Relato Poético: Loucura de Camburão

18/09/2024

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Por Nicolau Ori Lauren
Ilustrações de Mirian Baião Cambolo

*Este relato traz conteúdos sensíveis que podem gerar gatilhos emocionais.

Dia 1

É, acho que esse foi o dia mais violento e impotente da minha vida até agora. Não sei se choro o dia todo, se yncorporo um personagem pra fingir normalidade aqui dentro, se só mantenho a calma… Fico na minha e interajo com as presas (inclusive, ganhei estas folhas e acho que é isso que vai me salvar da loucura neste pesadelo). A verdade é que nem entendi o porquê de eu estar preso ainda, só preferi não falar nada, então eles só me trouxeram e também não disseram nada. Pela minha trajetória, achei que era mais provável que me matassem do que me prendessem, mas o sistema sempre arranja uma maneira de trazer reflexões pra gente, não de uma forma boa… 

🎶 Todo camburão tem um pouco de navio negreiro [MARCELO YUKA]🎶 

6h da manhã, acordando com um fuzil na cara 
O que vocês tão fazendo aqui na minha casa? 
“Fica parado, fica parado”, falou o alibã 
Era uma operação, uma puta operação em que “coincidentemente” eu estava 
No chiqueirin, por 8 horas algemado no sol, na minha cabeça passaram mil fitas, miiil fitas… 
O que eu fiz pra tá aqui? Fiz de tudo pra não cair no crime 
Eu tentei fazer o corre certinho, tá ligado. Achei que assim fosse dar certo… 
Fui pra escola, estudei, até fiz aquela universidade que falaram que se fizesse tudo ia dar caminhar…  
De que adianta?  
Pelo jeito, não importa o que a gente faça, é sempre o mesmo resultado, sempre o mesmo resultado, sempre o mesmo resultado.  
Isso me faz pensar que na realidade não é sobre o ato 
Sempre foi sobre o corpo 
Em posição fetal, com mão e pé algemados no camburão  
Veio em mim uma lembrança ancestral, talvez a posição tenha me engatilhado a ponto de desbloquear essa memória, que, por sinal, não é só minha.  
Era um dos meus, nessa mesma posição, em um extremo misto de ódio e melancolia 
Senti um calor no meu corpo, como se eu me transferisse pra cena desse ancestral e em seguida ele se transferisse ali comigo, em algo que por um momento me pareceu como um abraço.  
Desafiando todos os conceitos científicos de tempo e espaço 
Naquele instante, compartilhei daquele sentimento de melancolia e ódio, ódio e MAIS ÓDIO… 
Nessa hora, junto com uma espécie de frescor nas costas, também veio a memória de que nesse corpo tem sangue, e esse sangue é quilombola 

Esse sangue é quilombola, eu nasci porque quem veio antes era brabo

E quilombola e “coincidentemente” o mundo também quer me prender/matar…  
Já não sei bem diferenciar o prender e o matar, sinto que ser preso mata quem já fui ou sonhava ser. 
Então também já não sei se tô vivo 
Me refiro àquela lá que existia antes 
Mas também não sei se já sou o que vai vir depois daqui. 
Pode ser que o meu eu esteja em lugar transitório, entre vida e morte, novamente, estando vivo, só que em período de espera pra existir 
Quem vai ler isso no futuro, provavelmente não vai estar mais falando comigo, mas com outra possibilidade do eu, que também vai habitar esse corpo
Espero que elu se dê bem, que se sinta livre, se sinta próspero em algum momento }
Esse eu aqui já entendeu que, pra corpo como o meu, liberdade não existe, mesmo com a troca de corpo 
Sinceramente, se fosse pra depender dos capitão verme, num era nem preu existir 
O melhor pra eles é que a gente se sinta assim, inexistente/preso.  
Ou se estiver livre, que a gente se sinta doente 
Ver nosso povo sofrer talvez seja mais atrativo que fazer ele morrer no sentido literal 
Só que na profundeza do meu sentir 
É uma honra ser o terror deles! 
Se eu existo aqui nesta terra, é porque uma parte de mim chegou aqui de navio negreiro e a outra já tava de forma originarya.  
Eles não devem ter poder sobre minha existência.  
A culpa não é nossa! Repito. A culpa não é nossa! Insisto em devolvê-la a quem a criou 
Mais de 500 anos prendendo, punindo e matando os nossos injustamente e não querem resistência? A gente vive e renasce da resistência  
Aqui quem fala é um ancestral vivo,  
Um Salve a todos os ancestrais vivos 
Salve os ancestrais 
Salve nossos descendentes 

PS: Pra todos os efeitos, ainda cogito a possibilidade de dormir, acordar no meu quarto e, do fuzil pra frente, ser tudo um pesadelo.  

Devaneio II 

Quantas mortes cabem em um corpo vivo? 
Quantas vidas ainda tem um corpo que já nasceu morto? 
Fico perguntando, perguntando e me perguntando 
Será que eu tô vivo? Será que vocês estão vivos? 
Existe um lugar onde a gente transita entre a vida e a morte? Um meio 
Será que a gente tá nesse vai e vem entre a vida e a morte? 
Logo quando a gente nasce, principalmente se vem mais pretinho, já acontece aquela primeira morte, que é a de perceber que as coisas não vão ser tão fáceis pra gente crescer nesse território. Vamos precisar do dobro de esforço e mais que o triplo de sorte. 
Aí vem a morte precoce da infância 
Vem a morte da tranquilidade de não precisar se preocupar com coisas básicas, como comida, estudo, casa e dinheiro 
A morte da possibilidade de se afetar tranquilamente 
A morte das liberdades 
A morte de alguns sonhos… 
E tudo isso em um corpo vivo, que transita entre essas idas e vindas de vida, meio e morte.  
Qual impacto um corpo que não era nem pra ter nascido tem quando nasce? E por que ele nasce? 
Por que esse corpo nasce, morre, vive 
E entre tantas mortes, também cria tantas vidas, tantas possibilidades e tecnologias de sobrevivência  
Cria arte, cria comida, cria pensamentos, desenvolve tecnologias 
Cria novos sonhos… 
O poder de adaptação ao caos, de viver, dançar, contemplar vivo e/ou morto 
Agora pensando: como um corpo que em vida transita entre tantas vidas e mortes pode morrer? Morrer mesmo, no sentido de fim da existência  
Talvez esse corpo, que vive e morre, morre-vive e, mesmo quando está morto ainda está vivo, e para além de sobreviver ele vive, tenha alguma coisa pra dizer, né não? 
Essa capacidade me remete a uma mutação genética 
Como se esse grupo tivesse entendido e desenvolvido a arte da imortalidade, mesmo inconscientemente. As mutações são inconscientes, né?! 
A questão é que a constante desse corpo sempre vai ser renascer no seu ou em outro corpo, não importa, porque é isso que elu faz 
Não existe controle pra esse fenômeno, ninguém é capaz de controlar isso 

Ninguém é capaz de controlar a existência de um corpo que já transcendeu isso 
Dá pra saber de quem eu tô falando? 
Esse corpo não vai morrer. 

Nicolau Ori Lauren 

Artivista sobrevivente do sistema carcerário durante a pandemia, artista plástico capilar, engenheiro, poeta e escritor.  

Nicolau escreveu um livro durante o período em que ficou encarcerado. Na obra, ele aborda o dia a dia dessa vivência, o perfil des preses, mapeia o sistema prisional por dentro e associa tudo isso, enquanto pessoa preta e trans, à vivência dos ancestrais escravizados, questionando conceitos de liberdade e desenvolvendo uma formulação matemática de redução penal. 

Mirian Baião Cambolo

Mirian Baião Cambolo é angolana e mãe de três filhos. Ela é especialista em tranças afro, desenhista em caricatura gráfica a lápis, ilustradora, dançarina, escritora, poeta e atriz.


#CANCELA: Ecos do Cárcere

Este relato integra o projeto #CANCELA: Ecos do Cárcere, que propõe uma programação transdisciplinar sobre o encarceramento em massa e a privação de liberdade, refletindo sobre o punitivismo enquanto política de Estado e suas intersecções com raça, gênero e classe social.

Em 2024, o #CANCELA: Ecos do Cárcere convida um ciclo de ações relacionadas aos diferentes aspectos que atravessam a vivência em penitenciárias femininas e mulheres no sistema carcerário. Violência, racismo, encarceramento em massa, saúde mental, relações afetivas e apartamento de seus familiares são alguns dos temas.

Acesse aqui o material de mediação e acompanhe a programação completa em sescsp.org.br/cancela.

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