Uma celebração ao universo geek

29/05/2024

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Formado por fãs de animes, mangás, quadrinhos e outros elementos da cultura pop, universo geek é espaço para sociabilizar, trocar conhecimentos e construir identidades

Por Maria Júlia Lledó

Leia a edição de JUNHO/24 da Revista E na íntegra

Primeiro, os geeks foram chamados de “esquisitos”, “antissociais” e até de “estranhos” – criado no século 19, o termo geek vem de geck, palavra de origem alemã que significa “bobo”. Nomes pejorativos que em nada correspondem ao público diversificado, expressivo e antenado de seguidores da cultura pop que ocupam diferentes espaços das cidades nos dias de hoje. Formado por entusiastas de todas as idades, ávidos por animes, mangás e doramas, além de games, quadrinhos, séries e animações, o universo geek atravessa gerações, transformando-se continuamente.

Apesar de cativar um público que viveu a infância e a juventude na era analógica, o mundo geek está profundamente ligado ao desenvolvimento tecnológico, conectando-se com as juventudes devido à rapidez e constantes inovações da era digital. É o que afirma Sabrina da Paixão Brésio, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, “essa cultura não é uniforme ou consensual, e agrega grupos de interesse que se intercruzam e movimentam toda uma cadeia produtiva e criativa”, acrescenta.

Mas, por que a cultura geek é tão atraente para tantas pessoas? Uma das motivações pode ser explicada pelo fato de que somos seres que gostam de jogar, de brincar e do faz de conta, como defendeu o historiador e linguista holandês Johan Huizinga em Homo Ludens, obra publicada originalmente em 1938, praticamente quatro décadas antes do primeiro joystick ser disputado por irmãos, e mais de um século depois da criação dos primeiros mangás no Japão. “Fabulamos e simbolizamos como forma de imbuir sentido ao vivido, interpretar o que nos acontece e estabelecer contato com os demais”, explica Sabrina Brésio.

É também no campo da fantasia que se torna possível testar, tensionar, experimentar e especular sobre modos de viver e de conviver socialmente, analisa a professora. “O chamado faz de conta é imprescindível na formação da pessoa e da sua relação com a coletividade, e permanece presente nas práticas dos brincantes e dos festejos populares. Como sugere Huizinga, somos homo ludens, ou seja, seres lúdicos: aprendemos e nos relacionamos em uma dinâmica lúdica, a qual percebemos nas interações de bebês e crianças, e que se complexifica ao longo da juventude”, complementa.

CRIAR LAÇOS

Mais de cem mil fãs de animes e mangás seguem o perfil de João Saito no Instagram (@orewakou). Assim como seus seguidores, Kou, como é conhecido, sabe cantarolar a abertura de vários animes, reconhece cada mangá pela capa e sabe de trás para frente as falas dos filmes do estúdio japonês Ghibli [a exemplo das animações A viagem de Chihiro (2003) e O Menino e a Garça (2023)]. É que na infância, Kou teve o primeiro contato e tomou gosto pelos mangás por influência paterna, além de ter começado a assistir a animes e doramas [séries audiovisuais asiáticas], este último por causa do avô.

A conexão com essas expressões da cultura geek – assunto que Kou debate em seu conteúdo nas redes sociais – se intensificou depois que a família do influenciador teve de se mudar por um ano para Camaçari (BA). Com apenas nove anos, ele não conseguia fazer amigos na escola da nova cidade. “Eu ia todo dia chorando e falando para minha mãe que não queria ficar lá porque não conseguia me enturmar de jeito nenhum”, recorda. Até que nos últimos dois meses na Bahia, finalmente conseguiu sociabilizar. “Fiz esses dois amigos, que eram de uma outra sala, quando eu vi que estavam com uma bandana do Naruto [protagonista da série homônima de mangá e anime japonesa]. Ou seja, foi por conta de Naruto, Dragon Ball-Z [série de anime japonesa] e Grand Chase, um jogo da época, que eu não estava mais sozinho na escola”, relembra.

Hoje, aos 27 anos, Kou tem o próprio perfil no Instagram para reunir outras pessoas que, assim como ele, já se viram sozinhas. Encorajado por amigos, ele criou o espaço virtual em 2022 e, desde então, dá dicas de animes, promove concursos e encontros com o público, além de falar sobre mangás. “Eu cresci grande parte da minha adolescência vendo youtubers. Quero falar sobre esse universo, indicar coisas que eu gosto como se estivesse falando para novos amigos”, explica o criador de conteúdo digital.

Nos eventos que participa, Kou observa não só a nostalgia como elemento recorrente do universo geek – “vejo vários cosplayers de Os Cavaleiros do Zodíaco, um anime de quando eu era criança, então acho que também tem disso, de buscar sua criança interior no cosplay”. Mas tem também, segundo o influenciador, um movimento que aproxima gerações. “Nos vídeos que eu faço, converso com uma pessoa de 40 anos, e logo depois com uma pessoa de 16. Provavelmente, se essa pessoa de 40 tiver filhos, ela vai passar esse gosto por mangás e animes, assim como fez meu pai”, vislumbra.

GEEK DA QUEBRADA

Ao juntar grupos de diferentes territórios, origens e idades, eventos que celebram a cultura geek podem ser considerados espaços para criação de laços sociais e nutrir o sentimento de pertencimento. “Artistas e fãs questionam mais abertamente a normatividade recorrente, até então, nas produções midiáticas e nos eventos”, observa a professora Sabrina da Paixão Brésio. Em São Paulo, por exemplo, iniciativas como a feira de quadrinhos e artes gráficas POC CON, protagonizada por artistas LGBTQIA+, e a Perifacon, conhecida como a primeira convenção nerd das favelas, furam a bolha do lugar-comum.

“A Perifacon descentraliza os eventos pop para as periferias e garante acesso ao público mediante gratuidade, além de ser um espaço preferencial para artistas das quebradas”, exemplifica Brésio. Criada por sete amigos, esta é uma iniciativa de amantes de quadrinhos, livros, desenhos e cultura pop que cresceram nas periferias paulistanas, como explica uma de suas fundadoras, Andreza Delgado: “A gente quer trazer outra perspectiva sobre a quebrada: essa quebrada que quer ter acesso à tecnologia e que está produzindo cultura é que quer democratizar a cultura nerd e geek. Então, a Perifacon nasce desse desejo inconsciente, eu diria, de democratizar a cultura nerd/geek no país”.

Da primeira edição, em 2019, no Capão Redondo, à terceira, em 2023, na Brasilândia, o público do Perifacon passou de 4 mil para 13 mil pessoas. Neste ano, a iniciativa estima 15 mil visitantes nos dias 27 e 28 de julho, na Fábrica de Cultura de Diadema, zona Sul da cidade. Na programação, painéis, bate-papos, oficinas, concurso de cosplay e outras atividades, além da participação de artistas das periferias e do mainstream. “A gente quer o baile funk, a gente quer a roda de samba, mas a gente quer o evento geek também, porque quer quebrar a expectativa desse preconceito de que a gente cabe nas caixinhas”, defende Delgado.

Ao longo dos anos, a fundadora da Perifacon conta que a iniciativa também se entendeu enquanto um braço educacional. “Depois de cinco anos, posso dizer que não somos só um evento.” Hoje, nas escolas, a Perifacon realiza um trabalho junto a professores e estudantes. “A gente foi percebendo que precisa estar muito conectado com o território que vai nos receber. É muito importante estar dentro da sala de aula porque a gente troca com os estudantes. Fala sobre quem quer ilustrar, quem quer produzir seu próprio game, traz outras possibilidades de coisas que, por exemplo, para mim ia ser muito legal ter ouvido”, acrescenta.

EXPANDIR TEMAS

Somada a iniciativas como a da Perifacon, que amplia o raio de atuação de produtores e consumidores da cultura geek, empresas como a Game Arte olham para os jogos como uma possibilidade de crianças, adolescentes e jovens aprenderem novos conhecimentos. Atriz e roteirista de jogos, Tainá Félix, junto ao sócio Jaderson Souza, criou a empresa há 13 anos. “Eu entrei nesse universo pelo viés da educação, entendendo que o videogame é um espaço de cultura, um objeto da cultura e um recurso interessante para pensar espaços de aprendizagem”, recorda.

No começo, Félix e Souza dedicavam-se a atividades socioeducativas com videogame em bibliotecas, fábricas de cultura e escolas até investirem, também, na possibilidade de outra contribuição dentro desse universo: o desenvolvimento de jogos com um recorte racial e de valorização da cultura nacional e das culturas negras. Da formação em teatro e experiência na criação de personagens, Félix passou, nos últimos sete anos, a roteirizar esses enredos digitais. O primeiro game lançado foi A Nova Califórnia (2017), baseado em conto homônimo do escritor Lima Barreto (1881-1922). “A gente levou o Lima Barreto para ser jogado em um zilhão de lugares diferentes – ele foi baixado em mais de 70 países –, isso é muito importante”, comemora a roteirista.

O segundo jogo, Amora (2018), conta em versos a história de uma vampirinha, com a mesma dinâmica do Pac-Man [famoso jogo eletrônico dos anos 1980]. Já a trilogia Sankofa Arcade faz parte de um universo afrofuturista no qual o primeiro jogo se chama É Doce! (2022), o segundo, Ilê (2023), e o terceiro, que será lançado neste ano, Ore, e fazem uma referência à Sankofa, filosofia africana da circularidade do tempo. “Quase todos os personagens dos jogos AAA (mainstream), ao representarem personagens brasileiros, fazem referência a samba, futebol ou capoeira. Mas, a gente tem muitas outras formas de representar corpos diversos e precisa disso para que consiga gerar essa identificação”, defende.

Diante da vastidão de possibilidades deste universo, a professora Sabrina da Paixão Brésio recomenda cuidado ao delimitar os potenciais da cultura geek. “Reconhecê-la como um conjunto de culturas, sempre no plural, organizadas em comunidades, com linguagens, costumes e mobilizações simbólicas próprias, é dar um passo a mais para se aproximar da riqueza artística e social que permeia nosso cotidiano. Mais do que conhecer, o convite é re-conhecer o quanto cada um e uma de nós já está imerso neste caldo cultural, e nos permitir fruir, se divertir, questionar e criar junto às juventudes”, conclui.

Cultura geek

Sesc São Paulo realiza diversas ações dedicadas a games, mangás, cosplay, animes e quadrinhos

Entre os dias 7 e 9 de junho, o Sesc Rio Preto, no noroeste paulista, é ocupado por milhares de gamers, kpoppers, otakus, cosplayers e outras tantas tribos que povoam o universo geek. O Animerp, é uma das atividades realizadas pelo Sesc São Paulo em celebração a esse universo criativo. Ao longo do ano, unidades do Sesc em todo o estado oferecem encontros, feiras, bate-papos, vivências e cursos que convidam o público a experimentar esse diversificado universo, atraindo diferentes idades.

Para Flávia Carvalho, gerente da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, “por meio da interação com a cultura geek, o público juvenil impulsiona uma riqueza de experiências, que transcendem fronteiras e épocas”, explica. Pensando nisso, “o programa Juventudes do Sesc São Paulo ressoa como um farol de valorização e incentivo à produção cultural juvenil, que acolhe expressões artísticas e formas criativas de manifestação, como este universo geek, que se mescla com a diversidade que compõe a sociedade, e une entusiastas de todas as origens e idades na celebração de afinidades comuns”, acrescenta Carvalho.

De acordo com Juliana Braga de Mattos, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, “O programa de Tecnologias e Artes do Sesc São Paulo tem em sua vocação o desenvolvimento artístico, de potência criadora, sendo, portanto, natural que os ETAs – Espaços de Tecnologias e Artes – sejam um terreno fértil e acolhedor para as expressões das comunidades nerds e geeks. Não por acaso existem na instituição projetos longevos voltados a esses ‘multiversos’, como são @Geek e NerdCon, e temos visto, ano a ano, novas iniciativas florescerem na relação entre unidades e seus territórios”, pontua.

Confira destaques deste e dos próximos meses:
RIO PRETO

Animerp

Evento reúne ícones do universo geek com elementos das culturas orientais.

De 7 a 9/6, sexta a domingo. GRÁTIS.


GUARULHOS

GuaruGeek

A unidade da Grande São Paulo estreia seu evento geek.

Dias 20 e 21/7, sábado e domingo. GRÁTIS.


RIBEIRÃO PRETO

@Geek

Ponto de encontro e de difusão da cultura geek, com oficinas, vivências e apresentações.

Dias 20 e 21/7, sábado e domingo. GRÁTIS.


REGISTRO

FicFan

A região do Vale do Ribeira celebra a cultura geek em evento para todas as idades.

Dias 24 e 25/8, sábado e domingo. GRÁTIS.



ARARAQUARA

Geekarr

Segunda edição com ações de cultura pop, maker, artes e tecnologias.

Dias 7 e 8/9, sábado e domingo. GRÁTIS.


CATANDUVA

Jovem On

Dois dias para celebrar a cultura diversa dos animes, quadrinhos, cosplays e mangás.

De 25 a 27/10, sexta, sábado e domingo. GRÁTIS.

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