Ter mulheres em posições de destaque no sertanejo já é uma mudança radical. Por Seane Melo
Seane Melo é jornalista e escritora maranhense, publicou de forma independente o e-book de contos eróticos Ao vivo em Goiânia: quatro contos de patroa. Mensalmente, divulga novos contos no Medium, como colaboradora da publicação Mulheres que Escrevem, onde procura desenvolver múltiplos olhares para o feminino no erotismo. É doutoranda em Comunicação na Universidade Federal Fluminense.
Ilustrações por Catarina Bessell — artista, ilustradora e colabora semanalmente para o jornal Folha de São Paulo. Apaixonada por literatura e ciências naturais, os livros são o ponto de partida para devaneios e grande fonte de inspiração para trabalhos. A técnica mais usada, a colagem, faz com que ela viva misturando a realidade com a ficção, o cotidiano com o extraordinário. Acredita em extraterrestres.
Era um dia qualquer de 2016, meu irmão tinha ido me buscar no trabalho e me pediu para colocar uma música. Tirei o celular da bolsa sem hesitar e coloquei o álbum Ao vivo em Goiânia, de Maiara e Maraisa, para tocar. Em algum semáforo, enquanto esperávamos pelo sinal verde, meu irmão parou pensativo. “Tu acha mesmo que essas músicas são feministas?”, perguntou meio retoricamente e continuou. Eu acho que é exatamente igual ao sertanejo cantado pelos homens, saca? Fala de bebida, de pegação, de traição, não é diferente. O comentário do meu irmão veio inesperado, mas respondi com uma risada. O que era diferente não era o discurso, era quem ocupava o lugar de fala. Passei o resto da viagem tentando convencê-lo que aquelas mulheres cantando as mesmas coisas que estávamos acostumados a ouvir em vozes masculinas engendravam uma mudança radical no cenário da música sertaneja, mas, no fundo, o comentário do meu irmão tinha me deixado com uma pulga atrás da orelha. Afinal, do que falava o feminejo?
É complicado precisar quando surge a palavra “feminejo” para designar o sertanejo universitário cantado e, muitas vezes, escrito por mulheres. Na falta de um trabalho acadêmico para ancorar meus palpites, recorri à busca do Twitter para descobrir que, ainda que sua autoria continue desconhecida, o termo só apareceu na rede social em 2016. Pela mesma busca, foi possível perceber que a expressão se popularizou tão rápido que em seis de novembro daquele ano foi usada na televisão aberta, no programa Esquenta da Rede Globo.
Se é difícil situar o termo, localizar as origens do fenômeno musical em si não é tarefa mais fácil. As Irmãs Galvão, Inezita Barroso, Roberta Miranda e Paula Fernandes (de minha parte, também incluiria Sandy), por exemplo, são nomes obrigatórios em qualquer retrospectiva do sertanejo brasileiro e podem ser vistas como predecessoras de Marília Mendonça, Maiara e Maraisa, Simone e Simaria, Day e Lara, Naiara Azevedo, Paula Mattos e outras. Mas existe algo na minha formação de pesquisadora que me faz desconfiar da noção de tradição. Para usar as palavras de Foucault em Arqueologia do Saber, a tradição “autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem”. Assim, é quase reconfortante ver as novidades sobre um fundo de permanência.
Para aplicar Foucault ao feminejo, seria preciso resistir à tentação de retroceder até a formação da dupla sertaneja Irmãs Galvão, em 1947, e recusar discursos reconfortantes sobre a força e a resistência das mulheres num gênero tão povoado por homens. Em contrapartida, seria necessário lançar um olhar apurado para as condições de possibilidade desse tal feminejo, cujo próprio termo é mais sintoma de ruptura que de permanência. Aliás, para começo de conversa deveríamos enumerar alguns fatores que sedimentaram o terreno para o “levante das mulheres no sertanejo” a partir de 2016.1
Na minha lista pessoal, a primeira condição que incluí foi o sucesso do sertanejo universitário, já que não é com qualquer sertanejo que as protagonistas do feminejo dialogam. Suas músicas não têm qualquer relação com o sertanejo tradicional do Rio Grande do Sul, tampouco estão próximas das modas de Chitãozinho e Xororó, Zezé di Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, para citar algumas das duplas que monopolizaram as rádios na minha infância. Essa relação com o sertanejo universitário tem um efeito maior que a localização em um cenário musical específico, indica o tempo em que o feminejo desponta: o século XXI e toda a sua fluidez, diversidade e consumismo.
Outra condição que não poderia passar em branco tem a ver com a reconfiguração e generalização do feminismo no Brasil. Quando pensei sobre o assunto, fiquei receosa de estar exagerando um fenômeno que poderia estar restrito a bolhas de redes sociais. Mas pesquisadoras como a historiadora da Unicamp Margareth Rago2 endossam essa hipótese quando falam das conquistas do feminismo nos últimos trinta ou quarenta anos, que incluem, além do reconhecimento público da importância e da organização do movimento no Brasil, sua penetração entre moças de 15 e 16 anos. A realização da Marcha das Vadias em várias cidades brasileiras a partir de 2012 também é um indício da nova configuração do feminismo e do crescimento dessas mobilizações no ambiente digital. Sem mencionar as inúmeras hashtags de protesto como #MeuAmigoSecreto ou #EuNãoMereçoSerEstuprada que pautaram a imprensa nacional.
Num contexto em que temáticas feministas passam a fazer parte do cotidiano, o surgimento de um termo como “feminejo” não causa tanto estranhamento. Enquanto propostas como o #LeiaMulheres ganham força no mercado editorial, a adoção de um nome que separa radicalmente o sertanejo cantado por mulheres do cantado por homens pela primeira vez ganha um tom positivo, até mesmo elogioso. Na verdade, talvez a chave para a compreensão de uma diferença notável entre Roberta Miranda, Paula Fernandes e as cantoras sertanejas que começaram a fazer sucesso nos últimos dois ou três anos também esteja aí.
Enquanto Roberta Miranda conquistava o título de Rainha do Sertanejo na década de 1980/1990, Paula Fernandes ia esperar até 2009 para estourar com o álbum Pássaro de Fogo. Uma linha do tempo deixaria isso mais claro: até 2015, as carreiras femininas no sertanejo eram esporádicas e se justificavam exclusivamente pelo talento individual. A partir de 2016, o feminejo representa uma busca coletiva por espaço, uma conquista que possibilitou, por exemplo, que em uma playlist do Spotify com o nome Geração Sertaneja3 encontremos nove novas artistas ou dupla de cantoras.
Para dar uma dimensão melhor do fenômeno, poderíamos ainda recorrer à lista Top 100 Músicas mais tocadas nas rádios brasileiras em 2016 da Crowley, na qual 15 músicas são de cantoras sertanejas ou contam com a participação delas.
Marília Mendonça aparece logo na 2ª posição, com Infiel, seguida por Maiara e Maraísa em 5º, com Medo Bobo, e Naiara Azevedo em 8º, com 50 reais. Em 2017, essas artistas não sumiram nos pódios. Na retrospectiva brasileira da plataforma de streaming Spotify, a música Loka, de Simone e Simaria conquistou o 8º lugar no Top 10 de músicas mais tocadas. Marília Mendonça e Maiara e Maraísa aparecem em 4º e 8º lugar, respectivamente, na lista de Top 10 Artistas, além de ainda conquistarem as posições 3 e 4 (Marília Mendonça) e 9 (Maiara e Maraísa) nos Top 10 Álbuns.
Com base nesses dados, eu poderia voltar a sustentar a resposta que dei para o meu irmão no carro: ter mulheres em posições de destaque no sertanejo já é uma mudança radical. Mas também não queria me conformar com a defesa de que o feminejo é caracterizado, afinal, pela presença de mulheres no sertanejo universitário, possibilitada por novas demandas de representatividade em campos de produção cultural. Então voltei para a questão inicial: do que fala o feminejo?
Como escritora, as letras têm um apelo muito forte pra mim. Gosto das mais dramáticas, para não dizer bregas, de Simone e Simaria, como Quando o mel é bom e Regime fechado, às mais ousadas como Mexidinho e Show Completo, de Maiara e Maraisa. As de sofrência não são exatamente minhas preferidas e tenho um pé atrás com quase todas sobre traição, o feminismo passa longe dessas. Mas também me apego às baladas românticas, como Medo Bobo. Não por acaso publiquei de forma independente o e-book Ao vivo em Goiânia: quatro contos de patroa com histórias eróticas inspiradas nessas letras.
Nas discussões de bar, faço coro com a amiga que explica que Mexidinho inverte papéis ao retratar uma mulher chegando em casa da balada enquanto o marido dorme. Conseguimos tirar da manga um monte de versos que colocam a figura feminina no lugar do desejante, não só do desejado. Ou que tiram a mulher de um pedestal de bom comportamento e passam a retratar a mulher baladeira. Particularmente, também defendo que canções como 10%, 50 reais, Sob Nova Direção e Meu violão e o nosso cachorro abrem margem para uma nova chave interpretativa, para além da liberdade sexual. Acontece que essas músicas mais explicitamente trazem uma questão financeira importante, em quase todas está bem claro que elas estão pagando a conta, possuem seu próprio dinheiro ou não precisam mais ter homens como provedores, eles podem ficar “com a casa inteira e o nosso carro”. Forma um contraste interessante quando comparada com todas as músicas do sertanejo universitário que falam de carros importados e dinheiro como formas de atrair mulheres.
Mas os exemplos positivos das letras de feminejo poderiam não ser tão numerosos quanto os outros exemplos que, como definiu meu irmão, falavam a mesma coisa que as outras modas universitárias. Então, já que partir da minha experiência pessoal para analisar “o que fala o feminejo” traria um resultado no mínimo tendencioso, resolvi reunir todas as letras de Ao Vivo em Goiânia (Maiara e Maraisa), Realidade — Ao vivo em Manaus (Marília Mendonça) e Simone & Simaria (Ao vivo), totalizando 52 letras, para fazer uma análise lexical, nome bonito para “contagem de palavras”.
Selecionando apenas os substantivos da lista de palavras que mais se repetem nas músicas das artistas, cheguei a um resultado que me surpreendeu e decepcionou à primeira vista. Fiquei passeando os olhos pela tabela, pensando no que “amor” e “coração” em 1º e 4º lugar poderiam nos falar sobre as mulheres na música. Confesso que tinha me preparado para falar sobre “cama”, “solidão” e “copo”, além de outros sinônimos para bebida, mas estava pouco preparada para a constatação de que as letras do feminejo ainda falam predominantemente de “amor”, “coração”, “vida” e “saudade” (aliás, saudade é uma palavra que Marília Mendonça colocou no pódio quase sozinha).
No quesito bebida, a palavra “pinga” teve 14 ocorrências e poderia estar nessa lista, mas, assim como “mel” (12), preferi deixá-las de fora porque todas as ocorrências estavam em apenas uma música, ou seja, eram um erro de amostragem, pois aquelas canções repetiam a mesma estrofe mais que o restante. “Copo” foi repetida apenas nove vezes nas músicas dos três álbuns analisados. Pensei que a resposta pra essa baixa incidência de referência ao álcool se devia a variedade de sinônimos. Seria preciso coletar manualmente todas as variações de “beber”, “tomar/virar/mais uma” (8), “bar”, nomes de bebidas e tantas outras. Reparei que “cara” aparecia em 6º lugar, no entanto, só uma das ocorrências dizia respeito a “encher a cara”4.
Naveguei pelas ocorrências das palavras listadas na tabela em busca de aplicações que possibilitassem uma definição de feminejo. Mas “gente”, “tempo”, “hora” e “verdade” eram apenas as ferramentas para as histórias que as letras contavam. Chequei todas as 54 ocorrências de “amor” e descobri que pelo menos 12 das ocorrências falavam de sexo, como parte da expressão “fazer amor”. Voltei meu olhar para as palavras depois da 10º colocação e respirei aliviada por “cama” finalmente aparecer. Então, com as 12 ocorrências de “fazer amor” e as 11 de “cama”, achei que finalmente estava entendendo alguma coisa.
Na verdade, lembrei de um trecho de Um teto todo seu, no qual Virginia Woolf fala sobre como os valores dos homens prevalecem no romance. “Este livro é importante, a crítica presume, porque trata da guerra. Este livro é insignificante porque trata dos sentimentos das mulheres na sala de pintura”, escreve.
Com isso em mente, volto a olhar para as minhas palavras. Fazer amor é uma das expressões que mais me aborrece enquanto escritora de contos eróticos, mas não deixa de funcionar muito bem para falar de sexo e, como percebemos, tem aparecido com frequência nas letras de feminejo. Talvez esse seja o caminho que as artistas encontraram para começar a falar do desejo feminino, de uma forma ainda um tanto discreta, para não abrir mão de alcançar um público amplo.
Entre as 11 ocorrências de “cama”, sete também insinuam relações sexuais, mas, nesse caso, a cama não funciona apenas como sinônimo. Como se fosse a sala de pintura de Woolf, a cama é o ambiente doméstico, é uma pequena fresta para um olhar feminino. Por exemplo, em Fala a verdade, Maiara e Maraisa cantam “Bagunçou a minha cama e o que é que tem?”, enquanto Simone e Simaria falam para o ex: “O meu lençol tá todo bagunçado, você deixou marcas pra todo lado”. Gosto muito desses dois versos porque eles dão destaque para a bagunça, parecem quase uma queixa. Simone e Simaria, mais explicitamente, também falam de um homem que esquece a toalha em cima da cama ou no chão do banheiro. Por mais que elas estejam dispostas a aceitar esse comportamento na canção Defeitos, prefiro me apropriar dos “bagunceiros” retratados nessas letras para dizer que o feminejo fala de um lugar diferente, parte do lugar de quem arruma a cama, de quem valoriza a casa e desafia até o homem a morar num motel.
O feminino, é claro, não está confinado ao espaço doméstico, mas é a partir da casa, esse lugar que ainda ocupamos mais livremente que outros, que as artistas iluminam a experiência das mulheres. “É curioso que os romancistas nos façam acreditar que os almoços são invariavelmente memoráveis por algum dito espirituoso ou algum feito muito sábio. Mas eles mal dizem uma palavra sobre o que se comeu”, nota Virginia Woolf. Lendo isso, começo a esboçar uma resposta final sobre o que fala o feminejo. Não fala apenas sobre ser traída, rejeitada ou amada por um homem, fala de quem “tá doida pra por o seu moletom”, de quem “chora no colo da patroa”. Fala sobre o que era invisível, o que não tinha registro, mas que não pode mais ser visto como insignificante: a intimidade das mulheres.
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