Um olhar de cuidado para quem carrega o Brasil

03/07/2024

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Por Mara Gabrilli

Muita gente não sabe, mas antes de me tornar uma pessoa que depende do serviço de um cuidador, eu já cuidei de um idoso e de uma moça que, assim como eu, era tetraplégica. À época, sem imaginar que um dia estaria nas mesmas condições, tentei levar a eles um pouco mais de saúde, incorporando movimentos e produtividade em suas vidas. Foi uma experiência enriquecedora e que me proporcionou know how para hoje entender, em todas as dimensões, a importância desse profissional na vida de pessoas idosas, com deficiência ou doenças raras.

Sem a parceria e a dedicação de uma cuidadora, eu não poderia sair da cama. Não chegaria nem perto de lugares e postos que conquistei ao longo da vida, mesmo depois de quebrar o pescoço e perder os movimentos de braços e pernas. Ser psicóloga, fundadora de ONG, secretária municipal, vereadora, deputada por duas vezes, representante em um comitê na ONU e senadora. Tudo isso só foi possível porque tive o apoio de um profissional cuidador – mais especificamente, tive o apoio de uma outra mulher.

A verdade é que quando um ente querido precisa do apoio diário de um cuidador, são as mulheres – a maioria mães mais pobres – que são obrigadas a abandonar o mercado de trabalho para se dedicar a quem mais precisa. Esse é o retrato de milhares de brasileiras cujo papel de cuidar é invisibilizado. Falamos de mulheres que em sua maioria esmagadora carregam filhos sozinhas, carregam seus pais e seus avós, porque na vida delas não existem redes de apoio, seja familiar ou governamental.

Os homens, salvo honrosas exceções, costumam abandonar a casa quando se deparam com um diagnóstico de deficiência na família. São as mulheres, a maioria pobre, que pagam a conta de viver em uma sociedade machista em um país que ainda engatinha na oferta de políticas públicas de reabilitação e que delega apenas às famílias a responsabilidade quanto aos cuidados na vida diária.

familia materna - foto walter firmo
Família Materna, Walter Firmo, PA, 1956.

Sem a parceria e a dedicação de uma cuidadora, eu não poderia sair da cama. Não chegaria nem perto de lugares e postos que conquistei ao longo da vida, mesmo depois de quebrar o pescoço e perder os movimentos de braços e pernas.

Tal cenário desanimador ganhou holofotes em novembro do ano passado, quando a redação do Enem propôs que estudantes discorressem sobre “desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Abordar novamente esse tema, agora na Revista Mais 60, é uma grande oportunidade para que ele não caia na invisibilidade e as mulheres, em geral as principais cuidadoras, não sejam esquecidas.

Além dos cuidados com a casa, os trabalhos domésticos e familiares, cuja carga é quase sempre delegada apenas ao sexo feminino, falamos também de milhares de mulheres que carregam nas costas uma nação invisível de crianças, adolescentes, adultos com deficiência e de pessoas idosas que dependem completamente de terceiros para manter um mínimo de vida digna. São geralmente pessoas com deficiências severas, doenças raras ou neurodegenerativas.

A situação mais comum é: a mãe para de trabalhar para cuidar do filho com deficiência, as despesas da família só aumentam e a renda familiar diminui drasticamente. Ou ainda, quando um familiar idoso, seja pelo envelhecimento natural ou pelo susto de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou Alzheimer, necessita de cuidados, geralmente é a mulher – uma filha ou nora ou neta – que para de trabalhar para assumir essa responsabilidade. Todas essas mulheres não têm nenhum tipo de apoio do Estado brasileiro, tornam-se invisíveis aos olhos públicos. Não se realizam profissionalmente e, com frequência, adoecem.

A invisibilidade ou a falta de valorização do trabalho de cuidado é um problema a ser enfrentado porque contribui para o aprofunda- mento da desigualdade de renda, além de ocasionar estresse, depressão e ansiedade. Ocupadas com o “invisível”, as mulheres ficam privadas de tempo e recursos necessários para conquistar autonomia financeira, permanecendo presas em um ciclo de exploração. A ausência de uma política pública de cuidados leva famílias inteiras ao abandono e à exclusão social.

Diante da urgência de um quarto elemento na configuração da seguridade social – o de cuidados –, além da saúde, previdência e a assistência social, três senadores se uniram há cerca de quatro anos para criar um projeto de lei com a proposta de uma Política Nacional do Cuidado. Os senadores Eduardo Gomes, Flávio Arns e eu nos debruçamos sobre o tema e realizamos duas pesquisas em parceria com o DataSenado com pessoas cuidadas e cuidadores.

São as mulheres, a maioria pobre, que pagam a conta de viver em uma sociedade machista em um país que ainda engatinha na oferta de políticas públicas de reabilitação e que delega apenas às famílias a responsabilidade quanto aos cuidados na vida diária.

Os resultados estão contemplados no Projeto de Lei 2.797, que protocolamos em novembro de 2022, buscando apresentar respostas aos anseios da sociedade e estipulando uma legislação que dê aos cuidadores familiares e profissionais apoio no desenvolvimento de seu trabalho e uma rede de suporte. Sob relatoria do senador Paulo Paim, visamos garantir uma política de Estado que regulamente e promova ações estratégicas para assegurar o bem-estar físico, psicológico e social de pessoas em situação de dependência e seus cuidadores familiares ou profissionais.

No projeto propomos que o governo forneça cuidadores custeados pela assistência social. Julgamos de extrema importância a criação de um plano de inclusão previdenciária dos familiares, em sua ampla maioria mulheres, que ficam impossibilitados de trabalhar, dedicando-se exclusivamente a parentes que têm impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, do intelecto e da mente, e que têm limitações para exercer as atividades básicas do dia a dia.

O texto institui o auxílio-assistência para todos os segurados da Previdência Social, com adicional de 25% para trabalhadores e aposentados com deficiências que dependam de cuidados de terceiros para auxiliá-los na manutenção de condições dignas de vida, saúde e segurança.

Não podemos esquecer que o nosso país caminha para mudança demográfica, está envelhecendo, o que revela um quadro futuro de alteração no desenho econômico nacional.

Segundo projeções baseadas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), se as atividades de cuidados fossem conside- radas no cálculo que estima a geração de renda no país, equivaleria a cerca de 11% do Produto Interno Bruto (PIB). O número de pessoas idosas tende a dobrar nas próximas décadas. Além disso, o número de pessoas que tem como profissão serem cuidadores de idosos saltou entre os anos de 2004 e 2017, de 4.313 para 34.051.

A economia do cuidado é essencial para a humanidade. Todos nós precisamos de cuidados para existir. E, se hoje você é uma pessoa adulta, alfabetizada, lendo este texto é porque alguém desempenhou horas de trabalho de cuidado com alimentação, vacina, remédios, limpeza e higiene, educação, entre diversas outras funções por horas a fio para cuidar de você. Pessoas cuidadas e pessoas que cuidam devem ser apoiadas.

Passou da hora de o Brasil ter uma política de cuidados e regula- mentar a profissão de cuidador que, vale dizer, também pode – e deve – ser exercida por homens. Essa é uma responsabilidade do Estado, não da condição feminina.

Com uma política de cuidados em nosso país, ampliaremos muito mais nossa mão de obra trabalhadora, deixando de onerar a saúde pública em vários setores e proporcionando a muita gente qualidade de vida e participação ativa na sociedade. Só assim tornaremos um privilégio de poucos em um direito para todos.

Senadora Mara Gabrilli e cuidadora Késia Souza
Senadora Mara Gabrilli e cuidadora Késia Souza. Foto: Jaciara Aires

Mara Gabrilli tem 56 anos, é publicitária, psicóloga e senadora pelo Partido Social Democrático de São Paulo (PSD/SP). Aos 26 anos, sofreu um acidente e perdeu todos os movimentos do pescoço para baixo. Em 1997, fundou o Instituto Mara Gabrilli, organização que promove projetos esportivos, culturais e presta atendimento em comunidades carentes de São Paulo e outras capitais. Foi secretária municipal de São Paulo, vereadora – a mais votada da capital paulista – e deputada federal por dois mandatos consecutivos. Em 2018, foi eleita para integrar o Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência na Organização das Nações Unidas (ONU) e em 2023 foi reeleita.

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