Por Andrea del Fuego
Ilustrações Chico França
Leia a edição de SETEMBRO/24 da Revista E na íntegra
Para Paula Picarelli
Luz numa mulher vestida com uma sobrepele branca, arfando, deitada de lado num chão coberto com cinzas, ouve-se a manada. Terminará sua fala tingida pelo pó, inteira com o tom de uma elefanta.
– Sozinha, sou equivalente a quinhentos cavalos. Se me puserem armadura, o resultado ainda é melhor. A armadura precisa ter mil placas de prata, maleáveis, há que aderir aos movimentos da garganta. Por ordem de um imperador hindu ou mongol, se possível mongol, entro no campo de batalha montada por três homens. Enquanto dois atacam e pensam na direção a seguir, outro propriamente me direciona e me vigia, caso eu me rebele, quebrará minha coluna com a lança. Claro que minha coluna foi golpeada, uma pilastra em queda fazendo descer abaixo minha solidez, as costas murchando até deitar-me de lado e memorizar o rosto de quem me matou. Os homens, os três, descem do cesto militar e correm para o abrigo o mais longe da batalha, há mais elefantes desertando. O imperador em pessoa desceu do seu elefante, vestindo armadura ungida antes da costura. Mas daqui vejo para onde foram os homens que eu carreguei, estão atrás da raiz exposta de uma árvore. A raiz é tão robusta e capilar que os três somem entre os tentáculos. Fui treinada para desmembrar um inimigo, com uma pata achato um pé, e com a tromba puxo a outra perna até que os nervos arrebentem. Inimigo rasgado ao meio, ergo a tíbia ainda vestida com a calça de sarja, o pé com sapato vai se esfriar, já morto num canto quando o atirar ao longe.
Deitada de lado, condeno as próximas sete gerações desse homem, condeno esse que encaixou a lança entre minhas vértebras, assim como os quinhentos que eu deveria pisotear em nome do império. Serão séculos nascendo deformados. A degeneração óssea vai ser exibida em museu, a neurofibromatose múltipla chamada de elefantíase. O homem-elefante terá um fêmur maior e mais grosso, braços e rosto tentando crescer, mas podados pela carne dura, por isso, as sete gerações evoluirão como elefante-bonsai. Serão notados, cientistas ficarão intrigados, no laboratório os ossos serão lavados com detergente e cloro para análise. Nunca saberão que a mutação foi no primeiro folículo, no começo de tudo, na primeira pétala que gera pele e nervos, nunca saberão que ali já se programou um elefante no bípede.
Que a memória é maldição já foi falado no Egito quando a pirâmide ainda era um projeto. Aqui nesse corpo imenso cabe muita informação, cabe do acervo da história ao dia que nasceu o canino de um primo. Qual mamífero reconhece a arcada dentária de um finado? Eu reconheço a dos meus. Já reconheci ossos de parente numa planície onde só havia corpo de gente nômade, gente empurrada pelo vento até a desidratação. Se alguém escondeu um elefante num cemitério cristão, escavo até a pedra mais dura e não vou reconhecer os meus pelo tamanho não, é pelo som. Osso humano é poroso como esponja do mar, o meu também é esponjoso, mas ele vibra e humano nenhum pode ouvir. Osso enterrado irradia uma frequência que atravessa o lençol freático, ninguém tem ideia, mas todos os elefantes enterrados regulam o ph dos aquíferos.
Estou procurando minha tia.
Ela foi comprada por Pablo Escobar, ele possuía uma fazenda e sabia que um elefante era a gárgula mais eficiente para a catedral. Não faltou dinheiro para comprar cento e cinquenta quilos de frutas e raízes, o problema foi quando minha tia fugiu num descuido do administrador, com fome de outra grama. Minha tia queria reencontrar a manada, liderada pela matriarca, uma senhora austera que orientava vinte elefantas. Ela ainda tinha os molares, porque é quando cai o último molar que começa a despedida, o elefante não mastiga mais, a morte natural começa com uma cólica gástrica.
Não tenho marfim.
Não temos presas, nem eu, nem minha tia, pois somos asiáticas. As africanas sim, aquele marfim que começa tímido na infância e cresce até a velhice. Essa esponja de mármore, esse marfim cobiçado, tão sólido quanto maleável, orna salões de cassinos numa ilha chinesa. Esculpiram a aventura de uma família de macacos no chifre de uma matriarca. Os macacos dóceis ainda nas costas da mãe, tornando-se agressivos conforme o crescimento, a vida completa esculpida no chifre de três metros. O relato fica disponível para os jogadores do Casino Lisboa: mesas privadas para jogadas mínimas de um milhão, mestiças andando entre as mesas de jogos menores sem receber sequer um olhar, os cigarros esmagados no tapete com tratamento antichamas. Antes de ir embora, o turista diante da peça de marfim sobre uma base de jade, a luz do saguão definindo a família dos símios e, já na ponta da peça, um macaco velho ensina os descendentes atravessarem o mundo com cuidado, fábula sobre a vigília como única coisa concreta a aprender.
Eu falava sobre Pablo Escobar.
Na fazenda de Pablo sobraram os hipopótamos, eles precisaram ser castrados porque ninguém controlou a reprodução na antiga propriedade. Pablo Escobar deixava ônibus lotado de criança visitar o zoológico da fazenda. O transporte atravessava um portal, cujo arco sustenta a réplica do primeiro avião de cocaína que atravessou o céu americano, a aeronave faz sombra no teto do ônibus escolar. Estacionava perto da sede, a fila de meninos uniformizados seguiam até o parque particular. Depois de tudo, a fazenda já sem prumo e dono, os hipopótamos fugiram e agora rondam a Colômbia. Alguém foi chamado para abater alguns animais, porque eles se multiplicariam em velocidade alarmante. Minha tia fugiu junto com os hipopótamos e não sabem como uma asiática daquele porte não pode ser vista.
Não encontrei minha tia na fazenda. Ela fugiu de lá, mas poderia ter voltado num arrependimento. Morta ela não estava, eu também saberia, reconheço qual frequência emite uma matéria viva ou morta. Percebo e emito na mesma força. Um elefante pode atingir, com suas ondas, quem estiver num raio de quinhentos metros, quer dizer, como não notei tia nenhuma, ela estava mesmo longe. A frequência também deixa rastro por onde passa, árvores gravam vozes. Fui tateando, até ouvir na casca de um eucalipto o que alguém confessou: “nunca é um prazo, o meu esgotou”. Estranhei a falta de paciência num bosque tão cuidado. Talvez fosse de algum cuidador da fazenda, talvez Pablo Escobar tenha dito isso ao telefone para um concorrente, uma ligação clandestina feita na sombra da árvore, desconfiado dos mais próximos. Ou resolveu o que diria ao filho, caso descobrisse seu último plano, às vezes um espirro é o começo da avalanche.
Os dados da memória é um tablete de açúcar dissolvido na água do crânio, água que já esteve em algum leito de rio. A mesma chuva que lava telhado e encharca o chiqueiro, carrega a primeira frase de Adão, veio da chuva o leite de Eva. Minha cria, por exemplo, está encharcada de chuva em algum circo sem lona, com malabaristas jogando bolinhas num farol do Rio de Janeiro. Tenho uma filha, tenho uma tia, tenho o que procurar. Pelo menos da minha filha eu sei, vai fugir em algum momento sim, não sem antes carregar a mudança da cigana que faz questão da companhia de um elefante, a quiromancia exige boa memória.
Não é à toa que se memoriza melhor ao lado de um elefante, quanto mais próximo, mais infância e qualquer índice ficam nítidos como boa impressão fotográfica. Perto de um elefante, um tratador, uma criança curiosa, um imperador mongol, Pablo Escobar, ninguém pode esquecer o que viveu até ali. Não é que tudo volte aos olhos num pulo só, é que os dados se descolam do fundo e podem, por distração, parar na retina como um bailarino agradecendo o aplauso.
Mas a minha tia.
Ela e o imperador mongol não saem da minha cabeça. Ele tão eloquente, ela também. Sei tanto de um quanto de outro, sei até o que não vi, porque quem estava lá era a célula que geraria a minha, uma história invade a outra. Tanto é que sou elefante-bonsai. Também me amaldiçoaram, porque minha praga para as sete gerações futuras do imperador pegou, mas numa das famílias do império a praga foi cortada e estornada. Não sei como os netos daqueles guerreiros de Akbar, o mongol, amaldiçoaram minha geração, como acertaram a origem da praga? Como são tantas, elas, as maldições, elas acabam se esbarrando na atmosfera. Escute aqui, não fui a única elefanta a morrer em batalha de gente que nunca amei. Como souberam que eu, deitada no campo de batalha, no último olhar vibrei ainda mais os ossos para que meu campo alcançasse a medula daqueles homens, de tal modo que a elefantíase tenha atuado, até pouco, entre eles? Entre a vida e a morte, o moribundo sente uma cascata energética comparável à concepção, assim, eis aí outro som dos ossos, o estrondo da vida inteira num estalo, porque é sempre retomada a rebeldia do primeiro que morreu no mundo.
Akbar, o imperador mongol, subia no elefante pela tromba. Para que seu exército marchasse, abriu caminho na floresta usando cinco mil elefantes, cinco mil elefantes abrindo clareiras. Fora os quarenta mil espalhados por todo o território, todos ensinados a desmembrar os invasores. O lábio superior do elefante é também o nariz, o lábio leporino da minha filha taí para mostrar que o elefante tem uma cicatriz que liga olfato e o paladar. Minha filha já foi tão ingrata, que também acho que recebeu a praga dos guerreiros de Akbar. Ela não aceita sua marca, eu também não, mas não é isso que incomoda mais, a marca quem vê é a manada, a agressividade dela comigo é por puro temperamento.
Eu me livro de um cavalo como se fosse um coelho, mas não me livro da minha filha. Eu continuo depois de morta porque a filha vai seguir, atravessar a fazenda de Pablo Escobar, encontrar minha tia, pisotear um retrato de Akbar quando minha neta invadir um museu onde está a coleção de armaduras do século XVII. A descendência vai nascer antes de o circo fechar de vez, porque a cigana vai ganhar um macho asiático de outro circo que está em falência e precisa se livrar do peso. Depois, a cigana vai vender a família inteira para outro colombiano.
Nem os séculos separaram Akbar e Pablo Escobar, tempo nenhum dissolve minha tia, a elefanta ferida nas costas e minha filha. Nossas cinzas vão se somando, se as cinzas não se acomodassem, onde pisaríamos? Akbar e Pablo Escobar foram levados para uma indígena que manipula plantas como poucos vivos, algum antropólogo que não me lembro o nome, levou as cinzas dos imperadores, do mongol e do colombiano. Acredita-se que ambos foram cremados e até ali eram um polvilho solúvel. O antropólogo comprou os dois potes no mercado paralelo, e se as cinzas não são do corpo inteiro, são pelo menos das vísceras, havia um certificado confirmando exames do teor biológico daquele talco. As famílias dos imperadores optaram pela descida do corpo à terra para serem digeridos na mesma velocidade em que foram gerados. Mas num ritual íntimo, retiraram as tripas e o baço, puseram na pira e guardaram num pote, o material depois foi desviado pelos herdeiros e vendido no mesmo lote de duas pinturas modernas. Daí veio o antropólogo, que levou os dois potes numa negociação estranhamente fácil. Ele queria misturar duas culturas geracionais num só ritual, uma performance que ele anotaria num diário vaidoso.
Eis o andamento: a velha indígena sentou-se com os de sua idade, o antropólogo pode gravar tudo de um canto. Os jovens ralaram as espigas de milho e coaram o caldo numa lã crua. Beberam chá na madrugada e acenderam o fogo. O mingau de milho já fervia nas beiras do tacho, o mais velho de todos os velhos botou Akbar e Pablo Escobar, juntos, o talco dos dois, na panela. Engrossados ao mingau, comeram em cerimônia, cada velho uma tigela cheia: Akbar, Pablo Escobar e milho.
O antropólogo já havia presenciado o ritual onde os mais velhos comeram mingau de um parente. Por gratidão aos serviços prestados à tribo, o líder concordou em realizar um ritual com as cinzas que o antropólogo trouxesse, sem perguntar origem. A comilança servia para tirar o finado da lembrança para colocá-lo na memória. Quando o chá fez efeito, o fumo subiu a madrugada, um dos velhos berrou, tão longamente, que outro elefante respondeu na Ásia. O antropólogo não parou aí, ele achou o corpo da minha tia numa escavação, e desta vez fez outra experiência, juntou ela e uma estátua de Ganesha e outra de Dumbo vinda da Disney, as duas estátuas de gesso bem espatifadas, passadas em peneira de aço, sapecadas numa frigideira com milho enlatado, uma farofa que temperou com vinho do Porto. Comeu no apartamento, sem anotar nada.
Tanta carne misturada, a do elefante com a do homem, a do porco com o chimpanzé, duas da tarde misturada com oito da noite, a segunda com o sábado, meu pó com a água, para depois os resultados se misturarem outra vez, a ponto de a elefantíase, ou um elefante-bonsai, ainda serem o começo dessa história. Esta pata prestes a esmagar meu rosto é só mais um passo
Andrea del Fuego é escritora e mestre em filosofia. Autora de livros de contos, infantojuvenis e dos romances Os Malaquias (2010), pelo qual recebeu o Prêmio Literário José Saramago em 2011; As Miniaturas (Companhia das Letras, 2013); A Pediatra (Companhia das Letras, 2021); entre outras obras.
Chico França é ilustrador, cartunista e designer. Publicou Livro, isto (Terceiro Nome, 2014) e, além de ilustrar para editoras diversas, atua como artista gráfico para produções cinematográficas. É autor da HQ O Filme Perdido (Companhia das Letras, 2023), com roteiro de Cesar Gananian.
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