Em Mutações: sobre a coragem e outras virtudes, ensaios revisitam a noção de coragem, expandindo o protagonismo do herói para o mundo e destacando a importância de virtudes democráticas frente aos desafios contemporâneos.
Por Eugênio Mattioli Gonçalves*
Conservamos no nosso imaginário comum a representação da coragem na figura do herói, encarnada no homem que, movido por um ideal, se dispõe a enfrentar forças que lhe são superiores. Essa narrativa da pulsão corajosa do protagonista nos acompanha ao menos desde as epopeias gregas e traz consigo uma visão calcada na bravura do combatente, que se vê inserido em um universo maniqueísta, simples e finito, em geral dividido entre uma massa de pessoas comuns, alheias aos grandes acontecimentos, e o corajoso, que por meio de sua virtude se destaca dos demais. Assim, o foco do olhar reside no indivíduo escolhido como modelo de inspiração moral para o espectador, tornando o contexto mero cenário inerte do ato de valentia retratado. O mundo é ofuscado pelo brilho do herói.
Não é isso, contudo, o que encontramos em Mutações: sobre a coragem e outras virtudes. Nesta coletânea de ensaios resultante do ciclo homônimo, organizado por Adauto Novaes, é o próprio mundo um protagonista em si. É a partir do mundo grego e da invenção da pólis que compreendemos a importância da coragem democrática na construção de um universo político verdadeiramente representativo. Da nossa tragédia escravocrata e dos incontáveis exemplos de resistência a ela, esquecidos pela historiografia, vemos brotar a determinação no enfrentamento do racismo entranhado em nossas instituições. Na constituição social dos gêneros, fruto do patriarcado heteronormativo – que nos ensina desde a infância que ser corajoso é “ser homem” –, encontramos o ideal de uma coragem feminina, marcada não pelo medo da morte, mas pelo amor à vida. O exemplo recente das experiências totalitárias e dos campos de concentração nos reveste de força na recusa peremptória ao retorno da barbárie e da relativização do horror. É do mundo, portanto, que nasce a coragem necessária para transformá-lo.
Desse modo, a cada página somos convidados a revisitar nosso passado não apenas mirando a compreensão do presente, mas sobretudo em vista da construção de um novo futuro. Pela mão dos autores, gradualmente vamos atualizando para nossos dilemas contemporâneos as formulações filosóficas clássicas acerca da coragem, numa rica reflexão sobre os diferentes aspectos relacionados a ela, como o medo e a solidão.
Essa ressignificação da virtude, trazida pelo livro, se mostra fundamental diante dos desafios de uma realidade cotidiana em constante mutação. À medida que nos deparamos com o avanço das ameaças à democracia, os ditames da tecnociência e a apatia generalizada frente à urgência climática que nos põe em rota de autodestruição voluntária, são colocados em xeque nossos paradigmas de conhecimento e vemos lançada em crise a própria noção de verdade, reduzida à disputa superficial de opiniões mediadas por algoritmos. O medo da catástrofe exige de nós a busca de novos caminhos. Corajoso, afinal, não é quem não tem medo; é quem o enfrenta, apesar dos riscos. E só há coragem possível onde há esperança.
*Eugênio Mattioli Gonçalves é doutor em filosofia pela USP, com estágios nas Universidades de Torino e Lyon III. Leciona no Liceo Scientifico Dante Alighieri e é pesquisador da Unicamp.
O texto foi publicado originalmente na orelha do livro Mutações: sobre a coragem e outras virtudes, organizado por Adauto Novaes.
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