Foto: Gonçalves (Picasa)
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Por Adriana Ferreira Silva*
Eu tinha dado pouca atenção ao feminismo até 2015, quando fui arrastada pela onda de indignação coletiva que levou centenas de milhares de manifestantes às ruas em protesto contra o projeto de lei 5069/2013, a “PL do aborto”, que colocava em risco a política pública de atendimento às vítimas de violência sexual, dificultando o acesso aos serviços de saúde relativos à interrupção da gravidez indesejada, autorizada por lei em casos de violência sexual.
Parecia um despertar: de repente, as manchetes foram dominadas por mulheres de todas as idades –muitas delas carregando no colo bebês, crianças pequenas–, com seus corpos pintados com frases como “útero livre” e “pílula fica, Cunha sai”. O coro indignado deu um chacoalhão em quem, como eu, até então gozava das conquistas que ativistas de décadas passadas garantiram a minha geração, sem jamais questionar o motivo pelo qual ainda tínhamos de lidar com o assédio masculino em todos as esferas e ambientes; diferenças de tratamento, salário e oportunidades; opressão doméstica e outras tantas tiranias que hoje entendo como consequência de machismo, misoginia e patriarcado estruturais.
Nasci em maio de 1975, Ano Internacional da Mulher, efeméride que só recentemente descobri e que inspirou uma semana de debates na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio, organizada por Jacqueline Pitanguy, Mariska Ribeiro, Branca Moreira Alves e outras ativistas que, a partir dali, passariam a se articular em coletivos para atuar politicamente em defesa das mulheres. É graças a essas militantes da chamada “2ª onda feminista” – que inclui ainda Maria Amélia de Almeida Teles, Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, Bila Sorj, Eva Blay, entre tantas outras –, que as brasileiras deixaram, por exemplo, de ser cidadãs de segunda categoria, situação que perdurou até 1988, quando a Constituição foi alterada.
Desvendar o trabalho dessas e de outras é uma das delícias de se deixar levar por essa “quarta onda”, que floresceu na primavera de 2015, pelas mãos de uma geração que se organizou coletivamente nos meios digitais e os extrapolou, ocupando as ruas em movimentos já históricos como a Primeira Marcha das Mulheres Negras (2015), que reuniu 50 mil ativistas de todas as regiões do país em Brasília; a Marcha das Margaridas (2015), com mais de 70 mil trabalhadoras do campo marchando na capital federal; e as campanhas virais #PrimeiroAssédio (2016), uma catarse contra o assédio sexual; e #EleNão, maior manifestação liderada por mulheres no Brasil durante as eleições presidenciais de 2017.
Isso tudo em sintonia com a torrente de protestos que atravessou todos os continentes, em parte como extensão de mobilizações como #MeToo, movimento contra o assédio que apareceu pela primeira vez em 2006, criado pela ativista pelos direitos civis norte-americana Tarana Burke para denunciar casos de agressão sexual, e que viralizou onze anos depois, inspirando versões ao redor do planeta –#BalanceTonPorc, na França, e o próprio #PrimeiroAssédio, no Brasil. Mas também em consequência da normalização e completo descaso aos casos de feminicídio e violência de gênero, como o cruel assassinato da adolescente Lucía Péres, em Mar del Plata, na Argentina, em 2016, que instigou marchas no país e em vizinhos como Uruguai e Chile sob a bandeira Ni Una a Menos.
Desse efervescente quadro de demandas feministas, uma nova organização, com “potência coletiva e horizontal”, como observa a escritora Heloisa Buarque de Holanda em Explosão Feminista (Cia. das Letras, 536 págs.), se consolidou, atuando em diferentes cenários: da academia às artes plásticas, passando pelo cinema, a música, a poesia e o jornalismo. A primeira edição do encontro internacional Nós Tantas Outras, em 2018, sintetizou esses cenários ao eleger os diversos “feminismos” como tema, construindo pontes entre veteranas como a professora norte-americana Patricia Hill Collins e as brasileiras Amelinha Teles e Marisa Fernandes, e jovens ativistas, a exemplo da escritora afegã Noorjahan Akbar, a escritora transfeminista Helena Vieira e a escritora e trabalhadora sexual Monique Prado.
Mas após o chacoalhão inicial, o que fazer? Se o inconformismo e a ousadia de vislumbrar um horizonte igualitário e melhor inspirou as mulheres a se rebelarem em 2015 – e ao longo de toda a história do movimento feminista –, foi graças à luta coletiva que avançamos. Por isso, fico feliz de saber que o Nós Tantas Outras elegeu Mulheres e Novos Imaginários como tema para sua segunda edição, em março de 2020. A ideia, agora, é desvendar quem são os grupos conjecturando soluções interseccionais para aprimorar nossa existência, ao contemplar a redução das desigualdades de gênero, raça e classe por meio da erradicação da pobreza e da violência e a busca de saídas efetivas para que nossos direitos sejam garantidos, respeitados e ampliados. Como destacou Amelinha Teles na sessão de lançamento do Nós Tantas Outras, é preciso uma atuação coletiva articulada, ainda que tenhamos nossos nichos. Juntas, sempre, sempre somos muito mais poderosas.
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*Adriana Ferreira Silva é jornalista interseccional, feminista, antirracista, é atualmente editora-executiva e colunista da revista Marie Claire Brasil.
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