Edgard Navarro: Cinemêro Avuadô

06/08/2024

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As relações entre a imagem cinematográfica e as audiências preveem posições instáveis: se por um lado demandas mercadológicas podem aproximar a obra fílmica de padrões narrativos hegemônicos, incluindo anúncios publicitários que vemos nas redes sociais, por outro, ela permite a imersão em visualidades oníricas, ou mesmo delirantes. Nesses casos, mais do que se tratar de um duplo da realidade, ou um meio para um determinado fim, o cinema é uma construção que pode elaborar dimensões íntimas, ampliando-as.
No âmbito brasileiro, a obra de Edgard Navarro propõe jogos entre o visível e o invisível, entre a palavra dita e a imagem posta, de tal maneira que ambos configuram uma força equivalente na articulação de um imaginário alucinante. Em seu trabalho, empreendido fora do eixo sudestino, as
influências da contracultura e da tropicália se traduzem na apropriação de signos pop, na postura provocadora, que não economiza em jogos de palavra afiados, bem como na energia da fabulação brasileira desse “cinemêro avuadô” — termo que o próprio diretor baiano elaborou para se definir.
Ao propor a mostra Edgard Navarro: Cinemêro Avuadô, o Sesc busca aproximar os públicos de uma obra fílmica que, para além de suas qualidades intrínsecas enquanto linguagem, ganha um sentido ainda mais intenso quando contextualizada na cultura visual contemporânea e seus condicionantes algorítmicos.
Oportunizar ângulos de visão experimentais e questionadores em relação ao mundo e suas construções simbólicas representa um gesto fundamental para processos de aprendizagem característicos às artes e suas expressões insubmissas.

Sesc São Paulo

Cinemêro Avuadô

Eu já flertava com as artes desde criança: tocava piano e acordeon, recitava e escrevia poemas, contos e canções chicaetanas premiadas em festivais universitários. E agora temia por não saber o que fazer com aquele diploma. Cedo me assolou o medo de ter que trabalhar duro com a coleira no pescoço e a juventude perdida… precisava fazer tudo pra estar livre e poder trabalhar de verdade. Mas as sinas não são traçadas antes da gente nascer… ou são?

Esoterismo, magia, tarô, astrologia, os alquimistas estavam chegando. Pra mim a marijuana foi um marco decisivo, um divisor de águas, uma das experiências mais radicais de minha juventude. Mas a neurose e o surto de pânico haviam chegado antes… Comigo a canabis agia de maneira curiosa, acirrando a paranoia e a agonia pra depois abrandar todo inferno em bênção. Só depois fui entender que aquilo foi apenas uma espécie de alforria extemporânea que pensei servir de salvo-conduto pra qualquer loucura que viesse a cometer. Iludido, apaixonado, em nome daquela pretensa liberdade de espírito embarquei numa estrela inventada, virei trapezista de um circo quase voador…

Era 1974. Ioga, macrobiótica, espiritismo, candomblé… valia tudo. Cego de amor e de horror, eu contava com a sorte, mesmo de cara pro abismo – essa goela insaciável que não cansa de devorar almas e fantasias vãs. O Teatro foi trapézio pra meu salto imortal sem rede, pois já me sentia perdido (e o jogo mal havia começado).

A bruxa não tira seu prazer da desgraça humana? Don Juan dizia que sim, que esse era o alimento da Águia. O fato é que vim dar por mim no meio dos fantasmas ao final de “Viagem a Ixtlan”. E passei a cavalgar metáforas descabidas, maravilhosas, encantadoras, aliciantes… que acenavam com um paraíso psicodélico perigosamente delicioso. E lá fui – Alice – ao encalço de Carrol, acreditando-me revestido com a picardia do Quixote e as armas de Jorge, fito de comer cogumelos mágicos brotados do estrume das vacas da Fazenda Modelo de Chico, ao som de Pink Floyd…

Mas o vento deu naquela porta do casebre, que deu na mesa em que se encontrava o copo do liquidificador com suco de laranja aos cogumelos. Seria uma proteção das forças da natureza? Não sei. Mas o sinal dos deuses foi inequívoco: eu não podia e pronto! O paraíso aquele estava interditado pra mim. E assim foi, depois, com o LSD e a ayahuasca.

1976-78. No intuito de resolver meu próprio teorema através da arte, trouxera alguns dos traumas catalogados por Freud pra dentro dos primeiros curtas que realizei em superoito – frutos podres que nem os de Caim.

Rebelde sem calça. Sob os auspícios da Jornada de Cinema, realizei os filmes e gestos mais ousados de minha vida. Mais que destemidos, foram gestos temerários, incluindo um strip-tease público – Exposed -, em meio a um debate, fato que reputo como se fosse um suicídio social, uma decretação sumária de quem estava disposto a desistir de tudo em troca da chave dos mistérios. Mas logo iria descobrir que não se obtinha a tal chave num passe de mágica. Já havia tempo que Gil deixara seu recado: “Não custa nada, só lhe custa a vida.”

Na Jornada havia conhecido aqueles que pouco depois viriam a ser meus companheiros de travessia: no final do ano seguinte nasceu a Lumbra – a mais louca travessura cinematográfica na Bahia daquele momento. Juntos realizamos muitos filmes de curta e média metragens, revezando-nos em funções diversas da equipe técnica.

Ainda eram os anos de chumbo e inventávamos o mundo paralelo que nos convinha. Eu inventei Porta de Fogo, curta sobre o assassinato de Lamarca no sertão da Bahia. Aduzindo à morte do guerrilheiro uma metáfora de transcendência, aquele seria o filme politicamente mais engajado que realizei.

Mas o que eu gostava mesmo era de chalaças e de hipérboles, de considerações alienígenas estapafúrdias sobre aquilo que simplesmente desconhecia. Num mundo cheio de razão, todo o poder aos insensatos!

Quem via assim pensava que eu era o Chapeleiro Maluco, ou um chincheiro esperto, descolado e tudo mais… Que nada! Eu meio que vendia essa imagem, estratégia inconsciente pra circular entre os verdadeiros lobões. Na verdade, sempre fui um tigre de papel, despreparado pra as astúcias do mundo – rei do cagaço… Aprendia na real que as uvas estão verdes mas é pra a raposa que não consegue alcançá-las.

Arara me consolava, que eu não era qui-quizofrênico porra “ninhuma”, que eu havia ficado assim porque quando bebê tinha caído dentro do caldeirão da poção mágica, como o personagem de Obelix. E o superpoder que adquiri foi o “barato” da canabis, ou seja, eu não precisava fumar pra ficar doidão, sacou?

Era a Lumbra: encontro de jovens cinemêros – sonhadores, cheios de “vontade de poder” – Fernando Belens, Pola Ribeiro, Araripe e eu – Lumbra 4 ever.

A partir do Zaratustra de Nietzsche comecei a engendrar o próximo filme – “Superoutro” – um paralelo entre o superman do cinema americano e um pária sem nome das ruas de Salvador, assediado pela miséria e pela loucura. Pretendia que o filme desse conta de aspectos distintos do personagem – psicológico, filosófico, político – ao evidenciar sua precariedade face àquele super-herói invencível, virtuoso, higiênico, representante da ordem hegemônica de um povo de índole imperialista. Através da fusão das palavras “super” e “outro” fui encontrar um neologismo que, pela semelhança de sonoridades, iria contemplar o superoito – despojada e aguerrida bitola, bem assim um cinema sem grandes recursos ou truques – no nobre mister de enfrentar sem rodeios o dragão.

No livro “O Discurso Esquizofrênico”, do antipsiquiatra David Cooper, aprendi que a esquizofrenia devia ser entendida como uma partição do ser, em que a parte que representa o sonho, a fantasia, separa-se da parte que refere ao mundo real, configurando o que o autor chama de “split”. Ali acredito ter encontrado a chave para o desfecho do filme, cujo “split” se dá no momento em que o policial bate com um cassetete na cabeça do personagem central e este desmaia./ .. Eureka! Ali consubstancia-se a ideia de que o outro é “super” e o voo pode ser cumprido sem que o corpo físico tenha que ser sacrificado.

Quando volta a si, nosso herói se encontra duplicado – o corpo sólido (o pária de rua) e o corpo etéreo (a fantasia) ocupam agora espaços distintos: um é aprisionado pelos policiais, que certamente irão levá-lo de volta ao manicômio; o outro encontra-se livre para empreender sobre a cidade amada seu voo redentor– patriótico, absurdo, terminal.

Aqui quero abrir um parêntese pra citar meu amigo João Velho, cineasta e montador que contribuiu decisivamente pra uma nova concepção da cena final: quando contei sobre o filme que iria rodar, ele me sugeriu que trabalhasse na ideia de fazer o personagem voar sem ter que morrer, o que me pareceu muito melhor do que o que eu havia concebido originalmente.

2018. A viagem da canabis se encerrou quando certo dia a esquizofrenia mais uma vez em mim manifestada exigiu que eu fosse imediatamente pra a África… nadando. Mas isso é tabu! Espere! Eu não posso falar sobre isso como se fosse coisa ordinária. Já fui alertado de que não devo voltar outra vez desapercebido àquele espaço sagrado. Da última vez foi tão sério que resolvi nunca mais desrespeitar o aviso. É que houve uma tentativa frustrada de outro amigo e… Enfim, é tabu! Não posso falar! Mas consta nas bulas dos tarjas pretas, entre os efeitos colaterais sobre fantasias suicidas. E o que é que o personagem de Superoutro é senão um cabra suicida que inventa fantasias pra mascarar sua verdadeira intenção!? Lembram-se que antes de empreender o voo final, entre outras temeridades, ele havia se agarrado a um motoqueiro em velocidade? Afinal, trata-se de uma tragicomédia!

Se passei tantos anos insistindo com a canabis foi porque, inspirada em Castañeda e Don Juan, uma voz interior me dizia que se eu quisesse ser um homem de verdade teria que enfrentar meus demônios. Pense num coquetel eclético (e indigesto)… pois foi o dos que me acudiram na travessia: Freud, Jung, Dali, Artaud, Dostoievski, Nietzsche, Eça de Queiroz, Lobsang Rampa, Kardec, o apocalipse de São João… E Pessoa, Machado, Jorge, Borges, Paulo Coelho… e Godard, Glauber, Buñuel, Pasolini, Fellini, Kurosawa, Herzog, Woody Allen, Meteorango, Belens, Wim Wenders…

Elipse de 10 anos. Ultimamente não tenho lido quase nada, e não é apenas por causa da perda da visão do olho esquerdo e da catarata no direito. Essa perda de interesse pelo mundo e sua nova configuração se deve em parte à perda de interesse do mundo por mim. Plantei e cultivei minha horta por muitos anos e acho que é legítimo o anseio de que minhas alfaces e couves, cenouras e beterrabas sejam vendidas e apreciadas pelo maior número de pessoas possível… Mas o fracasso de minha horta na feira foi retumbante, bilheterias pífias para os 3 longas. O fracasso só não foi maior do que o sucesso de crítica e as premiações. Mas não demorou e até os festivais passaram a me escalar pra uma janela secundária. Joguei a toalha e aceitei a recusa de meus frutos: no meu entender paranoide é porque tais frutos eram mesmo podres, que nem os de Caim.

Por outro lado, o mundo das curadorias tem uma lógica própria que eu não alcanço. Aliás, desde o início havia decidido não pautar meu trabalho por aquilo que o mercado estivesse ditando. Sei que pode ser tolice não querer fazer concessões, ou ter a arte como sacerdócio – veleidades! Mas: sabe aquele momento que não admite recuo, sob pena de se perder tudo o que se construiu até então (e falo em termos da “salvação de um cabra na Terra”, como dizia Bispo do Rosário).

Eu poderia negacear, fazer que não era comigo, desviar do golpe ou inventar novas reflexões: Twenty Century Fox? Pois: eu sou uma raposa do século 21. E os tapetes estão verdes. Ou podia acusar o sistema de distribuição, etc. Tudo lero. O que há é que envelheci, os tempos são outros, são outras as palavras: Third Millennium Streamings & Fox – Fuck me & Fuck you.

Estava eu lutando contra inimigos invisíveis pra escrever o presente texto, em ferrenho, quixotesco pugilato, quando Araripe, meu antigo companheiro da Lumbra, me liga: “Você tem que comprar um piano, Navarrinho.”

– O piano pode esperar, Ará. Agora tô trabalhando no texto do catálogo pra uma mostra retrospectiva de meus filmes em Piracicaba.

Cerca de três meses antes, estava eu prostrado, em plena crise de ansiedade e depressão, atravessado por uma agonia psíquica e moral inconcebível pra quem está de fora, quando recebi um telefonema do gestor cultural do Sesc Piracicaba.

Ele me convidava pra fazer uma mostra retrospectiva de meus filmes. Eu disse “Não! Estou muito doente.” Ele retrucou que a mostra podia me fazer bem, Piracicaba ia me fazer bem… Nada! Continuei dizendo “Não, você não sabe do que eu estou falando. É não!”. Até que uma droga alopática com nome de bomba (BUP-XL) respondeu, me dando os primeiros sinais de fumaça que queriam dizer “Sim, mano véi, você está melhorando.” Incontinenti mandei um zapp dizendo “Vamo lá, Chico, vamo fazer a mostra. Eu topo.”

E aqui estou, em recuperação, rezando pra que crises como aquela, recorrentes em minha vida… torcendo pra que crises como aquela não voltem nunca mais.

Lauro de Freitas, 28 de junho de 1978. Ops! 2024.

P.S.: Descobri tardiamente que não sou cineasta. Sou cinemêro. Parafraseando Manoel de Barros: “Para limpar das palavras alguma solenidade – uso bosta. Sou muito higiênico.”

Edgard Navarro

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