Cuidando dos cuidados: exemplos de iniciativas de cuidado comunitárias ou de apoio às famílias e às comunidades no Brasil

14/06/2024

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Por Bibiana Graeff

A comunidade pode ser um importante ator na prevenção da violência contra a pessoa idosa. Exemplo disso, foi o dado da delegacia da pessoa idosa de Vitória (ES) no sentido de que, durante a Pandemia da Covid-19, embora tenha havido uma diminuição de denúncias de violência realizadas pelas próprias pessoas idosas, registrou-se um aumento de denúncias realizadas por vizinhos, provavelmente pelo fato de haver mais pessoas em suas casas, devido às medidas de quarentena. Uma vizinhança e uma comunidade conscientes, sensibilizadas e atentas às questões da violência, podem ajudar no enfrentamento deste problema social. Mais do que isso, quando há um envolvimento comunitário em relação aos cuidados da pessoa idosa, há um grande potencial preventivo em relação a essas ocorrências, ainda mais em um país como o Brasil, onde os cuidados em relação às pessoas idosas com algum grau de dependência, aquelas mais suscetíveis à violência, ocorrem majoritariamente em domicílio. 

Os cuidados, como forma preventiva às situações de isolamento e violência em relação às pessoas idosas, podem ser concebidos numa perspectiva mais estrita, a dos cuidados em relação às atividades básicas ou instrumentais da vida diária, ou numa perspectiva mais ampla, que envolve a atenção e a promoção de bem-estar e formas de inclusão e participação.

Exemplo de uma iniciativa comunitária de cuidados no sentido amplo do termo é um espaço artístico, cultural e de acolhimento chamado Casa da Tita, no Rio Tavares, praia do Campeche, no sul da Ilha da cidade de Florianópolis. Trata-se de um espaço aberto de encontro e de artivismo em torno da música experimental e autoral existente há mais de 20 anos na residência da médica psiquiatra, artista e clarinetista Tita Shames[1]. Todas as segundas-feiras, Tita abre as portas de casa para pessoas que vêm ouvir, cantar ou tocar música de forma livre e espontânea. O que era inicialmente um encontro de amigos, tornou-se um espaço comunitário, auto-gerido, que não é nem um empreendimento comercial, nem uma instituição. É um lócus acolhedor da diversidade, inclusive etária. O grupo é intergeracional desde suas origens, uma vez que envolvia, entre seus fundadores, a Tita e seus filhos. Hoje, a intergeracionalidade segue como uma das marcas fortes da ambiência dos encontros, com a presença de pessoas idosas, adultas, jovens e crianças. Há pouco tempo, uma senhora de 96 anos de idade, com o desejo de ouvir sua neta cantar, quis comemorar o seu aniversário na Casa da Tita. Por coincidência, no mesmo dia, uma menina de 7 anos também quis comemorar seu aniversário na Casa. Ambas levaram um bolinho e tiveram um “Parabéns pra você” cantado de forma coletiva. Existem pessoas assíduas que frequentam a Casa semanalmente e pessoas novas que, a cada semana, descobrem o espaço pela primeira vez. É possível observar uma ética do cuidado presente em todos os detalhes: na ocupação dos assentos, na preocupação com a acessibilidade, com pessoas com alguma dificuldade de locomoção, com os animais que também circulam livremente na sala e com a própria casa. Durante a pandemia da Covid-19, os encontros mantiveram-se de forma online, com cuidados redobrados em relação às pessoas que residiam sozinhas ou que precisavam de alguma forma de apoio. Na realidade, mesmo após o período pandêmico, se percebe que se criou, entre os frequentadores da Casa, uma rede de afetos e de atenção que extrapola os encontros semanais, gerando trocas e ações interpessoais e coletivas de solidariedade, de apoio e de amizade, mas também colaborações diversas, intervenções e reflexões envolvendo diversas expressões artísticas e uma preocupação com questões coletivas de perspectiva local ou mais ampliada.

Para os cuidados de longa duração de pessoas idosas em nível familiar e comunitário, relevantes iniciativas em curso no Brasil são os cursos e ferramentas de capacitações de cuidadores informais. Uma interessante ferramenta nesse sentido é o Programa ISupport adaptado para uso no contexto brasileiro. Trata-se de uma plataforma interativa desenvolvida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para apoiar e proporcionar educação em saúde aos cuidadores informais de pessoas com demência[2]. Quanto aos cursos presenciais ou com aulas síncronas de capacitação, uma das inúmeras iniciativas gratuitas existentes é a “Oficina de sensibilização para cuidadores familiares de idosos”, ofertada em sua sexta edição, enquanto projeto de extensão universitária na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e coordenado pela Profa. Dra. Marisa Accioly, docente do Curso de Bacharelado e do Curso de Pós-Graduação em Gerontologia da EACH/USP[3]. Em suas primeiras edições ofertado com aulas presenciais, o curso passou a ser online a partir da pandemia da Covid-19. Manteve-se a distância após a pandemia em função da preferência por essa modalidade manifestada pelos participantes em suas avaliações, uma vez que na modalidade presencial, não tinham com quem deixar a pessoa cuidada. Atualmente, os 100 participantes do Curso são sorteados pela USP entre as inúmeras inscrições provenientes de diversas cidades brasileiras.   

 Um inovador projeto comunitário de cuidados é o Favela Compassiva, que, desde 2018, presta, através de uma rede de voluntários, cuidados paliativos e apoio a cuidadores na Rocinha e no Vidigal, na cidade do Rio de Janeiro[4]. Conforme o enfermeiro e professor Alexandre Silva, um dos idealizadores do projeto: “Na Favela Compassiva Rocinha e Vidigal, 98% das voluntárias são mulheres, a maioria negras, mães, diaristas, cuidadoras de pessoas idosas, que no seu horário de folga, quer ajudar a sua própria comunidade”[5]. O projeto se baseia no conceito internacional de comunidades compassivas, e já existem outras iniciativas de comunidades compassivas em curso no Brasil, como em Goiânia e em Belo Horizonte[6].

Outra iniciativa a ser destacada é a do Coletivo Filhas da Mãe, “criado no final de 2019 por cuidadoras familiares de mães com demências e Alzheimer para estimular o cuidado e o autocuidado”, com atuação online e presencial no Distrito Federal[7]. Criadoras dessa iniciativa, a jornalista Ana Castro e a psicóloga Cosette Castro mantêm um blog no Correio Braziliense com informações, reflexões e atualizações sobre as atividades do coletivo, como as caminhadas nos parques de Brasília[8]. Com o intuito não só de promover o cuidado às pessoas com Alzheimer mas também aos cuidadores, geralmente cuidadoras, informais, o coletivo aposta, entre outras ações, em atividades culturais e de lazer, como a original formação de um bloco de carnaval[9].

Nas grandes metrópoles, são de grande importância as iniciativas comunitárias implementadas na escala dos bairros. Exemplo nesse sentido é o trabalho desenvolvido pela organização não-governamental “Instituto Amigos da Praça”. Fundada há 20 anos no Bairro do Brás, em São Paulo, a organização surgiu a partir de uma reivindicação da população por áreas verdes no bairro, que resultou na criação do Parque Benemérito Brás. Liderada pela professora de educação infantil aposentada Márcia Sakurata, a organização congrega quase que exclusivamente mulheres idosas moradoras do bairro, que se reúnem semanalmente para a realização de atividades físicas no Parque, ministradas por professores de diversas modalidades. As atividades do grupo se baseiam no voluntariado, e as participantes contribuem pontualmente com valores financeiros, de acordo com sua possibilidade, para  financiar atividades como festas, jantares ou outras intervenções. Outras atividades realizadas pelo grupo são contações de histórias em escolas de educação infantil, plantio de orquídeas no bairro, distribuição de doações em entidades. O grupo também tem sido interlocutor e colaborador de atividades realizadas em parceria com instituições de ensino superior da zona leste, como a Universidade São Judas (que promove intervenção de diversos profissionais e estudantes junto ao grupo) e a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (com quem a ONG colaborou no desenvolvimento e na implementação da pesquisa “Bairro Amigo da Pessoa Idosa/Brás e Mooca”, do qual resultaram a formação de um grupo e de algumas intervenções nos bairros). Assim como muitas iniciativas, a ONG também funciona hoje de forma virtual, com reuniões a distância e com grupos bastante ativos nas redes sociais.  

Com efeito, observa-se em muitas das iniciativas aqui apresentadas que a pandemia da COVID-19 foi um acelerador para que muitas das iniciativas comunitárias de cuidados e atenção à pessoa idosa no Brasil incorporassem em suas práticas de comunicação e de atuação a modalidade virtual, via internet.  As comunidades não são apenas territoriais, mas também intencionais. Os diversos conceitos de comunidade “podem contemplar tanto uma dimensão territorial ou socioespacial, quanto uma dimensão finalística, intencional ou identitária; a comunidade se manifesta, assim, em termos objetivos e subjetivos”[10]. Como destacam Graeff e Bestetti (2022, p. 1325):

A própria existência de um local comum foi dispensada, e noção de território se ampliou, posto que “comum não é a geografia física, mas a das ideias, de valores partilhados” (Lazzari et al., 2017). Fala-se de comunidades intencionais, de comunidades planejadas ou ainda de comunidades virtuais (Emerman, 1997). O que permanece nas comunidades, onde estiverem, “em geografias físicas ou virtuais”, é a necessidade de solidariedade (Lazzari et al., 2017). 

No entanto, para se pensar em iniciativas comunitárias que promovam os cuidados em relação às pessoas idosas como direito e não como assistencialismo, é necessário mais do que solidariedade, é preciso políticas públicas de apoio e promoção a essas iniciativas. É preciso que os cuidados em comunidade sejam assegurados não apenas de forma voluntária, mas também de forma remunerada, com o aproveitamento e a devida valorização do imenso capital social que representa uma rede comunitária de cuidados devidamente capacitada e bem articulada com as famílias e com os serviços de Estado. Acreditamos que essa possa ser uma maneira ética, humanizada e econômica, com benefícios para toda a sociedade, de promoção do bem-estar e de prevenção da violência em relação à pessoa idosa.

bibiana graeff, campanha de conscientização da violência contra pessoas idosas

Bibiana Graeff

Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Direito Ambiental pelas Universités de Paris 1 – Panthéon Sorbonne e de Paris 2, Panthéon-Assas (2003) e doutorado em Direito pela Université de Paris 1, Panthéon-Sorbonne, e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008), em regime de co-tutela. É professora adjunta da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Leciona, entre outras disciplinas na graduação em Gerontologia da EACH: “Direitos Humanos e Envelhecimento”, atuando igualmente nas áreas do Direito Ambiental e do Direito Internacional Público. É membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da EACH/USP (Linha de Pesquisa: Gestão Gerontológica). É membro do Programa de Pós Graduação em Direito da Faculdade de Direito da USP (área de concentração: Direitos Humanos). Lidera o grupo de pesquisa: “Direitos Humanos, Envelhecimento e Velhice”. Atualmente, é vice-coordenadora do Curso de Bacharelado em Gerontologia (EACH/USP). Desde 2015, é responsável pelo convênio de Cooperação entre a EACH/USP e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para atividades de estágio dos estudantes de Gerontologia nesta instituição.  


Este texto faz parte da Campanha de Conscientização da Violência contra Pessoa Idosa, realizada de 11 a 16 de junho pelo Sesc São Paulo. Em 2024, as ações têm como tema “Cuidado em Comunidade”, com diversas atividades em unidades de todo o estado. Acompanhe a programação pelo site: sescsp.org.br/contraviolencia


[1] Shames, T., et al. A Casa da Tita em Florianópolis. Contributos para a formação de uma cena musical artivista. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens Instituto de Artes e Design, v. 7 n. 1 (2021): Nava 10.

[2] Cf. https://isupport.saude.gov.br/. Acesso em 3 de abril de 2024.

[3] Cf. https://www5.each.usp.br/noticias-principais-ccex/inscricoes-abertas-para-oficina-de-sensibilizacao-para-cuidadores-familiares-de-idosos-6a-edicao/. Acesso em 3 de abril de 2024.

[4] Cf. https://www.favelacompassiva.org.br/. Acesso em 4 de abril de 2024.

[5] Cf. Alexandre Silva. Fala pronunciada no programa Opinião, da TV Cultura, transmitido na quinta-feira dia 28 de março de 2024. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=2NJejJEqvQo&list=PLdnZUpbQ9PflUazzA7KZAMQHaPcQIVuI6. Acesso em 4 de abril de 2024.

[6] Cf. https://gazetadasemana.com.br/noticia/135360/favela-da-rocinha-recebe-o-1–encontro-de-comunidades-compassivas. Acesso em 5 de abril de 2024.

[7] Cf. https://www.youtube.com/c/FilhasdaM%C3%A3eColetivo. Acesso em 5 de abril de 2024.

[8] Cf. https://blogs.correiobraziliense.com.br/coletivo-filhas-da-mae/. Acesso em 5 de abril de 2024.

[9] Cf. https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/02/10/filhas-da-mae-conheca-bloco-de-carnaval-formado-por-cuidadoras-de-pessoas-com-alzheimer-no-df.ghtml. Acesso em 5 de abril de 2024.

[10] Graeff, B., Bestetti, M.-L. Op. cit., p. 1324.

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