Centenário da violeira Helena Meirelles  (1924-2005)

30/07/2024

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Relembre os acordes libertários da vida e da trajetória da artista pantaneira

POR MANUELA FERREIRA 

Leia a edição de AGOSTO/24 da Revista E na íntegra

Foi na fazenda Jararaca, na antiga Estrada Boiadeira, embarcadouro de gado localizado na margem direita do rio Paraná, leste de Mato Grosso do Sul, que desabrochou artisticamente a violeira, cantora e compositora Helena Meirelles (1924-2005). Nascida numa época em que eram raras as mulheres que tocavam qualquer que fosse o instrumento, ela desafiou tal impedimento ainda criança, quando aprendeu a dedilhar suas primeiras “modas” com um tio, em festas familiares. Anos mais tarde, uma nova afronta: para seguir tocando, já adolescente, Helena fugiu de casa, em mais um dos episódios que marcaram uma vida cheia de escolhas que conduziram seus futuros passos e que tornaram, ela e sua viola, inseparáveis.  

“Desde pequenininha, já nasci com aquilo. Eu via tocarem violão e ficava doidinha, queria tocar. Ficava olhando os paraguaios, na afinação, no solo, e fui gravando. Minha cabeça era um gravador (…) eu já queria ser eu como eu sou até hoje. Só Deus e mais ninguém para me escorar. Ninguém manda em mim. Eu sou a dona do meu nariz e da minha direção”, afirmou a artista no documentário Dona Helena (2006), de Dainara Toffoli. 

O espírito rebelde só não foi maior que o extraordinário dom para os acordes, refletido na técnica desenvolvida de forma autodidata e internacionalmente reconhecida. “A eficiência instrumental de Helena resultava de uma vida dedicada a tocar, com exceção de períodos em que trabalhou na roça, foi lavadeira, empregada doméstica, e quando viveu em fazendas no Mato Grosso do Sul. E isso aliado ao seu talento natural”, analisa o músico e jornalista Mário de Araújo. Sobrinho da artista, ele conta que Helena tocava bem com qualquer violão ou viola à mão. 

(foto: Renato Yakabe)

REVESES E VITÓRIAS 
“Por mais pau-velho que fosse [o instrumento], desde que tivesse cordas, mas conseguia dedilhar com cordas quebradas também. Ela tinha um ouvido musical extremamente sensível. Não era uma compositora prolífica, mas tocava um grande número de músicas do cancioneiro regional entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai, as quais conhecia desde a infância”, comenta Mário de Araújo. Ao lado da tia, ele atuou como violonista, produtor artístico e discográfico, empresário, fotógrafo e assessor de imprensa. Coube a ele incentivá-la a resgatar seu repertório após as três décadas em que Helena esteve distante da carreira artística e da família, sobrevivendo com dificuldade [leia mais em A dama da viola]. 

Tal resgate levou a violeira à fama, de forma mais notória, a partir de 1993, depois de Mário enviar para a revista estadunidense Guitar Player um material que reunia gravações caseiras da violeira, junto a um texto, no qual apresentava Helena para o renomado crítico e editor Jas Obrecht. Na edição seguinte, a publicação destacou a artista, junto a outros instrumentistas, como um dos talentos recém-descobertos pela revista. Na Guitar Player circularia, ainda, um pôster com as palhetas dos 101 melhores artistas nas cordas – e lá estava a palheta de chifre de boi da pantaneira.  

O reconhecimento da trajetória de Helena Meirelles, cabocla e analfabeta, serviu como um incentivo para que seu país passasse, também, a enaltecê-la. O renascimento social da instrumentista, no entanto, aconteceu anos antes, em meados da década de 1980, sem alarde, mas repleto de força e sentimento, como um roteiro de filme.  

BAILES DA VIDA 
“Recordo-me da última vez em que tinha visto Helena, eu deveria ter cinco anos. Foi em 1956, em Alvares Machado, na região de Presidente Prudente (SP), quando morávamos com minha avó, Ramona, e meu avô, Ovídio. Ela chegou para visitar meus avós, mas ficou na rua, acompanhada de um grupo de mulheres, aparentemente suas colegas de algum bordel da região. Helena era persona non grata para os pais desde que havia decidido frequentar e viver em casas de meretrício”, relembra Mário de Araújo. Pouco depois, já afastada dos familiares, e sem dar notícias, a tia foi considerada morta. No entanto, a esperança de revê-la jamais abandonou os parentes.  

Helena dizia que fez uma pausa, pariu,  
e voltou a tocar, e costumava dar de mamar ao bebê
colocando-o entre ela e o violão. 

Mário de Araújo, músico e sobrinho de Helena Meirelles 

(foto: Renato Yakabe)

Até que, em 1986, Helena foi avistada pela irmã, Natália, vivendo na rua. Segundo o sobrinho da violeira, o reencontro foi emocionante. “Depois de Helena me dizer que ainda tocava um pouquinho, eu e meu irmão Milton [o músico Milton de Araújo, que também acompanhava a artista nos palcos] lhe demos uma viola que tínhamos em casa e pedimos que tocasse algo. Creio que ela tocou ‘Chuita’, a primeira música  que ela tocara em público, na Fazenda Jararaca, em 1932, aos oito anos de idade, acompanhada pelo tio Leôncio Meirelles. Minha reação foi de querer chorar, diante da sensibilidade e destreza que vi naquele momento”, compartilha o sobrinho.  

NARRATIVAS DA MEMÓRIA 
Para Mário, a sensação era idêntica a de muitos boiadeiros, rudes e rústicos, que “ou choravam de tristeza ou davam tiros de alegria”, quando Helena animava a farra nos bordeis do interior sul-matogrossense ao ritmo de polcas, chamamés e fandangos. O retorno da instrumentista aos palcos, no entanto, teve alguns empecilhos, sendo o etarismo um deles – Helena Meirelles contava com quase 70 anos à época. Trazia as marcas de uma mulher que dera à luz onze crianças, mas só pôde criar duas, enquanto as outras foram deixadas com diversas famílias, pois não poderiam acompanhá-la em muitas das curvas de seu caminho. Como parteira, Helena também trouxe à vida outros tantos. Era franzina, de poucos sorrisos e tinha o semblante sério, sempre portando o genuíno chapéu pantaneiro.  

Nesse registro de 1992, a violeira está acompanhada (da direita para a esquerda) 
dos músicos: Milton Araújo, Mário de Araújo e Cidinho Araújo (foto: Tato Araújo).
Nesse registro de 1992, a violeira está acompanhada (da direita para a esquerda) dos músicos: Milton Araújo, Mário de Araújo e Cidinho Araújo (foto: Tato Araújo).

“Achavam que ela era talentosa, mas que não tinha o perfil desejado pela mídia”, comenta Mário de Araújo. Entretanto, a artista foi apresentada como contraponto ao sertanejo moderno que dominava as rádios do país e uma autêntica representante da música caipira de raiz. Logo, tornou-se um rosto conhecido pela imprensa cultural antes mesmo de gravar seu primeiro disco de estúdio, Helena Meirelles – A grande dama da viola, de 1994. No repertório, composições como “Fiquei sozinha” e “Quatro horas da madrugada”, entre outras canções de domínio público, como “Araponga” e “Chalana”, clássicos do cancioneiro popular.  

Em 1996, a artista lançou o álbum Flor da Guavira, com músicas instrumentais de sua autoria. No ano seguinte, mais uma produção: Raiz pantaneira, com outras composições suas. Nos palcos, o sobrinho atuava sempre à esquerda da artista, acompanhando o rasqueado [ritmo sul-matogrossense] executado por Helena, e também operando como “âncora” do espetáculo, contando histórias, uma vez que Helena preferia a música às palavras.  

Tais relatos, contados nos espetáculos e entrevistas, narravam experiências que, ainda assim, não dão conta da imensa força artística e personalidade peculiar de que a artista dispunha. Como o fato de ter parido sozinha, todos os filhos. Um deles, Sebastião, nasceu em um pasto, em meio ao gado. “Outro nasceu num baile onde ela se apresentava. Helena dizia que fez uma pausa, pariu, e voltou a tocar, e costumava dar de mamar ao bebê colocando-o entre ela e o violão”. 

“In Helena Meirelles’ face we see the wisdom of the ages. On her recordings we hear enchanting guitar sounds played with grace, fluidity, and emotion – a heart revealed. In her own way, Helena Meirelles was as skilled and visionary as Segovia and Jimi Hendrix were in theirs.
Hers is the music of an indomitable spirit, and the gifts she has left us have now circled the world, transporting and uplifting a new generation of listeners.
And that, for a musician, is as good as it gets. Gracias, Dona Helena.”

“Vizualizamos, no semblante de Helena Meirelles, a sabedoria das eras. Em suas gravações, ouvimos encantadores sons de um violão executado com graça, fluidez e emoção – um coração revelado. À sua maneira, foi Helena Meirelles tão talentosa e visionária quanto Segovia e Jimi Hendrix o foram a seu modo. Possui, sua música, espírito indominável, e as dádivas que ela nos legou ora já circundam o mundo, transportando e enlevando uma nova geração de ouvintes. E, para um músico, não poderia haver coisa melhor. Obrigado, Dona Helena.”

Jas Obrecht – revista Guitar Player

para ver no Sesc
A DAMA DA VIOLA
Para celebrar a obra de uma das maiores violeiras do país, Sesc 24 de Maio realiza o projeto Viva Viola! Centenário Helena Meirelles

No mês que marca os 100 anos de nascimento da violeira, cantora e compositora pantaneira Helena Meirelles, o Sesc 24 de Maio celebra o legado da “dama da viola caipira” com o projeto Viva Viola! Centenário Helena Meirelles, com uma programação que inclui apresentações musicais, oficinas, saraus, exibições de filmes e bate-papos. No dia 13/8, aniversário de Helena, o trio de violeiras Mirian Cris, Letícia Leal e Adriana Farias conversam sobre o legado da artista centenária, além de refletirem sobre a presença de mulheres na cena musical atual. Na mesma noite, roda de viola com o músico Milton de Araújo, sobrinho de Helena, e as violeiras Fabiola Beni, Flor Morena e Karoline Violeira.

Duas oficinas também compõem a programação que se estende até dia 1º/9: uma de lutheria ecológica, com Eddie Luthier e assistência de Lucia Maria Ferreira Rosa Eid, e outra de ritmos fronteiriços executados no sertanejo raiz – como guarânia, chamamé, polca paraguaia e chamarrita –, conduzida por Vitória da Viola. Para encerrar o projeto, a cantora Tetê Espíndola se apresenta, dias 31/8 e 1º/9, com um repertório inspirado pela obra de Helena Meirelles. 

O SescTV também homenageia o centenário da artista com o documentário Mulheres violeiras, episódio da série “Coleções” que celebra a paixão que leva mulheres a enfrentar os preconceitos para se dedicar às tradições da viola caipira. Com direção de Belisário Franca, o filme é exibido dias 5, 10 e 23/8, e conta com depoimentos da Orquestra Viola de Saia, além das artistas Inezita Barroso, Helena Meirelles e Mirian Cris.


24 DE MAIO 
Viva Viola! Centenário Helena Meirelles 
De 10/8 a 1º/9.  
Vários dias e horários. 
sescsp.org.br/24demaio

SESCTV 
Coleções: Viola no Brasil – Mulheres violeiras 
Direção de Belisário Franca 
Exibições nos dias 5/8, segunda, às 15h; 10/8, sábado, às 17h30; e 23/8, sexta, às 10h30. Também disponível sob demanda em sesctv.org.br

(imagem: Lambe-lambe: Kelton Medeiros/
foto: Douglas Vieira – projeto @lentedavarzea)

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