Brasil à mesa

01/11/2024

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Em meio a uma crise climática com potencial de agravar a fome e as desigualdades sociais, como promover o direito humano à alimentação adequada?  

Por Marcel Verrumo

Leia a edição de NOVEMBRO/24 da Revista E na íntegra

“A [tontura] da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. Comecei a sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida?”, questionou a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) em sua obra de memórias Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960). Passadas mais de seis décadas, milhões de brasileiros ainda caminham com a tontura descrita pela autora, trêmulos por carregarem o estômago cheio de ar, com um gosto amargo na boca. É o que demonstra a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o estudo, 3,2 milhões de lares conviviam com a fome no Brasil em 2023 e, no total, 21,6 milhões enfrentavam algum grau de insegurança alimentar, ou seja, não tinham acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para sobreviverem.  

Os indivíduos com os marcadores de gênero e raça de Carolina Maria de Jesus são a população mais vulnerável: 59,4% dos domicílios com insegurança alimentar eram chefiados por mulheres e 69,7%, por pessoas pretas ou pardas. Os dados reiteram uma problemática já apresentada em outras pesquisas, como o Suplemento Insegurança alimentar e desigualdades de raça/cor da pele e gênero, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), que sobrepôs esses marcadores e concluiu que, entre o final de 2021 e início de 2022, “moradores de domicílios chefiados por mulheres negras viviam em situação de mais iniquidade relativa ao acesso aos alimentos, o que ilustra o efeito da intersecção entre a discriminação de gênero e o racismo”.  


Segundo a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, todos devem ter acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Foto: Matheus José Maria

Desafio centenário

A fome atravessa a história do Brasil. Um dos ensaios sociológicos seminais sobre o assunto é o livro Geografia da fome, do médico, geógrafo e cientista social Josué de Castro (1908-1973), publicado em 1946. Para o autor, esse flagelo é um fenômeno social coletivo com raízes que remetem à colonização do país, ignorado pelas autoridades, e que se manifesta ao longo do tempo de forma permanente e estrutural (fome endêmica) e se agrava em determinados contextos (fome epidêmica).  

“A fome no Brasil, que perdura, apesar dos enormes progressos alcançados em vários setores de nossas atividades, é consequência, antes de tudo, de seu passado histórico, com os seus grupos humanos, sempre em luta e quase nunca em harmonia com os quadros naturais”, escreveu Castro, salientando que a colonização do país foi orientada por uma “agricultura extensiva de produtos exportáveis ao invés de uma agricultura intensiva de subsistência, capaz de matar a fome do nosso povo”.  

O tema ganhou os holofotes no país na década de 1990, quando o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que 32 milhões de brasileiros passavam fome e o sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, realizou a campanha Ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida, em 1993, um movimento de arrecadação de alimentos com forte presença midiática e participação de artistas. A iniciativa fomentou a solidariedade, engajou a sociedade civil e inspirou empresas e organizações. Um exemplo de programa implementado nesse contexto foi o Sesc Mesa Brasil [leia mais em Ação coletiva], criado pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) em 1994.  

No início do século 21, o problema retornou ao centro da agenda pública. Um capítulo decisivo se deu em 2003, quando o governo federal lançou o programa Fome Zero, política pública que articulou iniciativas e projetos de enfrentamento à fome e à pobreza, como ações de transferência de renda para famílias em extrema pobreza (Bolsa Família), de melhoria da alimentação escolar e ampliação das ações de educação alimentar e nutricional (Programa Nacional de Alimentação Escolar), de fomento à agricultura familiar e promoção do acesso a alimentos (Programa de Aquisição de Alimentos), dentre outras. Três anos depois, foi promulgada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), tornando a segurança alimentar e nutricional uma política de Estado, ou seja, responsabilizando os poderes públicos por assegurar o direito humano à alimentação adequada.  

Números da fome  

Enquanto o governo investia em políticas públicas, o tema era aprofundado nas universidades. Em 2003, pesquisadores criaram a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) para medir o número de pessoas com fome no território nacional e o seu grau. A metodologia foi a base para o IBGE colher dados e, em 2006, publicar o primeiro levantamento suplementar do PNAD sobre o tema, informando que 34,8% dos domicílios do país (72 milhões de pessoas) conviviam com insegurança alimentar. Em edições seguintes da pesquisa, o instituto revelou uma melhora nos índices, que chegou ao seu menor patamar em 2013, quando 4,2% de sua população estava em insegurança alimentar grave (fome).  

O enfrentamento desse flagelo teve os resultados reconhecidos pela comunidade internacional. Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) tirou o Brasil do Mapa da Fome, um instrumento que inclui os países em que mais de 2,5% da população passa fome. Apesar do avanço, a situação voltou a se agravar. Menos de uma década após sair do Mapa, o II Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (Rede PENSSAN) indicou que 33,1 milhões de pessoas passavam fome no país em 2022. A mais recente pesquisa sobre o tema, a PNAD Contínua, publicada em abril, mostrou que 8,7 milhões de pessoas passavam fome no Brasil em 2023.  

Foto: Carlos Macedo

“O problema da fome no Brasil, nos últimos anos, resulta especialmente de uma combinação de desigualdade social e econômica, retrocesso em políticas públicas, impactos das mudanças climáticas e da pandemia de Covid-19”, destaca Aline Martins de Carvalho, professora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão Sustentarea. Diante desse cenário de avanços e retrocessos, especialistas defendem que, para garantir o direito humano à alimentação adequada, no presente e no futuro, é imprescindível o investimento em políticas públicas permanentes, bem como em ações de empresas e da sociedade civil.  

Caminhos do alimento  

O combate à fome envolve a promoção de sistemas alimentares sustentáveis, segundo pesquisadores do tema ouvidos nessa reportagem, ou seja, requer o fomento à sustentabilidade nas atividades relacionadas ao caminho percorrido pelo alimento: do local de produção à mesa, jornada que passa pelo transporte, distribuição, processamento, consumo e posterior descarte.  

“Os sistemas alimentares precisam buscar a sustentabilidade econômica, social e ambiental. Do ponto de vista econômico, precisam ser rentáveis para distintos elos da cadeia produtiva e com práticas de comércio justo. Devem, ainda, gerar benefícios amplos para a sociedade, e buscar neutralizar os impactos ambientais negativos da produção, distribuição e consumo. Quando alinhado a todas essas premissas, o combate à fome gera renda localmente, contribui com a neutralidade de carbono e pode ajudar no fortalecimento da cidadania alimentar”, elenca Gustavo Porpino, pesquisador da Embrapa Alimentos e Territórios e colaborador de iniciativas da ONU Meio Ambiente e G20 sobre sistemas alimentares sustentáveis.


O fomento à sustentabilidade nas atividades que compõem o caminho do alimento in natura (do local de plantio ao transporte, distribuição, comercialização, descarte) é imprescindível para o combate à fome. Foto: Carlos Macedo 

Quando os sistemas alimentares não se pautam na sustentabilidade ambiental, seus impactos no meio ambiente são maiores, agravando a crise climática e, consequentemente, a produção de alimentos, as desigualdades sociais e a fome. A sustentabilidade social e econômica, por outro lado, fomenta a distribuição de renda, o combate à pobreza, o trabalho decente, a justiça social etc.  

Entre as ações citadas por Carvalho e Porpino estão o consumo de alimentos produzidos localmente, de pequenos produtores e da agricultura familiar, a priorização de comida de verdade (alimentos in natura e minimamente processados, como frutas, verduras e legumes, em detrimento de ultraprocessados, como salgadinhos de pacote e bolacha) e a educação alimentar nutricional. Os especialistas também apontam como caminho a diversificação de cultivos agrícolas, a valorização da biodiversidade do país e das agroflorestas, o fortalecimento de cinturões verdes no entorno dos grandes centros urbanos, a promoção de uma economia circular, a transferência de renda, o comércio justo e o combate às desigualdades e ao desperdício.  

No que tange ao último ponto, em um país onde milhões de pessoas passam fome, grande parcela dos alimentos produzidos se perde ao longo da cadeia alimentar, seja no transporte, na comercialização ou no consumo. “No mundo, 30% dos alimentos são perdidos. Esses resíduos orgânicos são geralmente descartados em lixões ou aterros sanitários, onde se decompõem em condições anaeróbicas, gerando metano, um gás liberado na atmosfera. Esse é um poluente climático com um potencial de aquecimento global 86 vezes maior que o CO2 e é responsável por 45% do aquecimento global recente”, diz Carolina Urmeneta, diretora do Programa Waste & Circular Economy no Global Methane Hub. Portanto, além de não chegar à mesa de quem passa fome, um alimento desperdiçado contribui com a crise climática que, consequentemente, prejudica a produção de alimentos, produz desigualdades e prejudica a vida da presente e das futuras gerações.  

Para os especialistas, a erradicação da fome envolve ações de diferentes atores sociais. Porpino defende que é necessário investir em políticas públicas robustas e permanentes, combinadas com geração de emprego e renda, em um processo que articule ações dos diferentes níveis de governo (federal, estadual e municipal), da sociedade civil e do setor privado. “A segurança alimentar e nutricional é um direito humano relacionado com a sustentabilidade em todas as suas dimensões. Precisamos enfrentar a fome com alimentos saudáveis, alinhados à cultura alimentar local”, acredita Porpino.  

Complemento alimentar

Os bancos de alimentos também são equipamentos importantes no combate à fome, prestando serviços de coleta, triagem e distribuição gratuita de doações. “Como recuperam alimentos que seriam desperdiçados, eles conseguem fornecer comida a pessoas com fome e, simultaneamente, reduzir o desperdício, além do impacto negativo que esse descarte geraria em nosso planeta. Ao estabelecer relacionamentos de longo prazo com agricultores, produtores de alimentos, varejistas e outros atores ao longo da cadeia de suprimentos, os bancos de alimentos também ajudam a garantir que menos comida se perca e que mais alimentos cheguem às mesas das famílias”, explica Lisa Moon, presidente e CEO do The Global FoodBanking Network, organização sem fins lucrativos que dá suporte a bancos de alimentos em diferentes países.  

Na América Latina, a maior rede privada de combate à fome é o Sesc Mesa Brasil, criado pelo Sesc São Paulo há 30 anos. O programa realiza ações educativas e entrega alimentos a instituições sociais que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade social. Pesquisadores da Harvard Law School, em parceria com a GFN, avaliaram o papel desses equipamentos na erradicação da fome, bem como as legislações e políticas públicas vigentes em 24 países. O trabalho resultou no Atlas Global de Política de Doação de Alimentos, publicado em 2024. “Atualmente, o Atlas destaca que o Brasil é um dos poucos países a oferecerem proteções nacionais abrangentes de responsabilidade para doadores e organizações de recuperação de alimentos. Também identifica que a Lei 14.016/20 de Desperdício e Doação de Alimentos autoriza produtores e fornecedores de alimentos a doarem excedentes seguros e adequados para consumo humano, o que é um ótimo primeiro passo, mas a lei não exige a doação nem penaliza o desperdício”, destaca Gray Norton, advogada e pesquisadora da Harvard Law School. Para a especialista, o governo brasileiro poderia oferecer subsídios para melhorar a infraestrutura de doação de alimentos, permitindo que essas organizações aumentem sua escala e recuperem, manuseiem, transportem e distribuam doações de forma mais eficaz e segura.  

Com menos desperdício, bancos de alimentos fortalecidos e um sistema alimentar pautado na sustentabilidade, mais comida poderia chegar às mesas do país. Com isso, mais brasileiros talvez parassem de sentir o estômago cheio de ar e vivenciassem o que Carolina Maria de Jesus nomeou como “o espetáculo mais lindo”: “Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos. (…) Comecei a sorrir como se eu estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?”.  

Ação coletiva 

Sesc Mesa Brasil celebra três décadas de fomento à alimentação saudável e adequada para todos  

Programa de combate à fome e ao desperdício, o Sesc Mesa Brasil é realizado pelo Sesc desde 1994, conectando parceiros doadores (empresas, cooperativas etc.) e instituições sociais. Na operação Colheita Urbana, a equipe faz uma triagem e coleta de alimentos que perderam o valor comercial, mas estão próprios para consumo e, no mesmo dia, entrega a instituições sociais onde eles complementam as refeições servidas a pessoas em situação de vulnerabilidade social.  

“Além de coletar e distribuir alimentos que fazem a diferença na mesa de muitas pessoas, o programa tem um caráter educativo, com ações para disseminar conhecimentos sobre elaboração de cardápios saudáveis, boas práticas de manipulação de alimentos, valorização das culturas alimentares e técnicas culinárias de preparo”, ressalta o diretor do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina, referindo-se aos bate-papos, oficinas culinárias, seminários, dentre outras atividades voltadas às instituições sociais atendidas, parceiros doadores e outros públicos.  


Em 2023, o Sesc Mesa Brasil distribuiu 48 milhões de quilos de doações, e realizou 8700 ações ações educativas em todo território nacional. Foto: Matheus José Maria

Na celebração dos 30 anos do programa, alinhado com a agenda pública, o Sesc realizou, no mês de agosto, junto à GFN, o Seminário Internacional Sistemas Alimentares: Oportunidades para Combater a Fome e o Desperdício no Brasil, no Sesc Belenzinho, em São Paulo. O evento reuniu pesquisadores nacionais e internacionais, debatendo as problemáticas da fome e do desperdício de alimentos. “Além de realizarmos o Seminário, as atividades educativas voltadas às instituições sociais foram ampliadas para todos os públicos; realizamos o Festival Sesc Mesa Brasil; promovemos uma campanha de arrecadação de alimentos; montamos uma exposição sobre o programa na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo; e estamos trabalhando em outras ações para angariar mais doações e fomentar a solidariedade”, conta Mariana Meirelles Ruocco, gerente na Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar.  

Atualmente, o Sesc Mesa Brasil está presente em todos os estados do país e no Distrito Federal, atendendo mais de 750 municípios. São três mil parceiros e dois milhões de pessoas beneficiadas por mês. Em 2023, foram distribuídos 48 milhões de quilos de doações e realizadas oito mil e 700 ações educativas.  

Saiba mais em sescmesabrasil.sescsp.org.br  

Carmo 

Sesc Mesa Brasil, 30 anos 

Exposição celebra atuação do programa com imagens de arquivo e ensaio fotográfico inédito de Luisa Macedo. 

De 4/11 a 13/12. Segunda a sexta, das 10h às 19h. GRÁTIS.

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