Em pauta: educação antirracista

30/09/2024

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Textos de Daniel Bento Teixeira e da dupla Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Ana Cristina Juvenal da Cruz abordam educação antirracista

Leia a edição de OUTUBRO/24 da Revista E na íntegra

Em 2009, quando a escritora nigeria na Chimamanda Ngozi Adichie falou sobre “o perigo de uma história única”, em uma palestra que depois seria transformada em livro, ela não imaginava que seu discurso reverberaria tão longe e portanto tempo. Reconhecida mundialmente, Chimamanda argumentou como nasce o preconceito, atribuindo responsabilidade às histórias que escutamos. Quanto menos diversas, e mais centralizadas, maiores as chances de desenvolvermos uma visão estreita e deturpada da pluralidade de identidades que coabitam um território.

Até 20 anos atrás, nas salas de aula brasileiras, era comum que se ignorasse a história, cultura e tecnologia de cada povo africano trazido pelos colonizadores. Foi apenas em 2004 que o ensino sobre história e cultura afro-brasileira passou a fazer parte dos currículos escolares e com aprovação da Lei 10.639/2003, tornando-se instrumento para uma educação antirracista.

O Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), organização não governamental que busca garantir os direitos da população negra, acompanha práticas escolares que propõem outras possibilidades de educação a partir do reconhecimento de grupos sociais que sofreram apagamento na historiografia do país. Sobre essas práticas, Daniel Bento Teixeira, diretor executivo do Ceert, enxerga mudanças sociais significativas que têm ajudado a tornar a educação universalista, “deixando de ser uma saída eurocêntrica e excludente para promover o necessário reencontro com o Brasil, a partir da riqueza de suas pluralidades e tendo no antirracismo seu fundamento”, constata.

Para as pesquisadoras Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, professora emérita da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e Ana Cristina Juvenal da Cruz, diretora do Centro de Educação e Ciências Humanas da UFSCar, falar de uma educação que valoriza e difunde outras cosmovisões, saberes e narrativas da população negra significa valorizar a ancestralidade e incorporá-la como chave de mudança hoje. “Essa ancestralidade, que carrega em si a dualidade da continuidade e do recomeço, abre o significado do tempo de olhar para o passado para (re)compor o presente”, escrevem.

Neste Em Pauta, um artigo assinado por Teixeira e outro feito em coautoria entre Silva e Cruz trazem reflexões sobre a adoção de uma educação antirracista para a conquista de uma sociedade equânime.

Um gesto afirmativo para conduzir a própria vida
POR PETRONILHA BEATRIZ GONÇALVES E SILVA E ANA CRISTINA JUVENAL DA CRUZ

Em 2024, completam-se duas décadas das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História Afro-Brasileira e Africana (DCNERER). Publicadas em 2004, após dois anos da Lei 10.639/2003, as diretrizes estabeleceram caminhos para o ensino da história afro-brasileira e africana nos currículos da educação brasileira, constituindo as bases curriculares para a educação das relações étnico-raciais. Naquele momento, o Brasil colocava diante de si as questões sobre as condições materiais e simbólicas da sua população negra e o debate sobre a adoção das políticas de ação afirmativa em vários setores da nação.

Assistíamos, assim, à integração de um movimento de longa duração histórica cujo embasamento enseja a lógica de reparar, de reconhecer uma história do Brasil que necessitava ser escrita. Uma história que, ao mesmo tempo que evidenciava as formas estruturais de espoliação, extermínio e as hierarquias das experiências de humanidade, abrigava uma emergência de lutas e de elaborações teóricas por justiça e igualdade.

Vivenciamos, nas últimas duas décadas, iniciativas para tornar a educação um direito efetivo para todas as pessoas, e assim, testemunhamos a política mais revolucionária do ensino superior brasileiro, a saber, as políticas de ação afirmativa, na modalidade de cotas que, em termos de volume, impacto e mudança estrutural, alteraram institutos e universidades brasileiras, em especial as públicas. Hoje, esses espaços de formação superior e universitária estão mais pluralizados e convivem com as questões referentes à presença e aos questionamentos dos corpos das pessoas que chegam pelas múltiplas políticas de ação afirmativa, as quais alteram não apenas o perfil de estudantes, servidoras e servidores, como também a composição e produção intelectual que emana dessas pessoas.

Visualizamos o reconhecimento de que essas medidas compõem uma trajetória de lutas e de exigências da educação como um direito da população negra e, como tal, de toda a sociedade brasileira. E mais, do pensamento elaborado pela experiência da diáspora negra, como um legado traçado pela presença das pessoas que vieram antes de nós e de quem herdamos em nosso corpo, ideias, sonhos e tessituras expressas na força vital de nossa existência.

Mesmo na ação de celebrar, cabe a análise crítica de que ainda atiça, sempre à espreita, a sombra do racismo, capilarizado nas nossas relações sociais e nas salas de aula. Infelizmente, ainda nos deparamos com relatos de práticas preconceituosas e discriminatórias que apontam que o longo caminho que percorremos possui ainda alguns relevos. Ao mesmo tempo, acompanhamos as elaborações criativas e comprometidas que emergem do trabalho das pessoas que atuam na educação, de professoras e professores, com implicações efetivas na vida de quem adentra instituições de ensino em busca do pensamento e do saber. São pessoas que se constituem como tal, trazendo em si as tradições de pensamento elaborados a partir das matrizes africanas, ou seja, que se colocam para “construir a própria vida”.

Nessa formulação assentam elementos que constituem a educação como processo de conduzir a própria vida, que se expressam nas formas africanas e da diáspora cuja centralidade está no corpo. Ao dançar, ouvir e falar, realizamos uma edificação de nossa existência. Nesse movimento do corpo, identificamos a constituição conceitual aplicada ao sentido de educar-se vinculada ao pensamento da diáspora negra. É digno de nota que todos esses termos são ligados ao corpo. Ao verificarmos que se trata de atributos com designação direta do corpo, que se dá através e com o corpo em seu movimento, encontramos a proposição de que se projeta em coletivo. Aqui vê-se as proposições de “encontrar o elo” e permitir-nos “decifrar este mundo”. Ao atribuir tal centralidade ao corpo, verifica-se uma inversão atribuída a ele. Em outras palavras, as transformações de fundamento ocidental atribuíram ao corpo uma função menor, mas, e em especial, no caso da história da presença africana e negra no mundo, o corpo sempre foi central.

As experiências da escravização e do colonialismo remeteram à população africana e a sua descendência, o corpo. E foi esse o maior instrumento da vida dessas pessoas. Foi com o corpo que essas pessoas trouxeram conhecimentos, saberes, afetos e práticas que foram transmutados ao longo do tempo da vida, que se seguiu e que pulsa em nós. Léopold Sédar Senghor [escritor e político senegalês, 1906-2011] deslocou o logos ocidental do “penso, logo existo”, de [René] Descartes [filósofo e matemático francês, 1596-1650], ao centralizar o corpo como um “puro campo de sensações”. Para Senghor, “eu sinto, eu danço o Outro; eu sou”. É no gesto e movimento dos corpos que vemos as criações na música, na poesia, nas palavras e nas africanidades brasileiras.

Em uma tradição de pensamento africano, toda pessoa é renascida de um ancestral. Essa ancestralidade, que carrega em si a dualidade da continuidade e do recomeço, abre o significado do tempo de olhar para o passado para (re)compor o presente. Trata-se de “conduzir a própria vida” como uma experiência de aprendizagem na qual se revigora para uma outra forma e outra estética no tempo, o presente. É a constituição de ensino e aprendizagem que se presentifica na história da educação das relações étnico-raciais que é múltipla, africana e brasileira.

A tarefa política que emerge da grandeza desse pensamento é a de constituir uma experiência de vida plena que possa ser vivenciada por todas as pessoas. De uma educação antirracista que aponte para a força de sedição e rompimento, que erija nos sa capacidade de crítica e de mobilização. Do que possibilita fluir nossa energia para a intervenção e eleva nossos enunciados para um projeto radical de transformação das nossas experiências e de nossos modos de ver e sentir, que ressoam das formas de solidariedade que sempre fizeram parte da história da diáspora negra. Uma atitude afirmativa, por excelência, que conduz e eleva a vida.

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é professora emérita da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Grau de Cavaleiro da Ordem Nacional do Mérito do Brasil, Somghoy Wanadu-Wayoo, do Povo Songhoy, no Mali.

Ana Cristina Juvenal da Cruz é diretora do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (CECH-UFSCar) e coordenadora de educação e relações étnico-raciais da ANPEd (GT21).

A saída é pela educação?
POR DANIEL BENTO TEIXEIRA

Quando alguém pretende encerrar (ou lacrar) um debate público sobre a agenda social e política brasileira, a bala de prata é sempre a mesma: a saída é pela educação! Seja o debatedor de esquerda, de direita ou dos tantos matizes de centro encontrados na política brasileira, o mecanismo funciona igualmente. Afinal, é difícil se contrapor a essa ideia de que a educação seria não só uma prioridade, mas a saída para superar nossas mazelas. Porém, adiciono sinal de interrogação à frase mágica não só por acreditar no poder dos questionamentos em tempos de afirmações categóricas sobre tudo, mas por realmente entender que a resposta é: depende. Se for uma educação que reproduz o racismo, ela não só deseduca, como busca desumanizar mais da metade da população brasileira, além de projetar superioridade à outra quase metade.

Gosto de definir o racismo como um sistema de opressão que hierarquiza a vida de pessoas de acordo com o pertencimento étnico-racial. É dizer que, se sou branco ou se sou negro, ele vai afirmar se a minha vida tem mais ou menos valor. Essa foi a primeira matriz de desigualdades da sociedade brasileira desde a invasão portuguesa, propiciando expropriação violenta do trabalho e políticas de extermínio de indígenas e negros ao longo da história do país. Dessa matriz derivam as desigualdades engendradas nas relações sociais ao longo dos séculos.

Além de ter papel fundamental para a formação da identidade brasileira, via de regra, o racismo permeia algumas das primeiras impressões de uma criança em relação à própria identidade, a partir do olhar de outras crianças e educadores na escola. Em geral, isso se dá de forma negativa, a partir de xingamentos que a desumanizam, sendo “macaco(a)” o mais conhecido. Foi assim também comigo. Infelizmente, educadores e gestores de escola não estão, em geral, preparados para lidar com essas situações (isto, claro, quando há interesse de se tomar alguma providência).

Temos observado a omissão sistemática de escolas há anos, projetando o mito da democracia racial, que o Brasil adotou desde a década de 1930, na negação das manifestações racistas que, em contrapartida, se tornam cada vez mais violentas, materializando discriminações que podem apresentar intersecção com outros sistemas de opressão, a exemplo da LGBTQIAPN+fobia, como vem ocorrendo em diferentes escolas.

É necessário repensar a educação para que o antirracismo componha sua própria definição. É preciso também que isso se dê em perspectiva interseccional, considerando outros sistemas de opressão. Somente assim a escola será verdadeiramente acolhedora para crianças e adolescentes negros, deixando de ser espaço de reprodução da violência racial que contribui para a evasão escolar de estudantes negros, sensivelmente maior do que a de estudantes brancos, sobretudo nos anos finais do ensino fundamental e ensino médio. Além das violências raciais na escola, que vão desde o não reconhecimento das contribuições civilizatórias da população negra no currículo até as omissões em manifestações racistas, a evasão (ou expulsão, como diria Fúlvia Rosemberg [educadora brasileira, 1942-2014]) escolar das crianças e adolescentes negros redunda em mais violências fora da escola.

Um estudo, lançado neste ano pelo Unicef e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, demonstrou que um menino negro tem 21 vezes mais chance de ser vítima de homicídio do que uma menina branca. Entre 2021 e 2023, do total de mortos entre 15 e 19 anos (13.829), 90% são meninos e 82,9% (cerca de 11.5 mil) são negros. Portanto, é necessário que a escola seja efetivamente parte do sistema de garantia de direitos das crianças, adolescentes e jovens, considerando o princípio da proteção integral e da prioridade absoluta, conforme previsto na legislação. As escolas precisam ter protocolo para providências internas em caso de discriminação racial, abrangendo a família, comunidade escolar e a relação com outras instituições do sistema de garantia de direitos. Mas é preciso iniciar o trabalho na cultura institucional preventivamente, ou seja, antes que a discriminação ocorra ou se torne recorrente.

No que diz respeito ao fazer pedagógico e gestão escolar, o acervo do Prêmio Educar para a Equidade Racial e de Gênero do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) oferece pistas importantes para avançarmos na construção de uma educação antirracista, a partir de experiências por ele contempladas, ao longo de 20 anos. Um exemplo é a experiência “Educação antirracista: afrobetizando alunos para a construção de cultura e identidade”, da escola municipal de ensino fundamental São Judas Tadeu, no município de Bujaru, no Pará, representada pela professora Rosiete Lessa dos Reis. Esse projeto de educação escoolar quilombola diz respeito ao reconhecimento e à valorização de características étnicas dos diversos grupos sociais que constituem o povo brasileiro. Nesse sentido, evidencia, na escola, a contribuição civilizatória de grupos cujo protagonismo social e político é comumente invisibilizado na historiografia oficial brasileira.

Outra experiência exitosa foi “A literatura escrita por mulheres negras: uma experiência de leitura na alfabetização”, realizada pela escola municipal Florestan Fernandes, no município de Belo Horizonte, em Minas Gerais, representada pela profes sora Danielle Aparecida Barbosa Cardoso. O projeto é uma prática de leitura elaborada a partir de estudos sobre relações étnico-raciais e de gênero. As crianças em fase de alfabetização tiveram contato com a literatura escrita por mulheres negras para que, conferindo visibilidade a essas autoras, pudessem se identificar com elas e se projetar em espaços diferenciados na estratificação social, além de potencializar mulheres da própria comunidade escolar e ampliar o repertório literário e linguístico das crianças, colaborando na construção de identidades e autoestima.

É fácil perceber que práticas escolares como essas propõem outra possibilidade de educação, a partir do justo reconhecimento de pessoas e grupos na sociedade que foram e continuam sendo apagados da historiografia. Dessa forma, a educação se torna verdadeiramente universalista, deixando de ser uma saída eurocêntrica e excludente para promover o necessário reencontro com o Brasil, a partir da riqueza de suas pluralidades e tendo no antirracismo seu fundamento.

Daniel Bento Teixeira é diretor executivo do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), advogado especializado em Direitos Difusos e Coletivos, pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e integrante da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-SP.

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