Conversa com Daniela Arbex, narradora do sensível 

28/08/2024

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Autora de Holocausto brasileiro, jornalista Daniela Arbex persegue o compromisso de honrar as histórias que descobre, ajudando a construir a memória coletiva do país  

POR RACHEL SCIRÉ

Leia a edição de SETEMBRO/24 da Revista E na íntegra

Quando escolheu ser jornalista, Daniela Arbex não tinha ideia de que se tornaria uma repórter investigativa. “Eu só sabia que era uma profissão para servir a sociedade e, mais do que isso, uma ponte para o coração do outro”, conta. As palavras da premiada jornalista revelam, entre outras características, o olhar empático que faria dela, também, uma escritora de sucesso. Recém-formada, ingressou na Tribuna de Minas, jornal de Juiz de Fora (MG), sua terra natal, onde trabalhou por mais de duas décadas. Como repórter, acumulou prêmios nacionais e internacionais, entre eles o Troféu Mulher Imprensa, dois prêmios Vladimir Herzog, três prêmios Esso, o Knight International Journalism Award e o Prêmio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina e Caribe.  

O primeiro livro publicado, Holocausto brasileiro (Geração Editorial, 2013), tornou-se um best-seller e foi reconhecido como melhor livro-reportagem do ano, em 2013, pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), além de inspirar documentário, série e filme. Em 2015, lançou Cova 312, pela mesma editora, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de 2016, na categoria Livro-Reportagem. A autora de não ficção também publicou, dessa vez pela Intrínseca, Todo dia a mesma noite (2018) – sobre a tragédia na Boate Kiss, em Santa Maria (RS) –, Os dois mundos de Isabel (2020), Arrastados (2022) – que conta a história do rompimento da barragem de Brumadinho (MG) – e Longe do ninho (2024) – que investiga o incêndio no centro de treinamento do Flamengo. 

Neste Encontros, Daniela Arbex compartilha capítulos de sua trajetória e reflete sobre temas como ética no jornalismo, disputa de narrativas e a cultura da impunidade no país. A jornalista ainda destaca o exercício de acolhimento frente ao relato de vítimas de tragédias e o privilégio que é acessar memórias afetivas. Ela também ressalta o que considera essencial na profissão: gostar de gente. “Eu não tenho dúvida de que o jornalista tem que estar ao lado de quem sofre.” 

JORNALISMO COMUNITÁRIO 
Tive a sorte de começar em um jornal local, do interior de Minas Gerais [Tribuna de Minas], mas muito importante para o estado. Isso me permitiu entender a relevância desse jornalismo de base comunitária, em que você está na rua, vê as demandas da população. Mesmo fazendo jornalismo diário, sempre voltei aos locais, e aprendi algo essencial para o jornalista, que é gostar de gente. Aliás, se você não gosta de gente é melhor escolher outra coisa, não dá para ser jornalista! O exercício do jornalismo diário me ensinou muito, e eu fui aprendendo a entrar na casa das pessoas, que é um lugar sagrado. 

RELAÇÃO COM AS FONTES 
Quando comecei, não sabia que as fontes podiam tentar te manipular. Essa relação tem um limite ético muito tênue. Nunca me deixei manipular, nem quando as fontes me passavam informações privilegiadas. Quando a pessoa se propõe a ser uma fonte, ela também tem interesses. Várias vezes tive embates. No entanto, diante de pessoas que foram vítimas, a minha postura exige acolhimento e empatia. Talvez uma das coisas mais importantes que aprendi, ao longo do tempo, é oferecer uma escuta qualificada, ou mais do que isso, afetiva, porque a palavra e a escuta curam. Há psicólogos falando sobre isso que eu vejo, na prática, nas entrevistas que faço com pessoas atravessadas por várias dores e perdas. 







“Mesmo fazendo jornalismo diário, sempre voltei aos locais, e aprendi algo essencial para o jornalista, que é gostar de gente. Aliás, se você não gosta de gente é melhor escolher outra coisa, não dá para ser jornalista!”

Daniela Arbex







(foto: Leo Aversa)

SUCESSO LITERÁRIO 
Quando lancei Holocausto brasileiro, foi uma surpresa enorme. O fato de o livro ter se tornado referência em saúde mental me deixa muito feliz, porque é uma vitória do jornalismo, no sentido de revelar e construir a memória coletiva do Brasil. Ele ainda reverbera até hoje porque é uma temática universal – todo mundo conhece alguém que teve algum tipo de sofrimento mental, inclusive nós mesmos. O controle de corpos e subjetividades consideradas desviantes é recorrente na história, principalmente dos corpos negros – 80% das pessoas encaminhadas para o Hospital Colônia de Barbacena (MG) eram negras. Holocausto é um livro muito incômodo, indigesto, difícil, mas altamente necessário porque dialoga sobre temas muito sensíveis e que continuam atuais, já que a luta pela saúde mental no Brasil ainda está em disputa. É uma obra que tira do anonimato pessoas que passaram a vida na invisibilidade. Eu não queria que elas morressem da mesma forma que viveram, mas que tivessem um rosto, um sobrenome, uma história. 

EXERCÍCIO DE ESCRITA 
Nem sempre a jornalista escolhe a história que vai contar. Muitas vezes, eu sou escolhida pela história. Quando lancei Holocausto, ainda estava trabalhando no jornal, não sabia nada sobre escrever livro. Só tinha certeza de que o texto não poderia ser o mesmo de um jornal diário. Fui aprendendo enquanto fazia, e percebi que a literatura permite uma liberdade. Não é preciso contar tudo no primeiro parágrafo, como em uma matéria de jornal ou revista, dá para guardar [informações] e fazer o leitor virar a página. Eu também escrevo respondendo às perguntas que faria como leitora ou espectadora. Sempre fui aquela pessoa que queria saber mais e a minha escrita é muito descritiva. Acho fundamental, porque tenho necessidade de entender o que se passou, preciso sentir o cheiro, viver o lugar. E, se eu preciso, acho que quem está lendo também precisa. Busco colocar o leitor ali. Quando ele consegue deixar o seu lugar para entrar no do outro, é um baita exercício de empatia. Para mim, o mais importante do meu trabalho é despertar empatia no outro. 

ARTÍFICE DA MEMÓRIA 
Meus livros escancaram a cultura da impunidade no Brasil, que é o que alimenta a próxima tragédia. Não é por acaso. As maiores tragédias brasileiras não tiveram responsabilização. Então, a gente precisa falar disso. Vem daí o termo que uso: “todo dia a mesma noite” [título do livro sobre o incêndio da Boate Kiss]. A tragédia não termina, ela continua repercutindo. Eu entendi que um dos papeis mais importantes do jornalismo é o de construir a memória coletiva, porque ao esquecer ou negar a história, ela se repete. É preciso construir a memória, mas a gente não desenvolveu esse hábito. Tantas coisas acontecem e vamos virando a página. Uma tragédia supera a outra. Não deve ser assim, a gente precisa se lembrar do que aconteceu, se instrumentalizar para lidar com o presente e enfrentar o futuro. 

Os atores Pedro Sol, Raquel Karro e Paulo Gargulho, em cena da série Todo Dia a Mesma Noite, adaptada do livro de Daniela Arbex, com roteiro de Gustavo Lipsztein e direção de Júlia Rezende (foto: Guilherme Leporace).

MUNDOS DE ISABEL 
Mesmo sendo muito diferente do que já escrevi, Os dois mundos de Isabel (2020) dialoga com o que eu venho fazendo, no sentido de construção da memória coletiva do Brasil, porque a gente está falando de uma mulher à frente do tempo, uma brasileira centenária que, aos nove anos, passou a ver e a ouvir coisas que ninguém compreendia. Ela fundou uma escola aos 14, tirou das ruas mais de 500 pessoas e transformou a vida de milhares. Se fosse só isso, já seria uma personagem maravilhosa. Meu receio de contar essa história era porque envolvia religião. Eu sou espírita, mas são coisas intangíveis, você acredita ou não. Mas, eu fiz o mesmo que em outros livros: uma investigação a partir da memória da Dona Isabel, para encontrar os personagens citados. O livro me ensinou que posso falar de outras coisas porque sou jornalista. Não tenho apenas um tema, nem preciso falar só de tragédia. Escrevo sobre aquilo que acho importante. Lidar com o bem, com coisas bonitas, foi muito importante para mim. Me reconstruiu também. 

DISPUTA DE NARRATIVAS 
O que me incomoda hoje é ver que a narrativa não é mais importante, e, sim, a guerra de versões. A gente precisa colocar a narrativa no lugar dela. Claro que ela é importante. Cabe a nós, jornalistas, mostrarmos quem fez o quê, e não deixar as pessoas sem saber, nessa era da pós-verdade.  O que nós fazemos com a nossa apuração, modestamente, é tentar nos aproximar ao máximo da verdade. Nunca será a verdade absoluta, não temos esse poder. No que estamos falhando, enquanto imprensa, é em permitir que a sociedade continue em dúvida. Os fatos não importam mais, só as ideologias, e a gente está sendo desinformado o tempo inteiro. A gente está abrindo mão do nosso exercício, o que me angustia muito. Isso também é um projeto de poder: descredibilizar a imprensa, enfraquecer o nosso papel, porque o jornalismo sustenta a democracia. Mesmo com toda a crítica que a mídia recebe, é importante valorizar instituições que têm uma trajetória de luta pela democracia, que são importantes na criação de políticas públicas. 

ATUAÇÃO MULTIMÍDIA 
Eu preciso continuar fazendo conteúdo relevante, seja em qual plataforma for. Tem público para tudo. Meu trabalho tem mostrado, fora do jornalismo, o quanto o jornalismo é importante. É muito bom quando você consegue conversar com milhares de pessoas. Ouvi que os meus livros são roteiros prontos, mas nunca foi de propósito. É lógico que hoje já se cria uma expectativa de que meus livros sejam adaptados para o audiovisual. O sucesso dá um recado à indústria do entretenimento: nós queremos ver as nossas histórias sendo contadas.   

Ouça a íntegra da conversa com Daniela Arbex, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, em 31 de julho de 2024. A mediação do bate-papo é de Danny Abensur, analista de comunicação na Gerência de Difusão e Promoção do Sesc São Paulo.

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