“A Velocidade da Luz”, que estreou no MIRADA, reuniu memórias pessoais e de Santos para transformar registro coletivo em arte

24/10/2024

Compartilhe:

Elenco de “A Velocidade da Luz” em apresentação no Parque Valongo em 12 de setembro, durante o MIRADA 2024. Foto: Clarissa Passos

“Eu não sei o que seria de mim se eu não tivesse entrado nesse projeto. Não sei para onde eu estaria indo agora”.

A frase da funcionária pública aposentada Sandra Petty, 67 anos, ecoa em muitos dos residentes que compuseram o grupo de atores e atrizes de “A Velocidade da Luz”, espetáculo do diretor argentino Marco Canale apresentado na 7ª edição do MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, em 2024.

Mas “A Velocidade da Luz” é um projeto que começa muito antes da estreia do espetáculo. Em Santos, a residência começou já em julho, com a chamada para a composição de um grupo de pessoas 60+, moradores da cidade e seus arredores, para a criação coletiva de uma peça baseada nas memórias das pessoas e da cidade. 

Foram 44 pessoas, com uma maioria de mulheres, e para muitos a primeira experiência em artes cênicas.

Ao longo de oito semanas, eles e elas compartilharam relatos que se entrelaçaram para unir o documental e o ficcional em um processo de profundo impacto nas vidas do elenco e do público, que lotou as três apresentações, invariavelmente aplaudidas de pé.

No grupo, com 44 atores e atrizes, muitos estavam vivendo a primeira experiência de atuação. Foto: Fernanda Luz
No grupo, com 44 atores e atrizes, muitos estavam vivendo a primeira experiência de atuação. Foto: Fernanda Luz

Marco Canale, 47 anos, criou o projeto depois de perder o avô. Primeiramente encenado em Buenos Aires, “A Velocidade da Luz” já foi montado em cidades da Alemanha, Suíça, Japão e Espanha. Cada lugar tem suas especificidades, segundo Marco: “no Brasil, a experiência me ensinou principalmente que podemos ser felizes, e tudo bem. Posso estar contente com quem sou, com o que posso dar e o que posso receber”, disse o diretor.

Estar contente com quem somos, o que podemos dar e o que podemos receber parece mesmo funcionar como uma chave para interpretar o processo de “A Velocidade da Luz” no Brasil. Cada pessoa do elenco pôde entrar em contato com suas próprias memórias, nem todas positivas, e ganhou uma chance de recontá-las de uma maneira poderosa, criando o que muitos definiram como uma experiência transformadora.

“Atuar é um sonho de 51 anos atrás. Eu tinha 15 anos quando pensei: ‘vou ser atriz’. Mas as atrizes e atores pretos só ganhavam papéis de empregada, negro escravizado… Desisti”, contou Rute Gonçalves, professora aposentada, que atuou como uma das protagonistas da parte ficcional do espetáculo, notando em seguida a curiosa coincidência de levar os nomes de dois grandes artistas negros brasileiros: Ruth de Souza e Milton  Gonçalves.

Para Rute, “A Velocidade da Luz” significou a realização de um sonho outrora deixado para trás: “Nunca tinha feito teatro na vida. Eu não achava que ia ser tudo isso”, resumiu.

Rute em primeiro plano, em cena com os colegas de “A Velocidade da Luz”: “Nunca tinha feito teatro na vida. Eu não achava que ia ser tudo isso”. Foto: Clarissa Passos
Rute em primeiro plano, em cena com os colegas de “A Velocidade da Luz”: “Nunca tinha feito teatro na vida. Eu não achava que ia ser tudo isso”. Foto: Clarissa Passos

Construção coletiva

E não foi à toa a opção pelo Parque Valongo como cenário. “A escolha do espaço está muito relacionada à dramaturgia. As questões da luta ecológica e política e as memórias de muitos atores e atrizes que formaram o grupo têm o porto de Santos como referência”, conta a artista Marina Guzzo, que assina como parceira artística e responsável pela pesquisa e articulação territorial de “A Velocidade da Luz” em Santos. 

“O local foi muito bem escolhido. O porto é muito bonito, a paisagem é muito forte”, relembra. De fato, o cenário natural do canal, com montanhas ao fundo, pássaros voando e grandes navios cruzando a cena, encaixou perfeitamente com a cenografia minimalista e móvel do espetáculo, que contava com duas grandes molduras vermelhas, algumas cadeiras e mesas, uma cama hospitalar e muitos vasos de plantas, constantemente transportados pelo cenário.

Uma das molduras vermelhas, céu aberto e o canal ao fundo: cenário minimalista é marca de “A Velocidade da Luz”. Foto: Fernanda Luz
Uma das molduras vermelhas, céu aberto e o canal ao fundo: cenário minimalista é marca de “A Velocidade da Luz”. Foto: Fernanda Luz

Para Marina, o processo de criação do espetáculo foi da reunião do grupo em julho à estreia no MIRADA em 12 de setembro – e na verdade não parou nem com a estreia. “Ainda teve uma mudança no dia seguinte”, diz. 

Embora Marco, como diretor, fizesse as escolhas, tudo que o público viu em cena foi uma construção coletiva. “Não tem sentido fazer arte comunitária se você não estiver disposto a construir coletivamente e trabalhar com as histórias que as pessoas querem contar. A proposta é mesmo construir juntos”, diz Marina.

A realidade antes da ficção

Para algumas participantes, o processo teve outros significados. “O meu negócio sempre foi desfilar. Teatro eu nunca fiz, e para mim foi uma experiência maravilhosa”, relatou Carmen Lúcia de Melo Dornelas, modelo, 75 anos. Na parte ficcional do espetáculo ela deu vida a Lourdes, uma mulher sexy e decidida a viver seus amores. 

Na sua primeira experiência homoafetiva, depois de um encontro e muito papo no bar, Lourdes e a nova parceira vão para um quarto e a personagem conta que, após a mulher tirar a blusa, ela pergunta “tem tutorial?”, em um dos momentos mais divertidos da peça.

Teatro documental e ficção se misturam no roteiro de “A Velocidade da Luz”, com histórias sobre emancipação, homoafetividade e o reencontro de um grande amor. Foto: Fernanda Luz
Teatro documental e ficção se misturam no roteiro de “A Velocidade da Luz”, com histórias sobre emancipação, homoafetividade e o reencontro de um grande amor. Foto: Fernanda Luz

A frase saiu do depoimento real de outra mulher participante do projeto. Na primeira parte de “A Velocidade da Luz”, todas as 44 pessoas do elenco compartilharam memórias de suas vidas com o público, divididos em grupos menores formados cada um por parte da plateia e por cinco ou seis atores ou atrizes.

Sentadas em roda, pessoas do público foram convidadas por cada ator ou atriz para ler uma memória, relatada e impressa em um papel. Ao fim da leitura, o autor da história canta uma música.

Helena Leal tem 82 anos e é professora de história. Seu relato fala da infância em uma Paranapiacaba quase selvagem; do trabalho duro da mãe e do pai, migrantes nordestinos, para não deixar faltar nada à mesa da família, e de uma boneca de pano costurada pela mãe que ela, menina, perdeu ao lavar roupa no rio que passava perto da casa.

Terminada a leitura feita pelas pessoas do público, ela, de pé, entoa “Asa Branca” em uma interpretação acapella, que foi logo acompanhada em coro pelo público.

E Nalva Anjos, 61 anos, artesã, relembrou quando recebeu a notícia de que vivia com o HIV aos 27 anos, ao doar sangue para a irmã que tentara o suicídio. “A enfermeira olhou para mim e disse: ‘você tem AIDS e você vai morrer’. Eu perguntei ‘como assim, eu vou morrer? Com dois filhos para criar?’”. Nalva procurou apoio na saúde pública – entre 1989 e 1992, Santos implantou programas pioneiros para o tratamento e conseguiu deixar o topo do ranking das cidades com mais casos – e lá entendeu a síndrome, recebeu os remédios, conheceu pessoas e se engajou no movimento para tornar o tratamento acessível pelo SUS. 

“Já tomei 15 comprimidos por dia, hoje tomo apenas 3. Tenho 61 anos e quero viver”, termina o relato, com Nalva engatando na sequência “O Que É, O Que É” de Gonzaguinha.

Tendo o trânsito do porto e da vida natural da região, com pássaros cruzando a cena, o espetáculo foi aplaudido de pé nas três apresentações do MIRADA 2024. Foto: Fernanda Luz
Tendo o trânsito do porto e da vida natural da região, com pássaros cruzando a cena, o espetáculo foi aplaudido de pé nas três apresentações do MIRADA 2024. Foto: Fernanda Luz

O relato de Augusto Francisco de Freitas começou com uma cartografia sentimental da cidade: “Nasci no Gonzaga, cresci no Gonzaga, moro no Gonzaga e vou morrer no Gonzaga”. Augusto seguiu contando como foi para ele, um garoto muito ruim de futebol e muito fã do Santos Futebol Clube, ter tido a sorte de topar com Pelé, e ganhar um cafuné na cabeça feito pelo astro. Ao final, puxa o Hino do Santos.

“Cada um de nós tem uma memória que se compõe e se entrelaça com uma memória da terra”, resumiu Marina Guzzo.

De volta aos começos

Sandra Petty, autora da frase que inicia este artigo, se inscreveu no projeto por insistência da filha, atriz em São Paulo, poucos meses depois da morte do marido. “Eu não queria sair de casa”, relembrou Sandra. “Nas primeiras quatro aulas, eu ainda não achava que ia ficar. Mas não quis voltar para casa e ficar naquele sofrimento sozinha”.

Quando perguntada se a participação no projeto a fez se dar conta de algo sobre si mesma, ela foi categórica: “Eu casei com 18 anos. Ia fazer 50 anos de casada agora em janeiro do ano que vem. Eu me lembrei daquela Sandra de 18 anos, que sou eu. Essa aqui, que brinca, dança, conversa. Sou eu”.

Para Marina, uma das belezas do projeto é mostrar que a gente pode envelhecer e seguir com futuro. “Essas memórias precisam ser compartilhadas para seguir no tempo, precisam viajar”, defende. E em Santos, elas viajaram na Velocidade da Luz.

“Envelhecer e seguir com futuro”: histórias das pessoas se misturam à da cidade no espetáculo. Foto: Fernanda Luz
“Envelhecer e seguir com futuro”: histórias das pessoas se misturam à da cidade no espetáculo. Foto: Fernanda Luz

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.