às realidades difíceis e não é que me lembrei novamente das histórias das avós, aquelas que me fizeram sair do lugar. Nossas trajetórias individuais nos tornam quem somos, mas também nos conectam a um tecido mais amplo de humanidade, onde a aceitação e a celebração da diversidade são a base para uma rede social mais forte.  

Dessas possibilidades de representatividade social, lembro ainda da minha atuação no Vale do Ribeira, onde as conexões foram com as comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas.

Hoje trabalho em um núcleo dedicado aos Direitos Humanos, com foco na expressão cultural das pessoas em situação de refúgio. Tenho o privilégio de colocar a minha voz para promover diálogos abertos sobre questões que valorizam diversas culturas e modos de ser e estar no mundo, que valorizam a diversidade que nos amplia.

Ao compartilhar minha história e apoiar aquelas pessoas que ainda estão em busca de dignidade e respeito, acredito na construção de um mundo onde se tem “Legítima Diferença”³, onde as singularidades possam ser celebradas, vestidas e mostradas como um tecido de força, resiliência e representatividade por direito. 

João Doescher é assistente técnico da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo no programa de Diversidade Cultural, gestor cultural pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, especialista em Projetos Sociais e Direitos Humanos e graduado em Biblioteconomia pela Unesp. Desenvolve projetos voltados à mediação cultural para formação de público e interação de sujeitos em atividades artísticas e práticas de leitura.






¹LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência Revista Brasileira de Educação, núm. 19, jan-abr, 2002, p. 20-28. 

²HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. 

³O projeto Legítima Diferença, do Sesc São Paulo, realiza ações voltadas a garantir o protagonismo, o reconhecimento de vivências e produções da população LGBTQIAP+, contribuindo para a desconstrução de preconceitos e estereótipos.


Acesse a programação completa do projeto Legítima Diferença em sescsp.org.br/legitimadiferenca

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