William Ophuls e Michel Maffesoli refletem sobre ecologia em livro das Edições Sesc SP

29/06/2024

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Cunhada em 1869, pelo biólogo e naturalista alemão Ernest Haeckel (1834-1919), a palavra “ecologia” designa o estudo científico das interações entre os organismos e o ambiente onde vivem. Do grego oikos (“casa”) e logos (“saber”), essa ciência que faz parte da biologia também foi assimilada por outros campos do conhecimento, como as ciências sociais e a política. Isso porque as ações humanas que vêm provocando aquecimento global, poluição dos oceanos, insegurança alimentar, entre outros fenômenos, demandam estratégias de enfrentamento propostas por outras áreas do saber.   

Como defende o cientista político norte-americano William Ophuls, autor de A vingança de Platão: política na era da ecologia (Edições Sesc São Paulo, 2017), é imprescindível desenvolvermos uma consciência política baseada na ecologia, uma vez que habitamos um mundo forjado na exploração dos recursos naturais, na opressão política e na desigualdade econômica. Em seu livro, Ophuls reúne leituras de filósofos, conceitos científicos, históricos e econômicos e suas implicações na contemporaneidade. “A reconciliação entre o homem e a natureza, implícita numa forma ecológica de pensamento e vida, restaurará a coerência e o significado perdidos depois que o homem converteu a natureza em inimigo”, observa.  

Já em Ecosofia: uma ecologia para nosso tempo (Edições Sesc São Paulo, 2021), o sociólogo francês Michel Maffesoli defende a necessidade de construirmos uma nova ideia do social, baseada na transformação de nossa condição como habitantes da Terra. Para isso, o pensador indica o desenvolvimento e cultivo de uma “sensibilidade ecosófica”. A ecosofia corresponde, segundo Maffesoli, ao restabelecimento de laços entre o homem e a natureza, de modo a atingir uma solidariedade holística oriunda das experiências comunitárias. “As consequências funestas dessa destruição, tanto no ambiente natural como no social, nos estimulam a tomar consciência de que outro espírito do tempo está em gestação”, vislumbra. 

Neste Em Pauta, leia trechos dos livros de William Ophuls e Michel Maffesoli que refletem sobre a necessidade da adoção de novas ecologias para habitarmos um futuro saudável e dialógico com a natureza.  

A vingança de Platão: política na era da ecologia 

POR WILLIAM OPHULS 

A libertação do homem da natureza é tanto a virtude heroica da civilização como sua falha trágica. Torna possível as grandes realizações materiais e culturais que são sinônimo de civilização, mas também fomenta os males previamente enumerados; e quanto maiores as realizações, maiores os males. A tragédia da civilização industrial moderna reside em sua grandeza. Todas as civilizações anteriores exploraram o mundo natural, geralmente de modo autodestrutivo, mas nunca tentaram negar a necessidade relativa à natureza ou se afastar da natureza, muito menos se colocar sobre ela. Em contraste, a civilização industrial se jactanciou de sua capacidade de submeter o assim chamado mundo externo à sua vontade. 

Essa vontade de poder sobre a natureza é a essência do húbris [arrogância] moderno: um fim presunçoso perseguido por meios excessivamente racionais e impulsionado por desejos irracionais. René Descartes [1596-1650] e Francis Bacon [1561-1626], dois dos principais autores do moderno estilo de vida, consideravam a natureza um poder hostil, a ser dominado sem misericórdia ou escrúpulo. Sigmund Freud [1856-1936], o último grande defensor do Iluminismo (apesar de sua própria redescoberta do irracional), indicou a origem e o caráter neurótico dessa hostilidade: “contra o temido mundo externo, podemos só nos defender… indo para o ataque contra a natureza e a sujeitando à vontade humana”. Assim, o húbris moderno origina-se no medo irracional e se manifesta como uma guerra ilimitada contra a natureza por riqueza, poder e domínio. 

A preservação do meio ambiente é, portanto, a menor parte do problema. De fato, a civilização industrial deve parar de maltratar a natureza e exaurir os recursos antes de imitar civilizações anteriores no cometimento do suicídio ecológico. No entanto, a única solução real é pôr fim ao próprio húbris, dissolvendo a hostilidade neurótica e motivada pelo medo da natureza, que alimenta o desejo de dominação. 

A ecologia é a cura mais segura para o húbris moderno. Entender a ecologia é perceber que o objetivo de dominação é impossível – de fato, é demente – e que os meios crus que empregamos para esse fim estão nos destruindo. Entender a ecologia também é perceber que algumas das realizações mais louvadas da vida moderna – nossa extraordinária produtividade agrícola, as maravilhas deslumbrantes da medicina tecnológica e, de fato, até mesmo a afluência das economias desenvolvidas – não são, de jeito nenhum, o que parecem, mas, ao contrário, reduzem-se a castelos construídos sobre areia ecológica, que não podem ser sustentados a longo prazo. Em resumo, a ecologia expõe a grande ilusão da civilização moderna: nossa aparente abundância é, na realidade, escassez disfarçada, e nosso suposto domínio da natureza é, em última análise, uma mentira. 

A ecologia expõe a grande ilusão da civilização moderna: nossa aparente abundância é, na realidade, escassez disfarçada,
e nosso suposto domínio da natureza é, em última análise, uma mentira 

Posto de modo mais positivo, a ecologia contém uma sabedoria intrínseca e uma ética implícita, que, ao transformar o homem de inimigo em parceiro da natureza, tornará possível preservar o melhor das realizações da civilização por muitas gerações e, também, alcançar uma melhor qualidade de vida civilizada. Tanto a sabedoria como a ética derivam diretamente dos fatos ecológicos da vida: limites naturais, equilíbrio e inter-relação envolvem necessariamente humildade, moderação e ligação humanas. 

Como quaisquer outras espécies, o Homo sapiens está sujeito a limites naturais. A tecnologia dá aos seres humanos a capacidade de manipular o meio ambiente – algo de que as outras espécies, em geral, carecem. Contudo, o sucesso da humanidade nesse aspecto é, em grande parte, ilusório, pois foi comprado por um alto preço, simbolizado pela extinção acelerada dessas outras espécies, com tudo o que isso implica para nosso próprio futuro a longo prazo.  

O homem tecnológico não aboliu a escassez natural, nem transcendeu os limites naturais. Simplesmente, ele arranjou a questão de modo que os efeitos de sua exploração sejam sentidos pelos outros. Outras espécies, outros lugares, outras pessoas, outras gerações sofrem as consequências do intensificado imperialismo ecológico da era moderna. A problemática ambiental corrente testifica o fracasso iminente dessa estratégia. (…) 

A natureza não é uma máquina. Nem a humanidade se mantém afastada da natureza, merecedora do direito evolucionário de governá-la sobre a Terra. Em consequência, a política e o estilo de vida modernos, baseados na visão de mundo mecânica, estão se tornando obsoletos, tanto filosófica como praticamente. Na política, por exemplo, um princípio fundamental da filosofia política liberal clássica é o de que a liberdade individual acaba onde começa o dano aos outros. Na prática, isso não nos inibiu de modo considerável, pois outro princípio liberal afirma que os indivíduos estão separados uns dos outros e da natureza.  

Portanto, somente o comportamento flagrantemente antissocial ou antiecológico se qualifica como dano. No entanto, se a interdependência generalizada nos torna parte inseparável do fluxo comum da vida, então a ficção liberal da separação desmorona. Não existem decisões verdadeiramente privadas. Tudo quanto eu faça em relação ao fluxo afeta todas as vidas, inclusive a minha. O comportamento até agora considerado legitimamente egoísta torna-se prejudicial de maneira evidente e, portanto, moralmente repreensível, mesmo nos padrões liberais. 

De fato, a ecologia ensina uma antiga sabedoria: a da grande cadeia dos seres, embora numa forma nova e distinta. A natureza é mais teia do que cadeia, e a sabedoria baseia-se na ciência e não na teologia ou revelação. As metáforas orientais, como o Tao ou a Teia de Indra, podem, portanto, ser representações melhores da realidade ecológica. Aliás, a ética que seguem alegraria o coração de um santo: amar a criação e considerar todos os seres como irmãos e irmãs. Assim, a inserção orgânica da humanidade muda tudo.  

De fato, o desafio político diante da raça humana é assegurar sua sobrevivência digna e seu desenvolvimento moral adicional, incluindo todas as vidas no processo de governança. É assegurar que os interesses de todas as criaturas e de todas as gerações sejam levados em conta pelo processo político. (…)  

Entre outras coisas, a reconciliação entre o homem e a natureza, implícita numa forma ecológica de pensamento e vida, restaurará a coerência e o significado perdidos depois que o homem converteu a natureza em inimigo. Não mais órfãos, outra vez estaríamos em casa no universo. Por todos esses motivos, a ecologia terá de ser a ciência principal e a metáfora norteadora de qualquer civilização futura. 

 

  • William Ophuls é doutor em ciência política pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos, já atuou como diplomata em Washington (EUA), Abidjã (Costa do Marfim) e Tóquio (Japão), professor na Universidade Northwestern e, atualmente, é escritor e pesquisador independente. Publicou vários livros sobre os desafios ecológicos, sociais e políticos que confrontam a civilização contemporânea.  

*Trechos do capítulo “As fontes do Direito Natural – Ecologia”, do livro A vingança de Platão: política na era da ecologia (Edições Sesc São Paulo, 2017). 

Ecosofia: uma ecologia para nosso tempo  

POR MICHEL MAFFESOLI 

Existe um conhecido ditado que lembra que o passado é a pedra do nosso presente. Poderíamos prosseguir assinalando que o presente nada mais é que a concretização do passado e do futuro. A intensidade (in tendere) vivida agora tem origem naquilo que é anterior e que permite que se desenvolva uma energia futura. Cadeia do tempo. Enraizamento dinâmico. Aquilo que, ao contrário do antropocentrismo, chama atenção para o que, no homem, atravessa o homem. Era assim que Blaise Pascal [1623-1662] definia o famoso “junco pensante”; temos nos esquecido, porém, de que, embora pensante, ele não deixa de ser junco. Podemos até dizer que ele só pode pensar quando se lembra de suas raízes. O que é outra maneira de recordar a comunhão estrutural com a natureza. Tudo se resume naquilo que eu chamo de sensibilidade ecosófica. Sensibilidade que é tão importante no Brasil. 

Reencontramos ali o animismo de longa memória. Um paganismo que se reveste de uma forma contemporânea. A deep ecology poderia ser sua versão paroxística. Paganus. Existe, de fato, algo de pagão no sucesso dos produtos orgânicos e na recrudescência do vínculo com os diversos valores ligados à terra, ao território e a outras formas de espaço. O presente é o tempo que se cristaliza no espaço, que não projeta mais o divino no além, mas, ao contrário, o insere no terrestre. Quando assisto a um candomblé em Recife ou em Salvador, é exatamente isso que sinto, que pressinto. 

Essa é, justamente, em contraste com o progressismo, a especificidade do progressivo. O primeiro destaca o poder do fazer, da ação brutal e do desenvolvimento desenfreado das forças prometeicas. O segundo, em contrapartida, dedica-se a estimular o que vem de dentro, a usar uma potência natural. Novamente, Prometeu e Dionísio. Eles são figuras espirituais, mas também são símbolos operatórios, na medida que permitem ver com outros olhos uma vida cotidiana em que o bem-estar não é nada comparado ao melhor-estar. Vida diária em que, ao ritmo dos trabalhos e dos dias, o qualitativo reencontra um lugar de destaque: qualidade de vida. Expressão um pouco genérica, mas que define bem o espírito do tempo. 

O que está em jogo é uma forma de conformidade com o ser do mundo em sua realidade múltipla. Não mais o progresso,
explicando a imperfeição e suprimindo as dobras do ser, mas o progressivo que o implica. 

É isso que o filósofo Martin Heidegger [1889-1976] nos recomenda: “a lei oculta da terra a conserva na moderação, que se contenta com o nascimento e com a morte de todas as coisas, no círculo determinado do possível”. Moderação sábia decorrente da aceitação trágica de um presente precário e que, portanto, precisa da intensidade. Do prazer de existir a partir da existência das coisas. É isso que parece estar em jogo na socialidade própria à progressividade contemporânea. 

Tudo isso já foi dito de inúmeras maneiras. Quanto a mim, numa época em que isso ainda não estava na moda, fiz uma análise crítica do mito do progresso (La Violence totalitaire, 1979) e de sua capacidade de destruição. O totalitarismo que ele induz leva inevitavelmente à destruição do mundo e da mente das pessoas. Em relação a isso, já não restam dúvidas. As consequências funestas dessa destruição, tanto no ambiente natural como no social, nos estimulam a tomar consciência de que outro espírito do tempo está em gestação. Mudanças climáticas estão ocorrendo, o que é muito delicado de se dizer. Mas eu não me canso de repetir aos meus amigos brasileiros que a máxima “ordem e progresso”, tomada de empréstimo a Augusto Comte [1798-1857], não combina mais com o espírito do tempo. 

Quando temos a lucidez e a humildade de observar as histórias humanas na longa duração, percebemos que o apogeu de um valor sempre remete a seu hipogeu. São inúmeros os termos, eruditos ou coloquiais, que exprimem esse fenômeno. Os sociólogos se referem a um processo de saturação; os historiadores, de inversão quiasmática; os psicólogos, de compensação. Pouco importa o termo empregado. Trata-se de uma inversão de polaridade, causa e efeito de uma profunda transformação societal ou antropológica. Nada é intocável. As metamorfoses fazem parte da ordem das coisas. De nada vale se apegar à modernidade como o mexilhão se apega à rocha. É preciso, portanto, saber expor o espírito do tempo. Isso não será fácil enquanto a rotina filosófica, chamada por Émile Durkheim [1858-1917] de “conformismo lógico”, ocupar o lugar da reflexão. Aliás, é na sabedoria popular que podemos, como sempre, encontrar mais lucidez. Como a frase escrita em um muro nos arredores de Porto Alegre: “A crise passa. A vida continua”. (…) 

Eu sempre disse que, em períodos de transformação, é preciso encontrar as palavras menos falsas possíveis. Palavras essenciais que podem se tornar palavras fundadoras. Ou seja, palavras que descrevem o que advém. Tanto é verdade que o verdadeiro falar é, primeiramente, uma escuta. Escuta do advento daquilo que está aí. Era assim que Fernando Pessoa [1888-1935] descrevia a “sociologia das profundezas”, capaz de expressar, de dar forma àquilo que, vindo de muito longe, fala através de nós. 

Conscientes do vitalismo ambiente, em vez de nos lamentarmos, está na hora de aplicarmos um novo Discurso sobre o método, que ilumine retrospectivamente. Ou seja, que saiba retroceder do derivado ao essencial. Compreender o primeiro à luz do segundo. É assim que poderemos, em seu sentido etimológico e em sua plenitude, compreender a metamorfose em curso. Aquela que nos faz passar de um progressismo (que foi poderoso e eficaz, mas que está se tornando um pouco enfermiço) a uma progressividade que reinveste os “arcaísmos” – povo, território, natureza, sentimentos, humores – que pensávamos ter superado. É isso que chamo de invaginação do sentido, um retorno à natureza essencial das coisas.(…) 

O que está em jogo é uma forma de conformidade com o ser do mundo em sua realidade múltipla. Não mais o progresso, explicando a imperfeição e suprimindo as dobras do ser, mas o progressivo que o implica. Ou seja, aceitando suas dobras. Um sim, apesar de tudo ao que existe. É esse o fundamento, inconsciente, da sensibilidade ecosófica. Aceitação das voltas e dos desvios, dos labirintos e dos corredores mal iluminados de todas as peças escuras e desordenadas da casa (oikos) individual ou comum. Talvez seja isso que a mística, como a da gloriosa Teresa d’Ávila, chama de “moradias” (“moradas”).  

  • Michel Maffesoli é doutor em ciências humanas. Considerado um dos maiores especialistas em pós-modernidade, é autor de mais de 30 livros sobre o assunto, é professor emérito da Universidade Sorbonne (Paris V), na França, fundador e diretor do Centre d’études sur l’actuel et le quotidien (Centro de estudos sobre atualidade e cotidiano), vice-presidente do Instituto Internacional de Sociologia e secretário-geral do Centre de recherche sur l’imaginaire (Centro de pesquisa sobre o imaginário).  

*Trechos do “Prefácio à edição brasileira” do livro Ecosofia: uma ecologia para nosso tempo (Edições Sesc São Paulo, 2021). 

Saiba mais sobre as duas obras disponíveis no site das Edições Sesc São Paulo.

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