Bianca Pedrina, cofundadora do coletivo Nós, Mulheres da Periferia, fala sobre a importância da diversificação de narrativas e de um jornalismo conectado com a comunidade
Por Rachel Sciré
Leia a edição de NOVEMBRO/24 da Revista E na íntegra
No álbum Nada como um dia após o outro dia (2002), o grupo Racionais MC’s cantou: “o mundo é diferente da ponte pra cá”. A expressão poética que se popularizou no vocabulário faz referência às particularidades da vida nas periferias, em especial na cidade de São Paulo, onde pontes sobre os rios Pinheiros e Tietê ligam os bairros periféricos ao Centro expandido. Além de contextos específicos, as periferias carregam perspectivas próprias que não costumam ser divulgadas pela mídia tradicional. Para “escrever textos e registrar histórias que não encontravam em lugar nenhum”, um coletivo de mulheres fundou, em 2014, o site Nós, Mulheres de Periferia. O texto de apresentação do projeto jornalístico traz a frase dos Racionais MCs, e ainda destaca: “mais do que notícias, o que você encontra aqui é um jeito de ver o mundo”.
Para Bianca Pedrina, cofundadora e diretora executiva operacional da iniciativa, “existe muita potência nesse ser periférico que atravessou a ponte e conseguiu acessar a universidade e outros espaços que não foram feitos para mulheres como nós”. E acrescenta: “digo que foi preciso socar a porta para conseguir entrar e fazer o jornalismo que a gente acredita”.
Bianca é jornalista e conheceu as outras integrantes do coletivo ao participar do Blog Mural (que depois daria origem à Agência Mural de Jornalismo das Periferias), projeto de treinamento de correspondentes comunitários para a produção colaborativa de conteúdos multimídia. Um artigo com o título “Nós, Mulheres da Periferia”, para o jornal Folha de S.Paulo, alcançou repercussão e surpreendeu o grupo. “A gente entendeu que existe um vazio de representatividade, de narrativas, um silenciamento das nossas histórias e experiências. A partir disso, decidimos criar um site.” Neste Encontros, Bianca Pedrina fala sobre os princípios que orientam o coletivo, a valorização do protagonismo de mulheres negras e periféricas e a importância do diálogo com o público.
quebrar barreiras
Rompemos com a ideia de jornalismo distanciado da audiência. Pelo contrário, as nossas fontes eram muito próximas: mães, vizinhas, pessoas dos nossos bairros. Quando fundamos o Nós, não se falava muito sobre isso, a pauta da diversidade não era dominante. Entendemos que havia um espaço e que ele precisava de outras como nós. Por isso, a nossa linha editorial defende que quem vai falar são as mulheres negras e da periferia. Trouxemos um protagonismo que nos deu pertencimento. É muito desafiador enfrentar um sistema que não é feito para você, trazer narrativas que não são consideradas importantes. Esses desafios se perpetuam até hoje, por mais que a gente tenha se tornado referência. Continuamos sendo vistas como mulheres periféricas que fazem um jornalismo de menos qualidade e credibilidade. Sempre tentam nos colocar em um lugar de silenciamento.
JORNALISMO DE MEMÓRIA
Estamos na base da pirâmide de direitos, somos maioria e temos que contar as nossas histórias. Fazemos um jornalismo de memória, ideia que veio muito forte quando começamos a eternizar histórias invisibilizadas. Por exemplo, com a exposição QUEM SOMOS [POR NÓS], de 2015, ou com o documentário Nós, carolinas – Vozes de mulheres das periferias (2017), a partir da vida de Dona Carolina [Carolina Augusta de Oliveira, uma das personagens do documentário]. A produção encheu salas de cinema, é exibida em escolas, permite às meninas se reconhecer. Não é qualquer coisa. É um trabalho diário manter esse pertencimento para que nossa identidade seja preservada e perpetuada.
PELO DIÁLOGO
Existem várias formas de fazer esse tipo de jornalismo que a gente defende. Preferimos seguir por um caminho de escuta, reflexivo. Temos uma linha editorial que chama a audiência para o diálogo. A gente está muito atenta ao que as pessoas pedem que seja falado a partir do nosso jeito de ver o mundo, como diz o nosso slogan. Nos provocamos em um lugar maior do que o do jornalismo, trabalhando em várias esferas da comunicação, da arte, em trocas diárias com as nossas. Queremos deixar um legado. Compartilhamos o nosso jeito de fazer por meio de formações e mentorias com jovens jornalistas, principalmente pensando em pautas que são muito caras para nós.
A nossa linha editorial defende que quem vai falar são as mulheres negras e da periferia. Trouxemos um protagonismo que nos deu pertencimento.
Foto: Patrick Silva
NOSSAS PAUTAS
O Nós não trabalha com hard news [cobertura de notícias da política, da economia e do cotidiano]. A partir dos acontecimentos que nos atravessam, fazemos um exercício para entender como trataremos daquele tema, sempre levando em conta: gênero, raça e território. A missão é pensar qual olhar daremos ao assunto. Por exemplo: como as queimadas atingem as mulheres da periferia? Se a gente não se comunicasse, outros fariam de um jeito que, mais uma vez, reproduziria posturas inadequadas, machistas, preconceituosas, ainda presentes em tantas publicações. Então, pensamos como as nossas atividades incluem frentes de escuta, de respeito e de cuidado, trazendo as nossas histórias, e batendo de frente com temas polêmicos.
GERAR MUDANÇAS
A gente provocou a mídia tradicional com nossos temas. Já é possível ver a informação com outra contextualização. Por exemplo: “Um menino negro foi assassinado por um policial branco” – foi uma luta para que as notícias passassem a ser contadas dessa forma. Ao mesmo tempo, outras notícias continuam pautando a realidade de maneira equivocada. Ou veículos tratam as questões de forma esvaziada, por exemplo, quando contratam duas pessoas negras para garantir diversidade na redação. Existe uma necessidade de reconhecer, de fato, os privilégios. O sistema não quer perder o poder, dar espaço, mas teve que jogar o jogo de alguma maneira e o resultado, a gente vê na publicidade. O mercado se beneficia disso, mas não quer dizer que haja uma reparação. A moda da “diversidade” passa, e a gente continua sofrendo racismo, machismo, continua pobre, vivendo em lugares extremamente precários, com o meio ambiente pedindo socorro. Esses assuntos precisam ser tratados.
FURAR A BOLHA
Estamos em um momento em que é preciso ter muito cuidado. Nessa era dos influenciadores, todo mundo é um especialista. Tem muitas pessoas espalhando fake news e a gente vem da periferia, onde a formação escolar ainda é precária, nem todo mundo e politizado e tem criticidade sobre temas importantes. O ponto positivo é que as pessoas estão se apropriando de suas narrativas e conseguem mostrar a suas vivências na periferia, sozinhas, em suas redes. Lá atrás, a gente teve que formar um coletivo para conseguir fazer essas trocas. Buscamos estar atentas à nossa audiência e entender como é possível aprofundar um assunto, trazer outro recorte a partir de pontos que mexem muito com o cotidiano da mulher periférica. Conseguimos furar a bolha quando geramos identificação, mas para isso é preciso estar muito próxima da audiência.
MODELO DE FINANCIAMENTO
No início, era por amor. Ganhamos dois editais do Programa VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), da Secretaria Municipal de Cultura, o que permitiu realizar tanto a exposição quanto o documentário. Então, começamos a nos organizar enquanto empresa com fins lucrativos, CNPJ… Em paralelo, nos inscrevemos em fundos internacionais de jornalismo e comunicação, e recebemos apoio de alguns deles. Com o caixa que fizemos, contratamos uma equipe, que inclui área editorial, institucional e operacional. Também temos apoio institucional do Instituto Ibirapitanga e realizamos alguns projetos pontuais, como foi o caso da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, com diversas matérias, uma formação e um guia sobre primeiras infâncias e racismo. Prospectamos fundos e editais, nos unimos com organizações alinhadas ao nosso propósito e vamos tentando a nossa sustentabilidade, mas ainda é muito difícil.
DO NOSSO JEITO
Sempre cuidamos muito para não reproduzir modelos empresariais. Adotamos um que funciona do nosso jeito, no qual equilibramos as demandas organizacionais e pessoais. Acredito que acertamos, especialmente em um lugar onde a gente ainda é muito desrespeitada enquanto mulher, por não entenderem os atravessamentos todos, a tripla jornada. Todas as mulheres trabalham de casa e tentamos fazer reunião de planejamento pelo menos uma vez por ano. Tudo é muito conversado, a gente analisa e avalia as pautas com mais fôlego. Isso ajuda no cuidado com a equipe, em termos de saúde física e mental. Os processos têm uma cadência em que uma passa o bastão para a outra. A maior parte da nossa equipe está com a gente há bastante tempo, e isso mostra que temos feito um bom trabalho nesse lugar, para que as pessoas queiram continuar. Além do trabalho, temos um propósito.
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