Como as linhas de um barbante entrelaçado, cada uma encorpando a trama final, o termo “pensamento tentacular”, para a filósofa estadunidense Donna Haraway, pode narrar sobre criações e relações construídas de modo colaborativo, em combinações inesperadas, contextualizadas e singulares. Dos emaranhados de fios, podem surgir formatos e usos diversos: esta edição da MAJ – Mostra de Arte da Juventude representa ideia semelhante.
Dedicada a produções de jovens artistas, a longeva MAJ é incontornavelmente atravessada pelo tempo e suas transformações socioculturais, debates, perspectivas e vocabulários, de modo a se revisitar, vez em vez, para se aproximar da pluralidade de pessoas que a fazem existir.
A Mostra persiste há mais de trinta anos, e apesar da reincidência cronológica, se renova porque carrega consigo a fonte das juventudes – não aquela mitológica que impede o envelhecimento, mas uma que reconhece o tempo de modo espiralar e impulsiona possibilidades cheias de vir-a-ser: invenções de rota, retomadas, bifurcações, rizomas.
Nesta 31ª edição, foram 722 pessoas inscritas, cada uma ressoando o desejo de fazer valer suas ideias e criações; dessas, 46 foram selecionadas, representando 10 estados brasileiros no exercício coletivo de reflexão sobre fronteiras: geográficas, dos sistemas hegemônicos da arte, do que se imagina serem jovens e artistas, dos diálogos possíveis para uma arte literalmente contemporânea.
Em um projeto de curadoria atento às interseccionalidades, de modo que jovens em suas diversidades étnico-raciais, de gênero, orientação sexual, região, idade, corpos e narrativas se apresentem aqui, podemos nos perguntar: o que acontece quando pessoas se juntam?
Interessado em responder essa pergunta por meio da prática, o Sesc compreende sua ação cultural, fundamentalmente educativa, como oportunidade para o encontro, acreditando que o fomento à produção e circulação de jovens artistas pode promover experiências capazes de colaborar com as tramas de uma rede comum, engajada e sensível às pluralidades da vida.
Luiz Deoclecio Massaro Galina – Diretor do Sesc São Paulo
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“As melhores respostas surgem de conversas.”
Édouard Glissant e Hans Ulrich Obrist, no livro Conversas do Arquipélago.
Rio de Janeiro: Cobogó, 2023, p. 118.
Camila Fontenele: Desde a semana passada, tenho pensado muito neste texto curatorial e naquele projeto gráfico proposto para a identidade da 31ª Mostra de Arte da Juventude (MAJ). A água [e as inundações], o azul, o imprevisível, o tempo e o espaço da instituição. E, com isso, o que está oculto, as nossas escolhas e recusas diante daquela vasta lista de artistas, e os diálogos que faremos ou não.
Tiago Gualberto: Você tem razão, a identidade visual escolhida ressoa características não apenas desse nosso exercício curatorial, mas sobretudo dos fluxos de trabalho que compõem a realização de toda a mostra e suas diferentes equipes. Um processo que já dura muitos meses. A começar pelo nosso primeiro encontro, em setembro de 2023. Em um oceano de possibilidades, ser convidado a partilhar contigo este projeto me permitiu olhar com mais cuidado para o que deixamos marcado ao longo do nosso caminho profissional e que não está necessariamente na superfície ou de fácil visibilidade. Isso me deu fôlego para mergulhos mais audaciosos em águas profundas. E, ao mesmo tempo, me abriu os olhos para a possibilidade de nos depararmos com surpresas.
CF: Quando revejo nosso processo e prática curatorial, ainda me parece um pouco difícil desapegar do imprevisível. Nem sei se desapego é o termo certo, mas venho me esforçando para encontrar outras palavras ou compreensões para essa força que transpassa o nosso trabalho. De imediato, lidar com a ruptura das expectativas que havíamos dos artistas – que nos levaram a indicar amplas formações – me pareceu um tanto aterrador. Contudo, ao observar nossa travessia com menos temeridade, percebo que consigo reconhecer algo que me entusiasma profundamente. Isto é, a capacidade e o gingado para desorganizar, ainda que de maneira efêmera, as estruturas, linhas de pensamento, políticas de precariedade e curadorias. Para, assim, reivindicar possibilidades, especialmente em cenários tão áridos e diante das inúmeras negociações que permeiam a realização de uma exposição, principalmente em nosso tempo. Assim, percebo que o imprevisível surge como uma intuição – um salto de fé – rumo ao que demanda uma aparição cuidadosa, mas não limitada. Talvez, se trate mais de um direcionamento [continuidade-chegada-continuidade] do que de controle, sabe?
TG: Também penso no que é imprevisto como um desafio de maleabilidade, algo que se coloca como um treino de adaptação das nossas tenacidades e valores enquanto curadores e artistas. Até que ponto somos capazes de flexões sem gerar rachaduras irreparáveis? Acumulamos como artistas, eu e você, muitas recusas em editais e salões de arte. Sabemos como é angustiante o silêncio em torno dos processos de desclassificação de obras de um lado, e o ensurdecedor barulho das celebrações vazias de significado do outro. Contudo, tão importante quanto reconhecer o mérito das investigações de destaque deste conjunto de 722 artistas aos quais nos dedicamos, é compreender o papel formativo e educador construído ao longo dos anos pelas dezenas de edições da MAJ. Isto é, o gesto de laurear um conjunto representativo dessa arte jovem não deve se separar do gesto de escuta e oferta de condições de aperfeiçoamento aos demais artistas não selecionados. Em termos curatoriais, as centenas de pesquisas não selecionadas serviram como um grande coral de vozes a nos guiar para a identificação de pautas, agendas, reivindicações sociais, políticas e estéticas, ainda que muitas deficientes em sua formatação e apresentação. Elas nos enriquecem como pedidos justos de atenção, uma espécie de passeata pública a reclamar a observação de práticas e temas relevantes para o agora. Nosso compromisso com o imprevisível, portanto, é também estar atento aos representantes dessas agendas compartilhadas pelos demais artistas não selecionados. Isso significa não ceder às pautas premeditadas e encapsuladas pela glorificação de poucos artistas.
CF: “Até que ponto somos capazes de flexões sem gerar rachaduras irreparáveis?” – Essa pergunta que você traz parece ser uma boa pista para situar nossa conduta à frente da grande responsabilidade que é nossa curadoria. Por um lado, como você mesmo cita, nós, como artistas, conseguimos entender as aflições e ansiedades que as pessoas inscritas em editais sentem; por outro, entendo que foi importante reconhecer a necessidade de encontrar maneiras de mediar e equilibrar certas proximidades, comparações e distanciamentos para que nossa prática curatorial pudesse se manifestar. É interessante constatar – e faço isso com alegria – como somos permeados por trajetórias e interesses tão distintos, o que poderia representar linhas que jamais se cruzam, mas que, diante desse convite, acabam se revelando em uma construção fértil. Diante disso, acredito ser muito difícil atravessar a vida, mas, sobretudo, esse tipo de ofício, sem causar rachaduras – algumas irreparáveis e outras nem tanto [a depender do destinatário e da situação, a rachadura pode ser uma oportunidade]. Porém, mais do que tentar gerar demasiadas explicações e devaneios sobre rachaduras, creio que a questão que você levanta evoca muito do nosso engajamento e cuidado em relação ao tipo de trabalho que estamos realizando, especialmente em um ambiente tão competitivo e solitário como o das artes visuais.
TG: Rachaduras podem ser brechas! Por elas, os fluxos são encaminhados à medida de suas potências, em diferentes intensidades, mas sempre guiados pela força da gravidade. Assim se formam os afluentes, os rios voadores, os oceanos. Essa imagem me comove pois recorda o esforço solitário e ao mesmo tempo compartilhado por essas centenas de artistas que insistem em suas pesquisas artísticas nas mais adversas situações. Uma das grandes belezas da 31ª MAJ é, de fato, o encontro dessas poéticas e dessas pessoas.
CF: Ao observar as 722 inscrições – que passaram por três fases de seleção, inicialmente 114, depois 72, até chegarmos às 46 pessoas selecionadas – percebo a forma fluida e coerente com que esses trabalhos se fortalecem reciprocamente, ao mesmo tempo em que também geram tensões e contrastes. Atentos a essa vibração, nos vejo como uma espécie de “alquimistas” na percepção e orientação de um despontar a partir dessa série de acontecimentos que cintilam por intermédio do imprevisível e das “coincidências” que encontramos. E isso me faz pensar nos eixos que, a priori, delineamos, para onde eles nos levam – nós: curadoria, artistas, educativo, público, instituição, seres invisíveis e além-humanos? A princípio, eles parecem nos ajudar a organizar o espaço e as narrativas do antes-agora-porvir, mas, concomitantemente, não parecem nos exigir um apego rígido às categorias [eixos] e suas aproximações por serem moventes, sujeitos a alterações e borramentos. Assim, criando uma imagem que transita pela perspectiva do movimento, do desarranjo do estável, dos encontros e desencontros e do estado de volume, bem como a porosidade que isso gera. Considerando como esse encontro se configura, no que esses trabalhos passam a apostar quando deixam de ressoar isoladamente? Nesse sentido, pondero se poderíamos imaginar que tudo o que insistentemente se move, irrompe.
TG: Sim, tão importante quanto reconhecer as ressonâncias entre os trabalhos selecionados, foi fundamental perceber o quanto estas poéticas delineiam percursos coletivos, como a crítica institucional, o debate acerca do antropocentrismo, a representatividade/identidade, a justiça social e o colapso ambiental, entre outros. Mas, que também possuem características próprias e íntimas, conectadas a uma agenda específica dessa geração de jovens artistas, ainda pouco presente nos circuitos artísticos institucionalizados. Entre essas abordagens estão, por exemplo, a precarização do trabalho e a precarização do artista trabalhador…
Porém, as centenas de artistas não selecionados, um total de mais de 600 artistas, além daquelas centenas que não tiveram suas inscrições validadas devido à ausência de dados mínimos, constituem uma significativa fonte para reflexões a respeito da precariedade dos cursos de formação artística em todo o Brasil e do isolamento profissional vivido por esses jovens. Nos surpreendemos, por exemplo, com a quantidade de materiais fornecidos por pessoas com alta qualificação acadêmica ausentes de descritivos técnicos básicos, deficientes no entendimento de suas próprias poéticas artísticas, incapazes de articular suas pesquisas artísticas com os atuais debates contemporâneos das artes. Isso aponta, mais uma vez, a importância de ações como a Mostra de Arte da Juventude (MAJ) ao criar espaços de trocas e interlocuções entre esses mesmos artistas, além de lançar no espaço público o papel formativo que mostras de arte devem ter, não apenas para o público, mas especialmente para os próprios artistas. O número altamente expressivo de inscrições nesta última edição, o dobro da última edição, também serve de termômetro para a percepção dessas demandas.
CF: É interessante ruminar sobre isso, pois não estamos tratando de algo extremamente inédito enquanto tema ou de difícil assimilação – o que não significa que seja banal ou isento de complexidade. Mesmo assim, esses artistas conseguem expandir um campo de discussões, especialmente em relação ao que tem circulado nas recentes exposições no Brasil. Diria, inclusive, que os temas trazidos na 31ª MAJ permeiam a vida das gentes conhecidas e desconhecidas, de seres além-humanos, das instituições e das negociações que travamos com elas, bem como de nossas casas, sonhos e frustrações, e de uma juventude pulsante, questionadora, mas também atravessada por recentes perdas. Não é algo distante, mas sim, bastante próximo. O que me leva à reflexão – talvez de forma retórica – sobre por que a prática de tantas dessas pessoas permanece oculta. Certamente, o jogo da visibilidade e invisibilidade tende a ser danoso. Por outro lado, a meu ver, esse processo que vivemos se revela encantador e parece uma boa aposta, visto que é necessário começar e insistir também para fora, não? Nossa contribuição parece singrar por esse desígnio, especialmente no reconhecimento da coragem dessas propostas persistentes que emergiram, mesmo em um campo onde a tendência de não ser lido ou passar despercebido é normalizada por aqueles que ocupam posições de poder [a curadoria] e pelos artistas privilegiados por esse tipo de sistema.
TG: Exatamente! Os artistas presentes nesta edição capazes de construir antídotos a este rodízio de visibilidades e invisibilidades das exposições são brilhantes. Eles partem da necessidade de construção de redes de trocas estéticas e políticas como estratégia de manifestação da própria proposição artística, evocando a participação do público de forma interativa, reclamando o posicionamento dos participantes de forma direta e objetiva. Diez, com seu trabalho intitulado Não separe a arte da artista, nos apresenta essas interações em forma de manifesto. De mão em mão (1995-2024), de Amauri, também me faz pensar em nossas redes de afetos como espaços legítimos para a criação e experiência da arte. Nesses casos, estar em rede é um tema de celebração, promotor de saúde, memória e uma alternativa às forças de exclusão social, cultural e política também presentes no circuito das artes. Também percebo essa celebração na gravura Comunhão (2023), de Vitor Alves, e na pintura Amar, cuidar e admirar (2024), de Mavinus. Claro que esses destaques são apenas alguns entre as múltiplas possibilidades de pontos de vista. O mutirão para a construção do lar, trazido por Amauri em seu vídeo, por exemplo, também fortalece um poderoso tema: a construção do lar, mais especificamente, o trabalho de construção. Tijolos, areia, cimento, tubulações. Materiais habituais do labor na construção civil têm seus significados multiplicados e exponencialmente complexificados. O que não quer dizer que essas aproximações se deem devido ao compartilhamento das mesmas técnicas, linguagens ou do uso literal desses utensílios. Ao contrário, o encontro entre essas poéticas se dá na comunhão conceitual capaz de reivindicar a merecida dignidade daqueles que passam suas vidas na busca por um lar, um teto para descansar, um lugar para amar e serem livres. Com pequeninas peças feitas com massa de Durepox, Janaína Vieira exalta o trabalho paciente, tijolo por tijolo, em Com as próprias mãos (2024). Afinal, não seria esse o trabalho da(o) artista? Somos artistas-pedreiros ou pedreiros-artistas? Na pintura Interrupto (2023), de Abner Sigemi, a entranha exposta da parede serve de metáfora para o interior do artista, areia e pó acumulados em formato de caixa torácica. Lista de conexões (redux) (2023), de Murillo Marques, destaca a insurgência criativa e a persistência do sensível por meio de mãos calejadas.
CF: Uma das características mais fascinantes dos trabalhos é sua capacidade de se expandir de maneira tentacular, permitindo a discussão de uma ampla variedade de assuntos, ainda que, à primeira vista, existam alguns contextos que nos chamem mais a atenção. Por outro lado, o exercício de tatear esses desdobramentos – ecoando o que você apresenta – me conduz a transitar por trabalhos que evocam a criticidade do corpo. Ou seja, onde o corpo humano se apresenta como um campo de atuação, seja como arena ou espaço de batalha, lugar de manifestação de conflitos e tensões. Nesse universo, também mencionaria Diez, mas achei interessante vê-la na sua citação. Para começar, arriscaria trilhar esse pujante percurso pelo trabalho Travesti amada (2022), em que Níke Krepischi propõe um conjunto de armamentos em tom de rosa-choque, que parecem nos induzir a um duplo sentido – ora esses dispositivos bélicos refletem as violências físicas impelidas pelo ódio às dissidências de gênero, ora a travesti pode estar a[r]mada e instituir gestos de autodefesa. Na obra Sem título (2024), de Isabela Picheth, percebo que somos levados ao encontro do acúmulo e das fragmentações corpóreas moldadas em látex na cor rosa, onde defrontamos com uma composição a partir da desordem. Se a memória é editável, como dizem, em Me agarro ao pouco que ficou: memórias de um receptáculo (2023), de Isabella Motta, um rito de passagem sobre a memória da dor, do adoecimento e das reivindicações de cuidado e atenção, normalmente negados à corpulência, são enunciados. Por sua vez, Herdades (2022–2023), de Mar Yamanoi, também me conduz ao reclame dessa lembrança, mas de um corpo coletivo – a ancestralidade. Já na pintura Noites de lágrimas (2023), de Gustavo Ferreira, sou sensibilizada pela provocativa do desaguar noturno daquelas feridas que nos assombram cotidianamente. Penso que é relevante observar como o “fracionamento” parece ser um estado compartilhado entre essas obras, cada um à sua maneira. Na série Vai para Onde? (2024), de Gu da Cei, bem como na criação de Donatinho, Versatilidade (2023), por exemplo, esses “pedaços” compõem trabalhos que movimentam o corpo de quem os observa – nos convidando a captar o que está sendo dito em voz alta ou o que está sendo sussurrado, o que deve continuar no oculto, enquanto outras coisas são explicitamente reveladas. Em Passeio (2023), de Isabelle Baiocco, sinto que estamos lidando com a transição do tempo devido à mutabilidade provocada pelo ruído e a coloração presentes na pintura. Assim, nessa conjunção, o corpo é colocado como elemento crítico em todas as suas ambiguidades, para a expressão de críticas às violências, aos preconceitos e às discriminações raciais, de gênero ou de padrões hegemônicos.
TG: De fato, esse caráter tentacular dos temas presentes nos trabalhos artísticos é surpreendente já que se apresenta a nós, curadores e público, como índice dessas movimentações simultâneas em diferentes locais, por diferentes práticas. O trabalho Epítome da domesticidade para meninas (2023), de Giovanna Camargo, também me leva a pensar em fragmentações. À primeira vista, o jogo de encaixes evoca a fragmentação dos corpos por meio de imagens que compõem o espaço doméstico e os afazeres impostos pelo machismo às mulheres. Por outro lado, as pranchas minuciosamente pintadas à mão, as quais poderiam facilmente ocupar as paredes da galeria de arte, encontram na manipulação realizada pelo público o viés para o seu enigma. Por uma via semelhante, fiquei muito emocionado ao me deparar com o trabalho de Lucas Soares, intitulado Memento (Maria Aparecida Soares) (2024). Nesta imagem “cifrada”, segundo o seu texto memorial, o artista produz um complexo arranjo de gestos e poderosos significados capazes de elevar não só sua história familiar, como a história de tantas Marias Aparecidas e tantas outras famílias como as nossas.
CF: Entre essas fragmentações que mencionamos, algo mais que observo é o quanto é profundamente inspirador nos depararmos com poéticas que percebem o descanso como uma proposição, seja de maneira mais explícita ou sutil. De modo geral, ainda estamos desenvolvendo uma perspectiva artística e crítica sobre esse tema, especialmente no contexto das vivências brasileiras. Por isso, acredito ser extremamente significativo ver um grupo de artistas que trazem o descanso à tona como um gesto político e estético, manifestando-o como um ato de justiça social e resistência às exigências de produtividade e eficiência impostas pelo capitalismo. Isso acende uma centelha de esperança diante da generosa contribuição que essa questão pode oferecer para a criação de novos imaginários e estratégias. Percebo esses aspectos muito bem entrelaçados por Yan Nicolas em A noite do meu bem (2023), no qual o afeto e a intimidade se destacam como elementos essenciais para essa experiência, especialmente quando é compartilhada. Se o descanso reivindica uma certa dilatação do tempo, muitas vezes devorado pelas obrigações dos nossos ofícios, na obra Sérgio (2023), Luiza Poeiras faz reflexões instigantes sobre o exercício da desobediência que, em meio a cenários inóspitos, proporciona momentos de lazer e devaneios. Por outro lado, o conjunto de peças sequenciais: Sim, dá tempo. (OTIMISMO POR INFLUÊNCIA); Você consegue! (OTIMISMO POR INFLUÊNCIA); Claro, quatro é uma boa quantidade (OTIMISMO POR INFLUÊNCIA); O importante é tentar! (OTIMISMO POR INFLUÊNCIA), ambos de 2024, de Kelly Pires, parece explorar a fronteira entre a realização dos seus sonhos e a meritocracia imposta pelo sistema neoliberal, refletindo sobre o descanso como uma forma de fugitividade, em que o destino, no caso de Kelly, é aquático e solar. Já na pintura Mãe: a força do mundo (2024), de Leid Ane, assim como em Maternar desde la rebeldía (2024), de Yanaki Herrera, embora sejam obras que eu poderia citar em outros contextos, elas me provocam pela maneira como expressam seus desejos e medos, em que o repouso se insinua nas entrelinhas das paisagens movediças.
TG: Fascinante ver esses arranjos se consolidando e, ao mesmo tempo, se movendo em inúmeras outras configurações. Para mim, a riqueza de um projeto expositivo está em garantir as condições para o exercício da agência do público, mas sobretudo da agência das poéticas na construção de novos sentidos e percursos. Você fala sobre o descanso como gesto político e estético, certo? Isso me convida a olhar para a ausência do ócio, e como inúmeras poéticas se posicionam frente à precariedade do trabalho de artista e à uberização da arte. Neste sentido, me parece que a preservação da poesia é o trunfo de resistência diante da obscenidade dos cachês insignificantes, cortes orçamentários irresponsáveis, usos oportunistas da imagem e das agendas políticas desses artistas por instituições. O gesto de pintar Papéis de bala (2022), de Estela Camillo, vai de encontro ao humor e à ironia, assim como faz Lucas Gusmão em Espetinho de frango, (2023). O trabalho de arte se tornando refém do delivery institucional é posto em denúncia. Sobremesa I e II, da série Cria do RV (bairro de Ribeirão Preto), de Bruno Benedicto e Viver é hmm-ma delícia! Ifood (2024), de Nat Rocha, lançam mão da coragem e da ousadia abandonadas por muitos outros que se consagram e, automaticamente, esquecem de onde vieram. Essa radicalidade das proposições presentes na 31ª MAJ me excita, especialmente por advirem de um legítimo (e muito jovem!) poder de questionamento das estruturas amortecedoras do fazer artístico. Pensaram por nós (2023), de Samuel Cunha, e Todo dia a mesma coisa (2024), de Mariana Simões, lançam luz sobre essas questões cruzando suas experiências cotidianas de sobrevivência com a própria experiência de ser artista.
CF: Quando você traz todos esses aspectos sobre a precarização do trabalho, mas, especialmente, na nossa vida, a impossibilidade do ócio, a cidade, as inúmeras exigências, os consentimentos necessários para garantir minimamente a sobrevivência e a circulação das criações artísticas, bem como a resistência poética em busca de caminhos alternativos, sinto-me motivada a consultar meus cadernos de anotações e pesquisas sobre as relações e imaginações interespécies. Pois acredito que esses pontos que você apresenta também nos conduzem a uma reflexão sobre a crítica à centralidade do ser humano como agente definidor da vida no planeta Terra. Isto é, o colapso do modelo antropocêntrico dessa centralidade. Assim, chego a uma nota que considero pertinente aqui, em que questiono como poderíamos pensar, criar e especular para além dessa lógica humana. Isso poderia ser considerado um convite ao deslocamento e à expansão das fronteiras e das oposições, como alguns trabalhos presentes na 31ª MAJ nos sugerem. Hanatsuki, em seu detalhado desenho Sociedade perfeita (2024), expressa essas questões através da denúncia do colapso: a doença, a ganância, a morte, o desespero, a fúria. Rayane Gomes Borges, em -23,5431585, -46,6597120 (2024), também utiliza a estratégia da denúncia quando, por meio da xilogravura, nos transporta para a localização e as ranhuras de uma árvore decapitada.
TG: Isso! Não é necessário grandes adaptações para reconhecer que as práticas artísticas operadas por esse diverso conjunto também se dão pela emergência (e urgência) de formas de sonhar e de coexistir que não perpetuem a violência do colapso. Muitas delas são práticas indisciplinares, interessadas em se misturar a categorias já bastante historicizadas, em alguns casos ainda relevantes, como parte do autossacrifício em direção a um novo horizonte de possibilidades de existência. É o caso, a meu ver, de Rizoma A, Rizoma B, Rizoma C, Rizoma D, de autoria de Okarib, todos de 2023. Algo semelhante ocorre na pintura de Felipe Rezende, Das tripas nuvens (2024), no qual a paisagem parece figurar como protagonista de um estado de suspensão do tempo e dos sentidos. São territórios que precisamos recuperar de um passado quase imemorial, e para isso precisamos tateá-los humildemente. Bandeira (2021-2024), de Bárbara Savannah, me incentiva a imaginar novos símbolos e indicativos desse processo de transição.
CF: Sim! Penso que dividimos experiências de opressão, insegurança e extermínio de vidas animais, vegetais, minerais e aquáticas, contudo, podemos optar por estabelecer um compromisso de expandir nossas alianças e seguir coletivamente em uma travessia que, apesar de tudo, nos conduza à beleza. E essa caminhada-com também tem seus conflitos, aprendizados e choques, mas é repleta de encantarias, aparições e conversações misteriosas com o invisível – as constelações – como no trabalho Colisões e fusões (2024), de Sophia Zorzi. O que é gestado a partir desse estado de transformação e reconfiguração? Anna Lívia levanta algumas possibilidades por meio da escultura Ave em gestação/Bird gestation (2021), transitando entre o simbólico, a vida animal e humana e o alquímico. Já Kuenan Tikuna, na pintura Ngo ́ü (2023), nos apresenta a ritualidade que cerca o nascimento de uma nova menina em meio à reunião de seres de diferentes dimensões. Percebo que no encontro além-humano entendemos que a reciprocidade e o cuidado têm muita força, como a obra Guarda (2023), de Lucas Braco, em que uma figura grandiosa protege em seus braços um pequeno ser ainda em estado de formação. O desenho de Kaori, Um corvo de acordo com meu coração (2024), também evoca o desvelo, mas por meio da meticulosa dedicação às inúmeras linhas sinuosas que, ao se agruparem, dão forma à imagem do pássaro. Mas, até onde a relação pessoa e animal pode nos levar, seria possível nos fusionarmos a eles? Na videoperformance Um homem chamado cavalo é meu nome (2024), Lorre Motta, ao longo de um trajeto público por diferentes lugares, se funde ao cavalo para fabular sobre a construção de uma masculinidade trans não binaria possível e, sobretudo, dos modos de ser e existir. Por outro lado, Juniara Albuquerque estabelece essa relação animalesca por meio da escultura LOA (2024), abordando questões sobre o mundo dos vivos e dos mortos e como isso pode gerar novos entendimentos e estéticas.
TG: Mas como dissemos inúmeras vezes, esses arranjos ou eixos poéticos merecem e devem ser chacoalhados como em um jogo de búzios, embaralhados como cartas de tarô. É o que faz Ítalo Carajá, por meio de sua serigrafia Forbidden fruit (2023). Nela, signos do cristianismo se imiscuem a elegantes sugestões eróticas contidas em rótulos de frutas. Sonhar ou sobreviver (2019), de Cícero Costa, também me leva a pensar nas transformações dos signos e significados partilhados por diferentes culturas, mais pontualmente nos momentos críticos das alterações realizadas por cada uma delas. Aqui, cabe ao artista provocar a liberação dessas energias para a geração de um efeito em cadeia, em alguns casos capaz de gerar a desintegração do próprio objeto e não apenas do significado elencado. Ao menos, é para onde aponta Perigo amarelo (2022), gravura produzida com álcool sobre papel termossensível, de autoria de Cho, e Quatro mola (2024), uma versão em papelão de um cobiçado tênis construído por O tal do Ale. Aliás, a cobiça e o desejo são elementos deliciosamente administrados por Diego Rocha em Coreografias da contemplação artística-institucional (2023), nesta fotoperformance, pertencente a série Museum Sutra, o artista desenvolve um tratado no qual a reciprocidade do amor entre artistas e instituições é testado.
Camila Fontenele e Tiago Gualberto: Quando olhamos pelo espelho retrovisor das nossas trajetórias artísticas, é impossível não observar as entradas que deixamos passar nessa via de alta velocidade e cheia de obstáculos que é a vida de artista. E a MAJ é, sem dúvida, uma dessas portas de entrada para jovens artistas que reclamam, mesmo alguns sem saber, e com todo o direito, o ensaio, o risco inovador, a construção de redes de afeto, a experiência do profissionalismo honesto e responsável. Ou seja, a busca por rotas alternativas ao carreirismo e ao gradativo colapso ambiental e social atrelados às mudanças globais de temperatura às quais estamos todos submetidos. Assim, entre nossos compromissos como curadores, está o de tornar este encontro promovido pela 31ª MAJ em uma oportunidade de aprendizado sobre as diferentes forças que permeiam a realização de uma mostra de artes. As quais também compõem as negociações e os critérios de seleção dos trabalhos inscritos, o aceite pela participação de todas as pessoas envolvidas nesse processo e, sobretudo, aqueles que acreditam nas narrativas que evocam conhecimentos ancestrais, fábulas, mitologias e, especialmente, a fusão e o protagonismo dos não humanos – aos animais, espíritos, vidas vegetais, aquáticas e rochosas, nosso agradecimento.
Curadoria por Camila Fontenele e Tiago Gualberto
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