Em pauta: tablado ibero-americano 

28/08/2024

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Ainda que a geografia aponte para um distanciamento, os 23 países que compõem a Ibero-América, como Argentina, Brasil, Chile, Peru, Portugal e Espanha, aproximam-se por águas que confluem nas artes cênicas. É por meio do teatro, da performance e da dança que diferentes povos e culturas dessa região expressam, ao longo dos séculos, formas particulares de existir e de pensar o mundo. Hoje, uma convergência de temas e formatos torna possível esse encontro no tablado. Não só pela proximidade entre as línguas portuguesa e espanhola, mas principalmente pelas trocas decorrentes de um crescente número de festivais – a exemplo do MIRADA, Festival Ibero-americano de Artes Cênicas, realizado neste mês, no Sesc Santos –, pelo intercâmbio de pesquisadores e criadores e pelo fomento à produção artística nesses territórios. Além das semelhanças, as particularidades dos contextos histórico, social, político, econômico e cultural de cada nação possibilitam um diálogo cênico.  

Segundo a doutora em pedagogia do teatro pela Universidade de São Paulo (USP) Maria Fernanda Vomero, as condições de produção em cada país ibero-americano são muito distintas. “A começar pelas dinâmicas de financiamento e estímulo às artes, considerando o papel e a atuação do Estado e das instituições oficiais de cultura. Destaco outras diferenças importantes a se considerar: o contexto de formação de artistas, as modalidades laborais, as circunstâncias locais de acesso aos bens culturais e, sobretudo, a percepção social sobre o valor do teatro como expressão artística de interesse coletivo. A distribuição de recursos simbólicos e materiais é desigual mesmo internamente, em cada país”, destaca.  

Ou seja, “são muitos os desafios ao se pensar um teatro latino-americano”, como aponta a pesquisadora e dramaturga Helena Vieira. “Há uma imensa diversidade no interior do continente, a despeito de todas as semelhanças históricas, sociais, políticas e mesmo religiosas, as questões que a realidade suscita não são as mesmas e, portanto, a resposta que o teatro é capaz de ofertar não será a mesma. Cada país encontrará uma forma de abordar suas questões. Ainda nesse sentido, penso que há um desafio de intercambiar conhecimentos, práticas e modos de fazer entre as diversas experiências teatrais latino-americanas”, conclui. 

Neste Em Pauta, Vomero e Vieira compartilham suas reflexões e apontam semelhanças e singularidades do teatro ibero-americano em cena.   

Lampejos sobre a cena ibero-americana 
POR MARIA FERNANDA VOMERO 

Poderíamos imaginar, tal e qual o escritor português José Saramago em A Jangada de pedra (1986), que não só a Península Ibérica se desprende da Europa e navega pelo Atlântico, como a América Latina se desgarra da porção norte do continente, rachando na altura do Rio Bravo [no México], e se lança também à deriva. Embora não se grudem, ambas as jangadas permanecem sempre próximas. Saramago era crítico da entrada de Portugal e Espanha no bloco econômico europeu, argumentando que ficariam subordinados às potências do continente; no livro, o autor fabula outros horizontes. A metáfora da jangada nos permite alinhavar alguns elementos que confluem na complexa e diversa cena teatral ibero-americana. 

Outrora metrópoles coloniais, os países ibéricos talvez tenham hoje mais sintonia com os territórios deste lado do Atlântico, suas ex-colônias, que com os vizinhos geográficos – e parece que isso também acontece no âmbito das artes da cena. Não só pela afinidade idiomática e por ações de cooperação, como a realização de festivais internacionais (entre eles, o MIRADA) e iniciativas de fomento à criação artística, a exemplo do Iberescena – o Fundo de Apoio para as Artes Cênicas Ibero-Americanas –, mas também pelo constante intercâmbio acadêmico entre pesquisadores e universidades das áreas de teatro, dança e performance dos territórios latinos e ibéricos. 

No entanto, o contexto sociocultural e as condições de produção em cada país são muito distintos, a começar pelas dinâmicas de financiamento e estímulo às artes, considerando o papel e a atuação do Estado e das instituições oficiais de cultura. Destaco outras diferenças importantes a se considerar: o contexto de formação de artistas, as modalidades laborais, as circunstâncias locais de acesso aos bens culturais e, sobretudo, a percepção social sobre o valor do teatro como expressão artística de interesse coletivo. A distribuição de recursos simbólicos e materiais é desigual, mesmo internamente, em cada país. 

Fora dos grandes centros urbanos e dos circuitos artísticos tradicionais, são as iniciativas teatrais comunitárias em regiões periféricas ou rurais que contribuem – e muito – para manter a experiência teatral viva e próxima da população, como uma atividade pública de fato. Nessas iniciativas, as linguagens cênicas e os temas trabalhados estão em consonância com os modos de vida do território. Muitos coletivos teatrais oriundos dessas experiências se profissionalizam posteriormente, mas não perdem o vínculo nem o diálogo com suas comunidades. Na academia, em especial no Brasil e em Portugal, pesquisas a respeito dessas práticas têm revelado abordagens instigantes e inspiradoras. 

No contexto das grandes cidades, onde o cenário artístico é mais consolidado, o posicionamento crítico diante da realidade continua a orientar as práticas artísticas do chamado teatro de grupo – forma de organização e produção surgida durante os anos 1960 na América Latina e caracterizada pela pesquisa cênica continuada, pelo enfoque nos processos criativos e formativos e pela aposta em um projeto estético próprio. O teatro de grupo, mais que reunir um conjunto de artistas que fazem teatro, apoia-se na expressão coletiva e numa dinâmica de trabalho colaborativa. Por isso, tem uma inserção político-cultural e uma sustentação econômica bem diferentes das companhias nacionais/institucionais, mantidas por uma entidade governamental ou privada, ou dos elencos de montagens comerciais, contratados por obra. 

A cena teatral pode ser um espaço profícuo para o exercício da imaginação política, por meio da criação de utopias ou ucronias [recriações da história como poderia ter ocorrido], da representação de conflitos ainda não domesticados (ou não institucionalizados) no âmbito social e de fabulações sobre outros modos de existir. Boa parte da produção teatral ibero-americana contemporânea vem incorporando as demandas e urgências de seus territórios tanto em termos poéticos quanto estéticos. Corpos dissidentes têm ganhado a cena, mobilizando teatralidades diversas, trazendo novas performatividades e demolindo certas hegemonias representacionais. Outros discursos se estabelecem, desmontam-se hierarquias. 

As dramaturgias, pensadas de modo expandido (em diálogo com os demais elementos criativos), têm incorporado questões espinhosas – porém, nada novas –, em contestação às estruturas do poder. Estão, entre essas questões, relatos das violências contra as mulheres, povos indígenas e afrodiaspóricos, além de outros grupos sociais historicamente subalternizados; a visibilização de populações marginalizadas, como os encarcerados ou os refugiados; os dilemas diante das mudanças climáticas, para citar algumas. Embora as peças dramáticas, com seus personagens em um mundo à parte, ainda se mantenham atrativas para muitas plateias ibero-americanas, outros públicos dos mesmos países têm apreciado obras nas quais se veem representados e se reconhecem.  

Não podemos desconsiderar que a fruição opera na dinâmica entre entretenimento e reflexão – por isso, as escolhas estéticas são fundamentais para traduzir em cena os conteúdos tematizados. Em um panorama geral, a experimentação com a linguagem tem convivido com a opção por formas cênicas tradicionais. O trabalho com o arquivo ou o documento, às vezes combinado a um tratamento ficcional, tem sido bastante presente, sobretudo em trabalhos que lidam com o enfrentamento de questões em aberto da história recente de um país. A cena se torna espaço de produção de memória e corporificação de “presenças ausentes”. Por outro lado, há um interesse cada vez maior em obras fincadas na autoficção: a “escrita cênica de si”. Recordações familiares, vivências traumáticas ou experiências singulares tornam-se matéria de criação em primeira pessoa. 

Muitos artistas têm incorporado uma dimensão participativa, relacional e performativa em seus processos e produções em um provável intento de reestabelecer uma esfera de convívio e vínculo. Também observamos a aposta, cada vez maior, em uma perspectiva situada – ou seja, que leva em conta a singularidade territorial, política e vivencial daqueles e daquelas que estão na cena (artística e pública) – em oposição ao ideário falsamente universal, que durante séculos condicionou discursos e representações. 

Nas pontes que se estabelecem entre as jangadas latina e ibérica, fica evidente o desejo comum de não permitir que a atividade teatral sucumba às lógicas mercadológicas dominantes. E a disposição de manter o teatro como um local de encontro, convívio e partilha visando a um devir conjunto, onde seja possível fabular outros mundos – como os “navegantes” da narrativa de Saramago. 

Maria Fernanda Vomero é jornalista, performer e doutora em pedagogia do teatro pela Universidade de São Paulo (USP), com uma investigação sobre artes cênicas, processos artísticos e experiência política na América Latina. Tem especialização em Documental Creativo pela Universitat Autònoma de Barcelona (UAB), e atua como provocadora cênica em diversos coletivos da cidade de São Paulo. 

Aproximações e distanciamentos com o mundo ibérico 
POR HELENA VIEIRA 

Qualquer consideração sobre cultura e arte ibero- -americana deve ter em conta o processo colonial, que é marca fundante das formas de ser e pensar daqueles que vivem na América Latina. A ferida colonial segue aberta e é uma poderosa força que afeta desde as formas de organização política, até o fazer artístico e o “ser”. A esse fenômeno e a esses processos hierarquizantes que seguem existindo mesmo após o fim do domínio colonial, com as independências, autores como Aníbal Quijano, Enrique Dussel e Ramón Grosfoguel o chamam de “colonialidade”. 

A colonialidade, nesse sentido, diz respeito à permanência de uma lógica hierarquizante que abrange todas as dimensões da vida, e seus produtos, que nasce na modernidade, estrutura o período colonial e sustenta o paradigma moderno, eurocêntrico e capitalista de funcionamento do mundo e das relações.  O campo das artes, como o teatro, não escapa dessa hierarquia, do imaginário de que a “boa” ou “alta cultura” se faria na Europa, enquanto na América Latina fazem-se trabalhos amadores ou cópias ou apenas folclóricos, tomados como menores ou negativos, na perspectiva eurocêntrica de “alta cultura”.  

Obviamente é importante reconhecer as semelhanças que atravessam as trajetórias do teatro e das artes cênicas, de modo geral, quando pensamos em Portugal, Espanha e América Latina de maneira ampla. As importantes influências do teatro popular ibérico no teatro popular e de rua latino-americanos, o que se pode ver nas ricas adaptações do monólogo de Segismundo [personagem da peça A vida é sonho, do século 17] de Calderón de La Barca (1600-1681), texto marcante do teatro popular espanhol. Ou ainda, as relações estéticas quanto a cores, à tendência dramática etc. Contudo, mais importante que as semelhanças, penso que o desafio de fazer um teatro que dê conta das próprias questões é ainda mais central. 

Nesse sentido, destaco o comentário feito pela professora e pesquisadora Ileana Dieguez em entrevista ao MIRADA, realizado pelo Sesc São Paulo: “(…) desde os tempos em que Barletta criou El Teatro del Pueblo, na Argentina, passando pelos aportes da criação coletiva, a partir, especialmente, da Colômbia, pelo chamado teatro colaborativo no Brasil, até as teatralidades expandidas que vemos hoje, a investigação de linguagem tem a ver com as perguntas dos criadores sobre como falar, habitar e dar vida a situações que não sejam ilustração da realidade imediata, mas também tenham a ver com a busca ou o reconhecimento de outro tipo de espectador, como o faz La Candelaria [grupo teatral de Bogotá, Colômbia] desde os anos 1970. (…)”. 

Dieguez aborda, nesse excerto, a questão da investigação das linguagens no teatro independente na América Latina. É importante levar em consideração os exemplos que ela traz, da urgência da construção de um modo de contar e dar conta da realidade que responda a cada um dos países da América Latina. Ela continua: “(…) a realidade também desafia a criação, e há que se estar com o olhar atento para não perder a possibilidade de o real também nos transformar – e não somente como se tem dito tantas vezes, que é a arte que transforma o real. O modo como Yuyachkani [grupo teatral peruano] assumiu esse desafio foi decisivo no desenvolvimento estético e na complexidade cênica que esse grupo tem nos mostrado. Como falar de tempos tão difíceis produzindo cenas que dimensionem a complexidade daquilo que ainda se vive, parece inexplicável, e que no âmbito das imagens cênicas constitui potentes alegorias que nos permitem entender o vivido e o sofrido?”. 

É muito simbólica a referência ao Grupo Cultural Yuyachkani, que desde os 1970 atua na experimentação teatral e na performance política, encontrando no teatro formas de falar sobre questões que vão da memória até a etnicidade e violência no Peru. Seu trabalho é fundamental porque é um marco na construção de um teatro latino-americano. Tenho apostado nos últimos tempos em trabalhos teatrais que mobilizam, não necessariamente no âmbito de seus temas, mas também no que diz respeito às suas metodologias. Outro aspecto ressaltado por Dieguez é não tomar o teatro latino-americano uma sequela de influências europeias ou paradigmas europeus. Isso é muito importante porque, obviamente, existem e são fortes as influências do teatro europeu, de Brecht (1898-1956) e outros, por exemplo. Mas aqui, tais influências chegam capturadas pela lógica da colonialidade, ainda que se vejam modificadas, torcidas, transculturalizadas. Mesmo nesse processo de influência, há uma criatividade cultural que está imersa na lida.  

São muitos os desafios ao se pensar um teatro latino-americano, isso porque há imensa diversidade no interior do continente, a despeito de todas as semelhanças históricas, sociais, políticas e mesmo religiosas. As questões que a realidade suscita não são as mesmas e, portanto, a resposta que o teatro é capaz de ofertar não será a mesma. Cada país encontrará uma forma de abordar suas questões.  

Ainda nesse sentido, penso que há um desafio de intercambiar conhecimentos, práticas e modos de fazer entre as diversas experiências teatrais latino-americanas. Quanto a fazer conhecer as experiências de outros países, cito o esforço de Gustavo Geirola, André Carreira e Cristián Cortez na coletânea, publicada em 2010, Arte y oficio del director teatral en América Latina: Bolívia, Brasil y Ecuador. A obra – a quarta publicação de uma série –  reúne entrevistas de diretores teatrais da América Latina, em um intento sistemático. Geirola privilegia a escuta do diretor teatral, o que é bastante interessante e nos ajuda a considerar processos de criação e montagem. 

Escrevo desde o Brasil e, obviamente, não poderia deixar de abordar a distância construída entre o meu país e o restante da América Latina, distância essa que existe como resultado da presença da Família Real portuguesa no país, da constituição de uma monarquia imperial, a única do continente e, com isso, o nascimento da ilusão europeísta que acomete muitos brasileiros: os olhos que se voltam para a Europa, mas desconhecem a realidade e a produção artística dos demais países da América Latina. Isso tem mudado e a construção de espaços de intercâmbio e de trocas artístico-culturais se torna cada vez mais relevante.  

Ocorre este mês no Brasil mais uma edição do MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, um dos espaços mais importantes de intercâmbio, diálogo e trocas no campo das artes cênicas entre artistas e criadores da América Latina e da Península Ibérica. Este é um espaço de potência política e artística ilimitada e que, certamente, colabora para a descolonização das artes. Se por um lado é muito importante encontrar formas de tratar as questões que são próprias da vida e da política na América Latina, por outro, temos o desafio de fazê-lo sem nos intoxicar com o excesso de identidade e com a redução do teatro à identidade. Essa, penso eu, é uma das questões centrais do presente e dos próximos tempos.  

Helena Vieira é transfeminista, escritora e dramaturga. Foi professora da pós-graduação em Gestão Cultural Contemporânea do Itaú Cultural. Como dramaturga, dedica-se à pesquisa de teatro e memória, na busca de novas formas de contar e compartilhar histórias. Tal trabalho culmina, mais recentemente, no espetáculo Jango Jezebel: Onde estavam as travestis na ditadura, cuja estreia se deu no Memorial da Resistência de São Paulo, em 2022. Atualmente, é colunista da Revista Cult

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