A inteligência artificial e sua implicação sobre a criatividade   

30/07/2024

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Entre as recentes discussões sobre os impactos éticos, culturais e cognitivos da inteligência artificial (IA), há um consenso quanto ao fato de que a IA pode ser vista como uma poderosa ferramenta a amplificar a imaginação humana, permitindo que criadores explorem novas fronteiras e realizem suas visões artísticas de maneiras, antes, inimagináveis. Dessa forma, a sinergia entre a inteligência humana e a IA generativa (criada para gerar novos conteúdos) é capaz de transformar o atual panorama criativo. Pesquisadores têm defendido que, embora a IA generativa demonstre uma notável capacidade de produzir textos, áudios, imagens e vídeos, a subjetividade humana continua indispensável para o exercício de uma genuína expressividade artística e criativa.  

Assim como qualquer outra ferramenta tecnológica, a IA deve ser utilizada pela sociedade de maneira a auxiliá-la a encontrar soluções em um determinado processo. No entanto, são muitos, e controversos, os usos da IA generativa. “As pessoas podem usar a mesma IA de maneiras distintas. Um escritor pode entender o chatbot como uma fonte de insights para ajudar na escrita de uma obra, por exemplo, enquanto outro pode optar por pedir todo o conteúdo pronto”, observa Diogo Cortiz, professor, escritor e palestrante especializado em tecnologia, ciência cognitiva e inovação.  

Fato é que, por enquanto, o protagonismo humano segue essencial, uma vez que a criatividade incorpora nuances, emoções e contextos culturais que as máquinas ainda não conseguem elaborar. Como o primeiro parágrafo deste texto, que foi escrito pelo Chat GPT, após comandos (prompts), mas precisou ser editado por humanos. Para Dora Kaufman, professora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), as soluções de IA generativa não são ameaças, mas aliadas da criatividade humana. “Não existe ‘terceirização da criatividade humana’, pelo contrário, no estágio de desenvolvimento atual da inteligência artificial, o ato criativo permanece na esfera dos seres humanos”, destaca.  

Neste Em Pauta, Cortiz e Kaufman trazem exemplos e propõem reflexões sobre os usos da IA e os desafios na incorporação dessa ferramenta tecnológica à produção criativa contemporânea.

Coautoria ou preguiça? 
POR DIOGO CORTIZ 

Quando eu era criança, sempre imaginava duas invenções para me ajudar nos momentos de apuro: uma capa da invisibilidade para quando eu aprontasse, e uma máquina que fizesse minhas redações nas aulas de português. A primeira ainda está confinada ao universo fantástico de Harry Potter, mas a segunda se materializou como em um passe de mágica. No dia 30 de novembro de 2022, a empresa OpenAI revelou ao público sua nova criação: o ChatGPT. Pela primeira vez, a população teve acesso a uma inteligência artificial que domina a linguagem de maneira surpreendente – ainda que à sua própria maneira – e que é capaz de responder perguntas e criar conteúdos inéditos em poucos segundos. 

Essa situação reacendeu o debate se uma IA pode ou não ser criativa. Para conversar sobre esse assunto, é importante lembrar que tudo vai depender do conceito e das definições com as quais estamos trabalhando. Uma definição clássica de criatividade, por exemplo, diz que algo é criativo quando apresenta duas principais características: ser uma novidade e ser útil. A partir dessa perspectiva, podemos, então, dizer que a IA generativa cria produtos criativos, afinal, o conteúdo que produz é inédito e pode ser útil a depender do contexto.  

No entanto, existem outras perspectivas filosóficas que afastam de vez a hipótese de uma máquina como um ente criativo. Para ser sincero, não estou muito preocupado com isso. Parece-me que ainda vamos levar um bom tempo para atingirmos um nível de maturidade de entendimento sobre a essência da tecnologia. Neste momento, o que me deixa motivado para continuar minhas pesquisas é entender como a tecnologia vai mudar nosso processo criativo e quais serão os efeitos sobre a criatividade humana.  

Estamos diante de um momento único na História. Apareceu uma caixinha tecnológica que cria conteúdos (textos, imagens, vídeos etc.) a partir de um simples comando, o que chamamos de prompt. O resultado da máquina é sempre inesperado e surpreendente. Sabemos mais ou menos o que a IA vai nos entregar, mas sem muita certeza e pouco controle. Se não gostarmos do resultado, podemos melhorar nosso pedido, detalhando-o ainda mais para maior precisão.  

Ainda assim, não temos garantia de que o resultado da máquina será exatamente o que está na nossa mente. É bem possível que não. Mas isso também não é um grande problema, porque o mesmo acontece quando interagimos com outros humanos. Eu trabalho com pesquisas em design, porém não desenho e prefiro não comentar sobre habilidades em design gráfico. Então, sempre que preciso criar uma peça gráfica, trabalho com designers super competentes que tentam materializar o que está na minha mente. O resultado não fica exatamente como idealizei, pois, nesse processo de cocriação, a subjetividade do outro interfere. 

Essa interação dinâmica entre humanos e uma máquina que materializa nossas ideias transforma o paradigma da criatividade e da autoria. É a forma como as pessoas interagem com a IA que vai ditar as diferentes possibilidades e consequências para o processo criativo humano. A funcionalidade mais interessante da IA generativa é aceitar qualquer tipo de comando para gerar respostas. Por ter sido treinada para conversar com os usuários, a máquina vai sempre tentar cumprir a tarefa enviada, independentemente da complexidade do comando. Ao mesmo tempo em que isso cria uma ótima experiência de uso para os usuários, também se torna um perigo para a criatividade humana por não exigir necessariamente um pedido mais complexo que demandaria mais imaginação e criatividade dos usuários.  

As pessoas podem usar a mesma IA de maneiras distintas. Um escritor pode entender o chatbot como uma fonte de insights para ajudar na escrita de uma obra, por exemplo, enquanto outro pode optar por pedir todo o conteúdo pronto. A autora japonesa Rie Kudan surpreendeu a comunidade literária ao declarar que usou o ChatGPT quando recebia um prêmio de melhor livro. Em um primeiro momento, a confissão chocou, mas, assim que conhecemos a estratégia de Kudan, entendemos que ela expediu a sua capacidade criativa com a máquina. Ela não pedia apenas textos prontos para a IA, mas usava-os em um processo de cocriação. Ela explicou que muitas vezes conversava com a máquina e, assim, conseguia ideias para a trama e diálogos.  

Esse é um tipo de uso do qual emerge uma simbiose criativa entre humanos e máquinas, um cenário que, na minha opinião, é de ganha-ganha. Eu trabalho muito com escrita e assumi a IA generativa como minha companheira. Gero insights, uso para correções e edições, mas nunca peço o primeiro rascunho de um texto de minha autoria para a máquina. Isso implica muitos desafios éticos, criativos, e também cognitivos.  

O problema de pedir para a IA criar a primeira versão de um conteúdo é que o resultado da máquina ancora nossa cognição. Todo o nosso processo criativo para editar o conteúdo será guiado por esse primeiro texto. Fica muito difícil se livrar dos argumentos, pontos de vista e estilo apresentados pela IA. É por isso que prefiro o caminho contrário e utilizo a máquina para me ajudar a melhorar minha própria criação.  

No entanto, alguém pode facilmente pedir para a máquina gerar todo o conteúdo a partir de um simples comando. Por exemplo, um autor pode pedir para a IA escrever um capítulo de um livro. A máquina irá cumprir o seu papel e entregará um conteúdo pronto. A qualidade, com as tecnologias atuais, será de um texto mediano, é bem verdade, porém o suficiente para satisfazer a necessidade da maioria das pessoas. Afinal, tudo foi gerado em alguns segundos e poupou horas e horas de gasto cognitivo humano.  

A nossa natureza busca economizar energia, e a IA vira uma armadilha quando mal utilizada. A linha tênue entre o que é coautoria com a máquina e o que é preguiça humana depende do uso das pessoas. E isso tem até uma implicação legal. Uma obra precisa ser considerada criação do espírito humano para ter a proteção legal de direitos autorais, por exemplo. Hoje, as obras criadas pela IA não podem ser registradas porque o papel humano não é considerado na equação.  

Devemos distinguir conceitual, técnica e legalmente o que é “feito pela IA” do que é “feito com IA”. A primeira assume protagonismo da máquina enquanto a segunda a define apenas como uma ferramenta em um processo criativo em que o humano está no controle. Assim, podemos fortalecer o argumento de que o “feito com IA” é a visão de futuro que queremos. Criar algo é uma atividade que demanda um esforço cognitivo que muitas vezes é desconfortável, mas que exercitá-lo é fundamental para que a nossa intencionalidade nas criações não seja comprimida por uma máquina. 

A IA generativa é um caminho sem volta. Cada vez mais ela se entrelaça no nosso processo criativo, oferecendo possibilidades. Devemos, então, buscar uma colaboração saudável com a tecnologia para amplificar nossas habilidades. Não sejamos preguiçosos, porque o futuro da criatividade deve ser construído com a IA, e não pela IA. 
 
Diogo Cortiz é professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisador do NIC.Br e colunista do UOL. Palestrante especializado em tecnologia, ciência cognitiva e inovação. Doutor em tecnologias da inteligência e design digital pela PUC-SP. 

Inédito x Criativo 
POR DORA KAUFMAN  

A decisão do júri da edição 2023 do Prêmio Jabuti sobre desclassificar as ilustrações de Vicente Pessôa no livro Frankenstein, inicialmente indicado ao prêmio, por terem sido criadas usando a solução de IA generativa Midjourney, gerou polêmica na mídia e nas redes sociais. Segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL), organizadora do Jabuti, as obras geradas por IA não são elegíveis para o prêmio, embora esse entendimento não esteja explicitado no regulamento.  

Primeiramente, a IA não é neutra, mas ela, igualmente, não é autônoma. As ilustrações do livro Frankenstein, por exemplo, não derivam de um mero preenchimento de prompts, mas de um processo interativo entre o ilustrador e a tecnologia. Da mesma forma que uma câmera fotográfica de última geração não transforma ninguém em fotógrafo, a IA generativa não torna ninguém criativo. 

A interação entre criadores e tecnologia é histórica. Tradicionalmente, criamos com o suporte de uma tecnologia, como computador, câmera fotográfica, filmadora, recursos de edição, para citar as mais recentes. A interação com a inteligência artificial não é nova. O jornalista americano Mark Anderson, em artigo na revista Wired de dezembro de 2001, atribui a Ray Kurzweil o pioneirismo ao patrocinar os estudos de Harold Cohen. Como pesquisador visitante no Laboratório de Inteligência Artificial da Universidade de Stanford, em 1973, Cohen desenvolveu um programa de criação de arte chamado AARON, capaz de desenhar e pintar naturezas-mortas estilizadas e retratos. Algumas dessas obras estão em coleções de importantes museus – o Museu Whitney de Arte Americana, em Nova York, exibiu, de 3 de fevereiro a 19 de maio de 2024, um conjunto de pinturas e desenhos do AARON. Pamela McCorduck, no livro Aaron’s Code, de 1991, considerou Cohen como o pioneiro de uma nova geração de criadores de estética ou “meta-artistas”.  

O Alan Turing Institute (ATI), de Londres, pondera que um número crescente de artistas está experimentando a IA no aprimoramento, simulação ou réplica de suas criatividades. O AI & Arts Group, atuando como uma plataforma, é uma comunidade científica interdisciplinar criada no âmbito do Alan Turing Institute com o propósito de facilitar colaborações, formar consórcios de pesquisa e hospedar iniciativas de divulgação (seminários, workshops e eventos). A complexidade dos sistemas de IA requer intensa cooperação entre especialistas de IA e artistas, colaboração concretizada em incubadoras, residências artísticas e até coletivos. O desafio é aproximar linguagens e lógicas distintas, definindo a propriedade intelectual da obra final. 

A plataforma AIArtists.org, com curadoria de sua cofundadora Marnie Benney, aparentemente é a maior comunidade global de artistas envolvidos com IA. Para esse grupo de artistas, a IA não está apenas transformando a capacidade de criar, mas igualmente propondo questões críticas sobre a relação humano-tecnologia, tais como: a IA expande a criatividade humana? Como usar a IA para espelhar nossa humanidade e aprender sobre nós mesmos? Como navegar em intimidade e privacidade com máquinas inteligentes? A IA pode ser autonomamente criativa de uma forma significativa? Parte dessas questões implicam em dilemas éticos, alguns extrapolando o âmbito das artes. 

Retomando o tema da criatividade, uma vez que não existe uma definição universal, estamos considerando que criatividade é o ato de agregar uma contribuição inovadora ao que já existe. Com a IA generativa, é importante distinguir “inédito” e “criativo”. Imagens e textos produzidos pelos modelos de IA generativa são inéditos porque não existiam antes, contudo, não são criativos porque a técnica de inteligência artificial que permeia esses modelos – redes neurais profundas, em inglês deep learning – extrai padrões de grandes conjuntos de dados: é como se fizesse um “resumão” de tudo que já foi publicado. 

Vlad Glaveanu e Constance de Saint Laurent, professores na Escola de Psicologia da Dublin City University, na Irlanda, ponderam que a IA generativa não substitui a criatividade humana, mas a transforma. Para os autores, o debate atual sobre criatividade concentra-se em aspectos associados à autoria (detecção de plágio, direito autoral), e não se a utilização extensiva de um sistema baseado em previsão e reconhecimento de padrões pode ser considerado um ato criativo.  

O argumento a favor da “IA criativa” baseia-se em dois equívocos: a) antropomorfizar a IA, supondo como “inteligência” comportamento meramente mecanicista, estatístico ou aleatório; e b) supor que criatividade consiste, em sua essência, na geração de novas ideias ou conteúdos, ignorando dois aspectos básicos da criatividade: significado e valor (são os humanos que os atribuem às produções dos sistemas de IA).  

Na mesma perspectiva, o manifesto Artificial Intelligence & Creativity: A Manifesto for Collaboration, criado em 2023 no departamento de psicologia da Universidade de Nebraska, nos EUA, admite a capacidade da IA de se envolver na criação de conteúdo, no entanto contesta considerar criativa a IA generativa. Esses sistemas criam conteúdos inéditos a partir de imagens pré-existentes disponíveis nas bases de dados, apenas assemelhando-se à criatividade humana. 

O manifesto ressalta a “intencionalidade criativa”, o desejo e impulso de um indivíduo de querer criar algo como elementos críticos do ato criativo, elementos presentes exclusivamente nos humanos. O processo criativo pressupõe identificar, definir, explorar os objetos da criatividade e estimar a potencial originalidade do resultado. Portanto, segundo os autores, enquanto a espécie humana não conseguir (se conseguir) dotar as máquinas de uma apreciação consciente da realidade e dos futuros imaginados, a criatividade artificial limitar-se-á a cobrir apenas uma parte do processo criativo. 

Pelos argumentos apresentados, não existe “terceirização da criatividade humana”. Pelo contrário: no estágio de desenvolvimento atual da inteligência artificial, o ato criativo permanece na esfera dos seres humanos. As soluções de IA generativa são aliadas da criatividade humana.  

Dora Kaufman é pesquisadora dos impactos sociais e éticos da inteligência artificial. Doutora em mídias digitais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), é também escritora, colunista da Época Negócios e professora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (TIDD/PUC-SP).  

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