Digitalizar o orgânico, organicizar o digital 

27/11/2024

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“Na minha vida, a música é o maior lugar onde eu aprendi a escutar e aprendi a minha vez a fazer as coisas”, diz Dadá Joãozinho, de 26 anos. O cantor de Niterói não se considera um multi- instrumentista; domina o violão e a guitarra, mas também toca teclado, baixo, synth e qualquer tipo de máquina que faça música graças a uma relação um tanto quanto desinibida com os instrumentos e íntima com o computador. Às vésperas de lançar uma versão deluxe do disco tds bem Global (2023), Dadá remonta o processo criativo do álbum, que tem mais a ver com colagem do que com arranjos. 

Na faixa Habitual, por exemplo, Dadá partiu de uma base e a guitarra. Entrava na sala de gravação com a base de bateria, baixo e violão tocando no fone e fazia dois ou três takes curtos improvisando na guitarra. Em seguida, entrava na sala de edição e olhava o som – da forma mais literal: olhava a onda sonora na pista da edição do Ableton – e montava uma colagem do que seria uma linha contínua de guitarra, selecionando riffs, cortando, unindo partes até formar uma melodia na tela. Esse processo criativo às avessas exigia de Dadá uma postura mais de editor do que de instrumentista, como um atento organizador da sua improvisação. “Foi um processo de ir escutando o que eu tinha de material e ir montando as faixas como uma escultura”, conta. 

Foi um professor de eletroacústica quem disse para Dadá certa vez que, quando se ouve um violão tocando numa caixa de som, não é um violão que se está ouvindo – você está ouvindo a imagem de um violão. “Aquilo foi estranho, mas ao mesmo tempo libertador e eu sinto que fui muito influenciado por essa ideia”, afirma. “Quando eu faço esse corte de guitarra, eu não estou te dando uma guitarra, ou ainda um solo de guitarra, o que eu faço é uma imagem de som de guitarra, sabe? É uma guitarra que não existe. É como se eu pintasse o som de guitarra em uma abstração do som.” 

A ideia do som enquanto algo moldável não é nova. Dentro da eletroacústica, o conceito de objeto sonoro remonta os experimentos do francês Pierre Schaeffer nos anos 1950 com discos, fitas magnéticas e todo modo de processamento de som que ele tinha às mãos na rádio onde trabalhava. Schaeffer tocava os discos ao contrário, brincava com a velocidade da música, acelerando e diminuindo, e fazia justaposição com outros sons. Esses experimentos, que mais tarde culminaram em um grupo de estudos sobre música concreta na França, o Groupe de Recherche de Musique Concrète (GRMC), abriram caminho para toda criação que conhecemos hoje como música eletrônica. 

“Se você faz música eletrônica, você pode não saber, não ter a menor ideia de quem é ele, mas você está trabalhando com o conceito de objeto sonoro do Pierre Schaeffer”, afirma João Milet Meirelles, de 39 anos, mestre em Criação e Interpretação Musical pela UFBA, integrante do BaianaSystem e produtor musical de Jadsa, tanto no trabalho autoral da artista soteropolitana quanto na investida mais experimental de ambos, o projeto TAXIDERMIA. 

“Objeto sonoro é essa noção do som como objeto que se pode manusear e moldar”, explica João, “E ainda há também outro pensamento que está junto com esse que é pensar o som como a química, em que você mistura um elemento com outro e forma um terceiro. Esse pensamento conduz muito o meu tipo de produção. Por exemplo, tem muitas formas de começar uma canção com Jadsa, mas um jeito que eu gosto muito é partir do que a voz me sugere de processamento e manipulação. Essa relação com o timbre e a manipulação do timbre é peça chave no TAXIDERMIA.” 

No Brasil, músicos como Jorge Antunes, Jocy de Oliveira e Jamary Oliveira pavimentaram o desenvolvimento da eletroacústica no país. Foram eles que influenciaram a geração de Pedro Kröger, que, por sua vez, foi professor de João na matéria de Composição na UFBA. “Já tinha feito aulas de composição orquestral, mas ele [Pedro Kröger] também abria cursos de extensão voltados para eletroacústica. Eu ia em tudo. Foi quando chegou Guilherme Bertissolo e eu estudei essa perspectiva da construção dos timbres na música eletrônica de uma maneira mais baixo nível, como diria o pessoal da programação. O que a gente estava fazendo era criar som a partir da linguagem da programação, não a partir de um software que tem uma linguagem de programação por trás de uma interface bonita”, conta. Para João, a proposta soava como a mais radical possível: construir ferramentas de produção de som do zero, da imaginação. Foi a partir desse momento que o estudante passou a pensar o timbre de maneira mais estrutural, construir narrativas a partir do timbre e também abraçar o noise. Não obstante, é esse mesmo embasamento que João utiliza para trabalhar o pop de Jadsa. 

SOU GENTE, primeira faixa do EP VOL.1 (2020), trabalho de estreia de TAXIDERMIA, começou da voz e da intervenção sobre a voz. Toda introdução da música até entrar a base – que só chega lá para o meio da faixa – é a voz de Jadsa. Para um ouvinte desavisado, a ambientação poderia se passar como alguns synths. “É reverb, é picote de voz, é pegar a voz dela e estendê-la. Eu tiro uma sílaba e fico repetindo, tensionando até criar um acorde. É como se fosse um baixo, mas tudo é voz dela. É uma brincadeira com a matéria da voz de Jadsa. Há uma linha sonora que tem o desenho da voz dela, eu pego aquilo, recorto, colo, coloco efeito, estico, puxo.” 

Arte: Aline Bispo

Jadsa, por sua vez, adora. “Eu viro um instrumento, né? É muito bom também perder um pouco do controle do que você está fazendo e se tornar um outro instrumento”, comenta a cantora, compositora e multi-instrumentista de 29 anos. Dentro do estúdio, o processo criativo de Jadsa e João consiste em, ao mesmo tempo, digitalizar o orgânico e organicizar o digital. Durante a entrevista, João mostra um reverb de mola que faz parte de seu sintetizador. “O lance é que você pode ligar esse reverb e deixar ele ligado como é feito em produções convencionais, mas quando você entende que o reverb tem condução, tem expressão e precisa de dinâmica, a música ganha gesto”, elabora João enquanto desliza o botão redondo do reverb por toda sua circunferência. 


Pensar o som como a química, em que você mistura um elemento com outro e forma um terceiro.  


Autointitulado estudante da Universidade de 70, como chama a efervescente produção musical da década de 1970, Levi Keniata, de 30 anos, é o diretor artístico do Nebulosa Selo, um grupo de artistas que desenvolvem uma pesquisa que combina samba e funk, uma vez que consideram o funk a continuação do samba, tal qual o rap é pro soul. Dentro das numerosas produções de Levi, é bem provável que você encontre um risco de isqueiro ou uma escarrada – intervenções na música que se sobrepõem em camadas. “Tudo isso é paisagem sonora e vem de pensar o álbum como um filme. Então, além de ter a trilha, tem que ter a sonoplastia inteira”, explica o produtor, compositor e arranjador paulista. 

No estúdio do seu selo, no Capão Redondo, Levi produz descolado das telas. “Meu processo musical é de escuta. Eu prefiro ouvir: não está no tom, está no tom, está fora do tempo, regrava”, diz., “Antes de começarem a cantar a música, eu já tenho que estar falando o que o MC vai falar em uma linguagem não verbal, tá ligado? Os timbres, a altura, a densidade, o ritmo, o tipo de percussão, eu tenho que falar a parada sem usar a palavra e, para isso, é melhor escutar. Quando eu estou no estúdio, eu não quero ficar olhando pra tela do computador.” 

Ademais, o estúdio é onde se vive o máximo de uma experiência compartilhada de som. Se até os anos 1980, escutar música era uma empreitada coletiva na casa de alguém com discos e tal, com a chegada do fone de ouvido no Brasil, lá pelo final dos anos 1980, e a febre do discman nos anos 1990, ouvir música tornou-se cada vez mais uma experiência individual. “Antes de sair de casa, você põe seus fones de ouvido”, escreve Alexander Billet no livro Abalar a cidade, lançamento de 2024 da editora sobinfluencia. “A essa altura do campeonato, é algo rotineiro, que você faz sem pensar. O mundo que você deliberadamente escolhe para os seus ouvidos é muito mais interessante do que aquele outro do lado de fora, depois da porta da frente. Talvez você seja um dos poucos (não) sortudos que têm um carro, usando-o para ir e voltar do trabalho todos os dias. Ou talvez você seja um dos mais (não) sortudos ainda, sem lugar algum para ir. E aí você fica em casa. Dentro de um carro ou num quarto minúsculo, ali pelo menos você pode controlar o ambiente. A música que você escolhe é parte desse controle. Ainda que insistentemente tentemos, é inútil achar que podemos ter esse mesmo tipo de controle do lado de fora. Caminhando para o transporte público, para a escola, para fazer compras, nós ouvimos música não para nos envolver e nos conectar, mas para ignorar o que está ao redor.” 

Segundo Billet, o uso dos fones de ouvido hoje em dia é o maior símbolo da incompreensão da música como fenômeno social e da sua comodificação. De forma consciente ou não, usamos a música para nos anestesiarmos da cidade, que tem se tornado cada vez mais hostil. A sacada veio do Mark Fisher, em Realismo capitalista, quando o autor britânico aponta a ligação direta entre individualismo e o uso compulsório de fones de ouvido. Longe de demonizar os fones, os autores elaboram seu pensamento em direção a uma crítica mais radical: a quem serve a música hoje? Por que você escuta música? Quando? E como? 

Para quem produz, os fones de ouvido também trazem uma questão. Por um lado, ganha-se mobilidade, pois o fone transporta a qualidade sonora para além do estúdio. Por outro, é preciso considerar que hoje, décadas depois da chegada do aparelho e sua popularização, a maior parte do tempo que as pessoas passam escutando música é no fone de ouvido. Indo para o trabalho, trabalhando, voltando do trabalho e até em casa. A popularidade, no entanto, não acompanhou o refinamento sonoro dos aparelhos. O grande acesso da população ainda é dos fones de pior qualidade. Com esse recorte de classe, quem produz tem que pensar para quem toca e como essa pessoa ouve. 

“O modo como o fone de ouvido está dentro do nosso cotidiano impacta no estúdio”, diz Levi. “Muita gente que produz começou a pensar: se o fone não reproduz bem uma masterização, para que fazer uma master tão preciosista? Tem que fazer uma máster para o som bater bem em um fone de ouvido que é vendido no trem.” Ainda que Levi garanta que uma masterização boa bate bem em todos os aparelhos de escuta, a experiência do fone de cinco reais continua sendo um tanto quanto particular. Para o som bater legal no fone mais sucateado do mercado, o grave precisa estar bem mais alto do que o indicado. E isso tem moldado parte significativa da produção musical no Brasil, especialmente as produções independentes.  

Levi abomina o mouse e se considera um produtor um tanto quanto analógico – o que não o impediu de usar inteligência artificial para criar as locuções “Você está ouvindo a rádio Dimaloka” em diversos idiomas no EP Dimaloka, Vol.1: Denso (2023), de Marabu, prata da casa do Nebulosa Selo. “À medida que a produção musical pôde ver o som, literalmente ver na pista de edição com o grid do tempo, tudo mudou no processo de fazer música. Quando você escutar Bob Marley & The Wailers, joga numa pista, no grid do programa, e vê se vai ficar no mesmo tempo – não vai”, provoca. “Ao longo da música, o tempo vai variando porque são pessoas tocando, tá ligado? A mão cria uma dinâmica e quando você bate o bumbo e o baixo, eles não pegam necessariamente juntos, o baixo vem um pouquinho depois do bumbo, então isso cria uma sensação, uma textura orgânica.”  

O contraponto dessa textura são as batidas feitas nos dias de hoje. Segundo Levi, está em voga a ideia de que as batidas têm que ser exatamente cravadas no tempo e a voz ser extremamente afinada, com uma boa dose de autotune. Enquanto os efeitos digitais podem ser apropriados de forma orgânica e o autotune tornou-se uma estética de distorção ímpar na música, a busca da mixagem perfeita e mais palatável para as playlists de streaming tem enriquecido mais inteligências artificiais do que artistas. 


Com a chegada do fone de ouvido no Brasil, lá pelo final dos anos 1980, e a febre do discman nos anos 1990, ouvir música tornou-se cada vez mais uma experiência individual.


Uma reportagem do Núcleo já apontou que centenas de artistas presentes nas playlists oficiais do Spotify não existem. Sem nenhuma descrição na plataforma e nenhuma informação disponível no Google, tratam-se de pseudônimos de produtoras de áudio – a maior delas baseada em Estocolmo, sede do Spotify. “Boa parte das playlists editoriais de maior sucesso no Spotify giram em torno de vibes: playlists para relaxar, estudar, cozinhar, quase sempre feitas por produtoras profissionais sob centenas de pseudônimos. Isso não é à toa. No mercado de música centrado em plataformas, o ouvinte médio da plataforma parece não se importar com o que está tocando, contanto que a música forneça a ambiência desejada”, escreve Sofia Schurig na reportagem. 

Entre as playlists de lo-fi para estudar no YouTube e a proliferação da inteligência artificial no Spotify, a digitalização da música aponta para uma pasteurização da produção musical. Isso porque entrar nas playlists do Spotify ou emplacar um hit no TikTok é hoje a maior chance de artistas comuns furarem suas bolhas e conseguirem alçar maior alcance. 

Com playlists que têm uma seleção de acordo com a vibe (e notadamente o algoritmo do Spotify tem sua preferência de arranjo, timbre e qualidade da gravação), é lógico que a maioria das produções musicais vão seguir a tendência de mixagem mais tradicional, alinhada ao que emplaca na plataforma. Impossível negar também que é o funk que reúne mais artistas à margem da regra, que trazem outra textura à tona: suja, barulhenta, jovem e irresistível – seja porque estão investidos na subversão da estética seca da produção contemporânea, seja por um processo criativo que parte do referencial do baile funk, ou seja: a música tem que bater como bate no baile. 

“Quando você escuta o DJ Mu540 em DESCE LICOR, você escuta, literalmente, uma mixagem que é proposital para ser uma reprodução do que acontece no baile funk”, exemplifica Levi, elencando como a rua influencia o estúdio. “Uma mixagem tradicional vai visar um equilíbrio entre todas as frequências, enquanto em DESCE LICOR as vozes estão um pouco mais pra trás, as cornetas pegam forte com um grave distorcido, saturado, enquanto os agudos estão cortando mais em cima, entende? Para mim, dá a impressão de que você está no baile, tem muitas coisas acontecendo e você não é a pessoa que está na frente das caixas para a voz chegar primeiro, você está mais distante, atrás das caixas, do lado.” 


Longe de demonizar os fones, os autores elaboram seu pensamento em direção a uma crítica mais radical: a quem serve a música hoje? Por que você escuta música? Quando? E como?


Boa parte da estética que compreende o funk na produção musical é influenciada pela rua, pela experiência múltipla e vernacular do baile funk em diferentes estados do país, e pelo maior agente do baile: o paredão de som. “É música alta, distorcida, tudo estourado, aquela bagunça – quando você chega em casa, você quer continuar fazendo essa bagunça”, conta Ramemes, de 24 anos, sobre a forma que o paredão influencia sua forma de produzir. “Os cria fazem música sem pensar em mixagem e masterização, é: botou aqui, bateu som legal no ouvido, então é isso. Vai chegar no baile, botar no paredão e o som tem que bater reto, arregaçando, não é que nem casa de show que bate fofinho, não”, completa o DJ e produtor de Volta Redonda que ganhou a alcunha de “o destruidor do funk” depois de algumas faixas em 200 BPM. 

Depois de uma infância regada a dubstep, Ramemes conheceu o funk, ficou encantado e, hoje, assina seu disco TAMBORZIN DE VOLTA REDONDA (2023) com um reverb molhado, muito delay e graves distorcidos. Fiel defensor do Soundcloud, o DJ reconhece que até tem produtores de funk que postam música no Spotify, mas é no Soundcloud que a música se movimenta, com uma atualização diária e uma ponte entre DJs nacionais e internacionais

Apesar de reconhecer a importância do TikTok para realçar a produção de funk do Rio de Janeiro, em um contexto em que as maiores gravadoras de funk estão em São Paulo, a plataforma parece incipiente para Ramemes. “Fazer música para o TikTok não é uma receita, mas tem padrões para seguir, com batidas certas, em momentos certos que faz a galera conseguir fazer uma dança, que a pessoa tem que conseguir jogar o ombro para trás, tá ligado?”, analisa. “Mas aí você toca a música na festa e é horrível, é chata. Recentemente viralizou um drum’n’bass de um amigo meu, mas é um em um milhão porque normalmente o que viraliza no TikTok é o funk mais padronizado.” 

Quando tocou na prestigiosa rádio londrina NTS, Ramemes fez questão de apresentar um set só de beat série gold, que é uma batida regional de Macaé. Recentemente, tocou em Rondônia e descobriu o noiadance. Anda fascinado pelo rock doido do Pará. Em um frenesi de pesquisa, YouTube e Soundcloud são seus maiores aliados, regados, é claro, por uma boa vivência em todos os territórios por onde passa, ouvindo as pessoas e conhecendo a música de rua de cada lugar. Afinal, o paredão pode ser uma marca do funk no sudeste, mas é uma tecnologia de escuta que não tem exclusividade com gênero nenhum.  

Ilustração: Aline Bispo

“Então, na verdade, o meu primeiro contato com estrutura de paredão, de equipamento de performance foi vendo aparelhagens de som na praça da minha cidade”, conta Knid, vulgo pelo qual é conhecida Natali Pereira, de 24 anos, DJ residente da Function. Knid também é idealizadora do projeto Caixa Alta, que ensina as pessoas a fazerem suas próprias caixas de som, buscando disseminar o conhecimento sobre sistemas de som em Belo Horizonte, cidade onde reside hoje. “Eu cresci numa cidade chamada Itupirã, no Pará, que é uma cidade super pequena, de quase 70 mil habitantes, mas 14 de julho é o aniversário da cidade e colavam as maiores aparelhagens do estado, como Super Pop, Príncipe Negro, Rubi, Águia de Fogo.” 

Da infância regada a tecno-melody, tecno-brega, brega-funk e muita música jamaicana em casa – influência direta do pai maranhense –, Knid se lembra nitidamente dos médios e dos agudos. “Eu lembro muito da sensação física do agudo do tecno-melody atravessando a minha alma, sabe? Era literalmente ‘como eu vim parar aqui eu só tenho seis anos’”, brinca. Em novembro de 2022, Knid conheceu Lucas Emerick, de 29 anos, em uma oficina ministrada por ele para ensinar como construir seu próprio sistema de som – o resto é história: ficaram amigos e levantaram juntos o CAIXA ALTA, com um objetivo prático de fomentar a cena musical da capital mineira e aumentar a viabilidade de mais festas nas ruas com seu próprio sistema de som. 

Antropólogo, DJ, técnico em automação industrial e engenheiro de software, Lucas é uma pessoa curiosa, para dizer o mínimo. Em menos de dois minutos, dá conta de explicar como funciona um paredão de som e, no minuto seguinte, está gravando um set na Function para, mais tarde, dar uma oficina do CAIXA ALTA para as pessoas montarem suas primeiras caixas de som usando materiais fáceis de encontrar no cotidiano, como caixas de leite e papelão. Aprendeu tudo no YouTube, nos vários canais sobre som automotivo e hoje leva, junto com Knid, essa tecnologia de escuta para o campo das artes visuais. Conversar com Lucas é uma coisa meio doida.  

“É o seguinte: o sub faz as baixíssimas frequências, a corneta faz o médio e o tweeter faz o agudo”, explica Lucas, “O som de paredão normalmente pensa numa otimização, o que significa a aproximação dos elementos. Então, os paredões já são construídos juntando essas partes, formando o desenho do som. Por exemplo, embaixo vai o sub, no meio o grave, em cima a corneta e, mais em cima, o tweeter, porque esse desenho gera o melhor acoplamento dos elementos.” A quantidade de cada caixa varia de lugar para lugar, mas Lucas explica que, assim como a pisadinha tem uma cornetada marcante e isso tem um certo valor, uma certa ênfase, tem certos sistemas de som que podem ter mais cornetas ou ainda cornetas mais potentes para poder reproduzir esse som com mais flexibilidade, sendo que a quantidade não é o único foco. 

Com as frequências mais baixas embaixo e as mais agudas em cima, o som deixa o paredão e atravessa o ambiente navegando na vertical. A experiência sonora se dilata pelo corpo e a regra é uma só: o som tem que bater. “Minhas maiores horas de trabalho no BaianaSystem consistem em fazer essa conversão da produção do disco para o trio elétrico”, conta João Milet Meirelles, produtor já apresentado e responsável por comandar o live eletronics com a banda desde 2012. Curiosamente, o BaianaSystem surge da ideia de somar o sound system com a guitarra baiana, tomando o trio elétrico como o sound system original de Salvador. No entanto, o disco é pensado para o streaming ou, como João define, para quem vai ouvir o disco; o trio é outra coisa. 


Enquanto os efeitos digitais podem ser apropriados de forma orgânica e o autotune tornou-se uma estética de distorção ímpar na música, a busca da mixagem perfeita e mais palatável para as playlists de streaming tem enriquecido mais inteligências artificiais do que artistas. 


O trabalho de João ao preparar o Navio Pirata – o trio elétrico do BaianaSystem – começa com uma lista dos instrumentos que vão ser tocados ao vivo e o que vai estar na base. Depois, escolhe outro timbre, muda os arranjos, sempre com uma regra em mente: o som tem que bater. Outra característica fundamental que norteia essa remodelação do som para o ao vivo é a duração: como o trio elétrico tem entre 3 e 5 horas, as músicas não podem começar e terminar em dois minutos, como no disco. É necessário um trabalho de mudar a forma da música também, deixando as faixas mais abertas, com mais oportunidades para um solo e uma condução junto com o público. No streaming, o negócio é diferente. 

“É impossível não ser atravessado pelas diferentes mídias que são suporte da música”, reflete, “Eu não acho que seja uma pena que as pessoas ouvem música agora pelo TikTok e agora a gente tenha que fazer música para o TikTok. Eu acho que tem seu lado positivo e tem seu lado terrível também. Mas o fato é que modifica a forma da gente escuta e como a gente faz música.” Sempre foi assim: enquanto a produção musical tenta estabelecer um diálogo com a rua, a experiência viva da música, a mídia de distribuição regra o estúdio.  

“A música padrão tem mais ou menos três minutos que é o tempo que cabia na mídia quando as primeiras gravações foram feitas”, conta João, “O CD tem 74 minutos porque o cara que inventou o CD lá na Sony queria que coubesse a Sinfonia nº 9 de Beethoven em um disco só.” Aqui, um breve parênteses porque a história vale a pena: quando o CD surgiu, a ideia original do projeto era que o CD deveria ter 60 minutos, mas o vice-presidente da Sony, Norio Ohga, demandou que o CD comportasse 74 minutos para poder ter em um disco a gravação da Sinfonia nº 9 de Beethoven. Uma ordem da chefia e eis que toda a produção das próximas três décadas giraram em torno de 74 minutos. Se quer mais, tem que fazer um disco duplo; se quer menos, está jogando minuto fora. 

“A internet tem essa cultura de acelerar e desacelerar a música desde muito tempo”, diz Chediak, como é conhecido Pedro Chediak, de 25 anos, DJ, produtor paulistano e idealizador da festa de música acelerada SpeedTest Rave. “Eu lembro muito de um movimento da gringa do DJ Screw que chamava Chopped and screwed. Foi ele o primeiro cara que fez essas versões mais lentas com reverb molhado de músicas que saíam nos anos 1990 e, hoje, isso é uma trend no TikTok também – qualquer música lá tem a versão Slow Reverb. Eu acho que o Spotify vai colocar essa função em breve para o próprio usuário desacelerar ou acelerar a música, sabia? Isso porque o TikTok me ajudou a perceber que as pessoas gostam de manipular e distorcer música, assim como todo mundo gosta de desenhar, de registrar suas ideias.” 

Chediak acredita que a intensificação do feed da rede social gerou um tumulto na forma que se consome música também – e daí vem o desejo de intervenção. É comum que o DJ receba mensagens nas redes sociais com pedidos de remix e muito bem direcionados: você pode fazer essa música estilo drum’n’bass? “Eu tentei, deu certo e acabou saindo, assim, isso aconteceu várias vezes já e é legal quando as pessoas veem que tem essa interação, sabe?”, comenta. “E, pô, eu sempre falo disso em qualquer oportunidade que eu tenha: a pirataria é muito importante no Brasil.” 

Baile da Selva, Complexo da Penha, Rio de Janeiro. Ramemes chamou Chediak e, sem hesitar, ele foi. A experiência marcou o DJ a ponto de brilhar seus olhos quando ele lembra de se sentir imerso em um ecossistema em funcionamento em que a música guia tudo. Bailinho, pô. Uma coisa em especial saltou os olhos: a mesa de som. “Todos os DJs tocaram em uma mesinha de plástico, assim, daquela da escola, e um iPad colado com durex na mesa”, relembra. Cada um chegava, conectava seu pen-drive com um adaptador e assim o som do baile foi feito por umas quinze horas. 

“Num país tão difícil e desigual como o Brasil, conseguir sentar para produzir um som é graças a pirataria, sabe?”, diz Chediak, “Eu já vi crianças e adolescentes produzindo no celular com o aplicativo craqueado e, mano, os moleque tirando um som absurdo.” Foi na adolescência também que o próprio Chediak começou a brincar de ser produtor. Com 13 anos, baixava do YouTube vocais de funk e tentava encaixar as músicas no Sony Vegas, um programa de edição de vídeo que, bom, era o que tinha e quebrava um galho. 


A experiência sonora se dilata pelo corpo e a regra é uma só: o som tem que bater.


O DJ brinca que, se a música é a trilha sonora da sua vida e você só escuta, você tem só 50% da experiência. Apesar do acesso à produção, a distribuição continua sendo um funil: no funk, o que chega no streaming, e consequentemente viabiliza viver de música, é uma versão limpa do movimento cultural. “Pensa em como soa um funk num baile e compara com como soa um funk num álbum da Anitta – por mais que seja muito bem feito, é higienizado. E são produtores muito bons, mas eles tem que seguir uma certa cara pra caber numa caixinha do streaming”, afirma Chediak. “No fim, pra cada vez que a roda gira no mainstream, ela gira umas 200 vezes no underground”, dispara. 

“Pra mim o problema não é a inteligência artificial de maneira nenhuma, o problema é a música ser tratada como bolsa de valores”, dispara Luiza Lian, de 32 anos, cantora e compositora paulista. “Essas grandes companhias musicais, grandes gravadoras são empresas que estão em capital aberto. É possível hoje investir em royalty de música, como uma ação. E se está em capital aberto, a maioria das pessoas estão ali comprando ação para um lucro imediato.” 

Esse sistema de investimento na música acontece tanto nas ações da própria gravadora ou na compra de royalties musicais. Com um discurso legal de investir o dinheiro em catálogos de artistas, em 2020 proliferaram algumas agências especializadas no tema no Brasil, como a carioca Adaggio. Mas a brincadeira não é para todo mundo; segundo a CNN Brasil, para começar a investir na Adaggio é preciso um investimento mínimo de R$10 mil. 

“Por isso que as pessoas começaram a entrar nessa lógica de que você precisa fazer um hit”, provoca Luiza. “O artista tem que estudar o que as pessoas estão ouvindo mais, o que está viralizando mais, para fazer um hit em cima disso. E essa música precisa vir, crescer e ser esquecida depois – porque o que interessa não é o longo prazo. Em algum momento, a gente também começou a ser programado para escutar música dessa maneira.” 

Diretora criativa de 7 estrelas | quem arrancou o céu? (2023), disco em que a tecnologia é um grande eixo temático, Luiza conta a esta reportagem que a composição partiu de uma pesquisa dela e do seu produtor, Charles Tixier, em algo que poderia ser definido como voyeurismo ou flanar digital. Isso, claro, somado à atmosfera de videogame e de trilhas sonoras de filmes. Não à toa, 7 estrelas é o trabalho mais digital de Luiza, em que as distorções ganham um peso temático e estético. 

“A ideia era fazer um videogame do 7 estrelas, onde teria esse grande espaço vazio e o personagem tem que coletar amuletos de cabeça que seriam encontrados em cada um dos espaços”, conta Luiza, que chegou a elaborar um projeto de jogo. “Nessa jornada, que é um pouco a história do disco, essa pessoa entrava dentro do computador, encontrava bots, inteligências artificiais e outras reproduções de pessoas. E cada uma vinha meio que dar uma lição. Mas a ideia era ser um jogo com várias propostas diferentes e cada música apareceria em um momento.” 

Imageticamente, Luiza definiria seu show como uma ópera high-tech. Enquanto os figurinos remetem a uma era medieval, da antiguidade, a música te joga para uma viagem no espaço. “É como se estivesse inserida num game, um Elden Ring da vida. Provavelmente, eu fui muito influenciada pelo Charles porque ele é super fã da trajetória desses games”, comenta. “Essa paisagem que eu tento montar no show tem alguma coisa de ficção-fantástica e de realismo fantástico. Como se as coisas pudessem caminhar na minha frente sem materialidade, sabe?” 

“Talvez a tecnologia me interesse tanto como tema porque eu tenho uma outra vivência que é anterior a isso”, elabora Luiza., “Eu sou de 1988, então eu pude acompanhar esse surgimento da internet, do YouTube, de tudo isso, e da promessa da grande expansão que isso significaria para a gente – e eu vejo hoje como essa grande expansão se transformou no maior experimento social de homogeneização que a gente já viveu, sabe? Hoje, a gente já está completamente imerso nisso. Eu penso muito sobre como isso mudou as nossas relações e a nossa presença no mundo, acho que porque eu vivi um outro sonho dessa inserção da virtualidade, sabe?” 

Nessa conversa sobre uma utopia roubada, apresentei para Luiza o I-Doser: uma plataforma na qual se pode ouvir músicas que supostamente ajudam ondas cerebrais com uma determinada funcionalidade.  Com motions de cromoterapia, o usuário pode escolher o áudio da vez, que inclui categorias como “Antisad – Simply not sad” e “Confidence – A stronger you”, (“Antitriste – Simplesmente não triste” e “Confiança – Um você mais forte”, em traduções livres). Talvez tenha sido a pior notícia para a noite de Luiza, que estava prestes a viajar para tocar em um festival. “Assim, é obscuro até que a gente pense em usar a tecnologia para resolver o nosso grande vazio – porque esse vazio é humano. E talvez faça parte da maneira como a gente está consumindo tudo e a música é só mais uma dessas coisas para tapar um buraco”, reflete. 


No fim, pra cada vez que a roda gira no mainstream, ela gira umas 200 vezes no underground


Ao mesmo tempo, Luiza afirma não ter medo nenhum da inteligência artificial. “Acho que os publicitários podem ficar muito preocupados com a IA”, debocha, “Quem faz música de uma forma utilitária pode, de fato, ficar preocupado com a IA. A playlist de jazz para ficar dando play no Spotify, que é uma coisa completamente genérica e tudo mais. E a gente está sofrendo com a IA porque todo mundo começou a fazer música como se estivesse fazendo publicidade. Nenhuma IA é capaz de fazer o que eu faço. E acho que provavelmente se eu fizer um dia um trabalho com IA, pode chegar em pontos muito mais interessantes por causa da minha subjetividade.” 

Curiosamente, todos os músicos entrevistados para essa reportagem, que insiste em tentar responder como a tecnologia influencia a forma que a gente escuta música, percebem o som de maneira visual. Antes de tudo, a imagem. Se Dadá Joãozinho vê seu disco como uma escultura, Jadsa intenta uma peça de teatro e Levi Keniata, por sua vez, como um filme – percepção compartilhada com Luiza Lian, que em determinado momento da entrevista afirma pensar como uma cineasta. É natural, uma vez que a imagem atravessa toda a produção musical hoje em dia. O consumo de música, por sua vez, também vai ser atravessado pela capa do disco, a interface do streaming, a letra, o feed do artista nas redes sociais.

Na contramão de artistas falsos, playlists de vibe e música utilitária, estão as tecnologias de escuta mais sofisticadas da geração: as que fazem a gente vibrar junto, do paredão de som ao fone de ouvido mais vagabundo que tem – e a gente ainda divide cada ouvido pra mostrar aquela lá que tá bombando. 

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