Quem vê cara, ouve coração? O boom dos documentários musicais no Brasil, por André Barcinski
André Barcinski é jornalista, roteirista e diretor de TV. É crítico de cinema e música da “Folha de S. Paulo”. Escreveu sete livros, incluindo “Barulho” (1992), vencedor do prêmio Jabuti de melhor reportagem. Roteirizou a série de TV “Zé do Caixão” (2015), do canal Space, e dirigiu o documentário “Maldito” (2001), sobre o cineasta José Mojica Marins, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA). Atualmente dirige os programas “Eletrogordo” e “Nasi Noite Adentro”, do Canal Brasil.
Ilustrações por Heloisa Etelvina é artista gráfica graduada em Gravura pela Escola de Belas Artes da UFMG com mestrado em Artes Visuais pela Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. Desde 2005, trabalha com experimentações gráficas utilizando-se de um pequeno acervo tipográfico. Participou de exposições de arte nacionais e internacionais. Garimpando ornamentos de gráficas antigas até ferro-velhos, incorpora as falhas e o improviso para criar estampas e desenhos únicos, ricos em detalhes. Utiliza da linguagem da gravura para construir imagens.
Capa por Ale Amaral – Paulistano e pai da Laura. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e colabora musicalmente com diversos artistas nacionais da cena experimental e de improvisação livre.
Dizem que o Brasil é um país sem memória cultural. Que não valorizamos suficientemente nossos artistas e criadores. Que não nos preocupamos em registrar para as gerações futuras o trabalho de nossos músicos, escritores e cineastas.
De fato, é difícil discordar. Quando se pensa que Jacob do Bandolim, um de nossos maiores gênios musicais, morreu em 1969 e não há um único registro dele tocando, fica evidente o nosso descaso. Ou quando lembramos que só existe uma filmagem de dois minutos de Noel Rosa em movimento.
Não é novidade que nossos arquivos, tanto os públicos quanto os privados, sofrem com falta de verbas. Quantas vezes ouvimos dizer que emissoras de TV apagaram imagens históricas para reutilizar fitas? Ou que coleções de discos, livros e filmes mofam em algum apartamento, porque os donos não têm condições financeiras de cuidar delas? Tudo isso é verdade. Somos mesmo um país que não liga para a memória.
Felizmente, as coisas parecem estar mudando. A transformação ainda é lenta, mas existe. E a prova, pelo menos quando o assunto é memória musical, é o grande número de documentários brasileiros produzidos nos últimos anos.
Uma das maiores vitrines de documentários musicais é o festival In-Edit, que em 2018 completou dez anos de existência. Lendo a programação da mais recente edição, é surpreendente o número de títulos sobre artistas brasileiros. No evento, foram exibidos documentários sobre Zé Rodrix, Jerry Adriani, Tetê Espíndola, Adoniran Barbosa, Arthur Moreira Lima, Ultraje a Rigor, Dona Onete, Lanny Gordin e outros.
Os filmes não tratam apenas de artistas famosos: o In-Edit também trouxe documentários sobre nomes não tão conhecidos do grande público, como a banda paraense Cérebro de Galinha, a violonista Badi Assad, o grupo carioca Black Future e a banda punk capixaba Dead Fish. Também pintaram docs sobre o rock pesado de Pernambuco e a lendária revista de heavy metal “Rock Brigade”.
Esse ecletismo não é só bem vindo, mas necessário. E existe por uma conjunção de fatores, que vão do surgimento de novas tecnologias de captação de imagem e áudio, que baratearam os custos de produção, ao aumento do número de editais e concursos para financiamento de filmes.
O desenvolvimento de novas câmeras de vídeo, com qualidade de imagem e áudio profissional, tornou obsoleto muito dos equipamentos usados até alguns anos atrás. O tamanho do equipamento também diminuiu: se antigamente era preciso carregar luzes em pesados tripés, hoje as lâmpadas de LED facilitam a vida — e aliviam os bolsos. O custo do equipamento barateou, democratizando a produção de filmes e aumentando o número de produções.
O maior entrave ainda é o financiamento. Mesmo que os custos tenham caído, fazer filme não é um empreendimento barato, especialmente filmes musicais, que necessitam adquirir direitos de músicas e imagens de arquivo.
Num recente artigo no site Docmakers, o documentarista Leonardo Brant dá um panorama não tão otimista — embora verdadeiro — do processo de financiamento de filmes:
Os editais públicos são irregulares, inconstantes e inconsistentes em termos de critérios de seleção, abrangência e por serem governamentais e não públicos, não sempre favorecem a liberdade de expressão. O financiamento a documentários costuma financiar uma quantidade muito pequena de filmes, o que transforma o processo numa espécie de loteria. Os recursos demoram muito a sair e via de regra são insuficientes, pois geralmente o documentarista é obrigado a gastar uma parte muito importante dos recursos em constituir uma estrutura administrativa, advogados e prestação de contas.
Para finalizar, os editais são geralmente moldados para satisfazer a estrutura da indústria existente (grandes produtoras, festivais, distribuidoras), que são movimentos que dependem diretamente do financiamento público para se manter, esquecendo assim a criação de novos mercados e colocando travas à inovação. Para nós, documentaristas, fazermos parte desse sistema que depende de recursos públicos não faz muito sentido, já que o recurso que sobra para fazer o documentário é ínfimo. Os nossos filmes não são assistidos por ninguém e ainda ficamos com o produto amarrado por uma série de exigências governamentais e desse falso mercado, o que não nos facilita a difusão e a monetização do produto.
Há também uma questão importante a ser considerada no custo de produção de um documentário musical: o processo de liberação de uso de imagens e fonogramas. A decisão do STF de liberar biografias sem autorização prévia pode ter ajudado escritores e biógrafos, mas não mudou muito a vida de documentaristas, por uma simples razão: é difícil — para não dizer impossível — fazer um documentário musical sem música, e o uso de fonogramas é sujeito a liberações do artista ou de seu espólio. É um processo kafkiano.
Sei disso porque estou envolvido na produção de um documentário sobre um famoso cantor, já falecido, e estamos em meio a uma longa e custosa negociação de obtenção de autorizações de todos os integrantes de seu espólio, incluindo filhos e cônjuge. Se quiséssemos apenas contar a história do cantor, seríamos protegidos pela decisão do STF, mas como necessitamos usar suas músicas, a negociação envolve família e advogados — além de muito dinheiro, claro.
Uma vez terminado o filme, surge outra questão importante: onde exibi-lo? Existe um mercado de exibição para documentários musicais?
Se você é um documentarista e sonha em ter seu doc exibido no cinema, sinto desapontá-lo, mas a chance de isso acontecer é próxima de zero. Cada vez mais, as telas de cinemas comerciais são monopolizadas por grandes produções juvenis (filmes de super-herói, adaptações de quadrinhos, etc.). Uma opção seriam cinemas de arte — se existirem na sua cidade, claro.
Isso deixa duas opções: TV e festivais especializados em documentários.
A segunda opção é a mais divertida, porque é uma chance rara de o documentarista observar in loco a reação ao filme. Mas é uma plateia pequena, restrita ao público do festival.
A maior chance de um documentário musical atingir um público mais expressivo é a exibição em TV ou serviços de streaming. A TV a cabo no Brasil está cada vez mais aberta a esse tipo de produto, e emissoras como Canal Brasil, Bis, HBO, Curta!, Arte1, TV Brasil, MTV, Music Box Brasil e outras costumam incluir docs musicais em suas programações.
Com isso, muitos documentaristas têm feito filmes que se adequam a uma linguagem mais “televisiva”, com narrativas que lembram reportagens jornalísticas de TV. Muitos desses filmes utilizam uma fórmula simples, porém eficaz, intercalando entrevistas e cenas de arquivo. Por outro lado, há uma leva de documentários mais experimentais, que não parecem tão preocupados com o aspecto “jornalístico” e optam por uma estética mais solta.
A programação do In-Edit 2018 traz exemplos dos dois tipos de filme: “Ultraje”, de Marc Dourdin, é um documentário sobre a famosa banda paulistana Ultraje a Rigor. O filme foi coproduzido pelo Canal Brasil, uma das emissoras que mais investem em filmes musicais, e é um produto jornalístico muito bem feito, com dezenas de entrevistas, uma seleção impressionante de cenas de arquivo e fotos, e a evidente preocupação de possibilitar ao espectador conhecer toda a história da banda.
Já “Eu Sou o Rio”, de Anne Santos e Gabraz Sanna, é um filme sobre a cultuada banda carioca Black Future e seu cantor, Tantão, figura conhecidíssima do underground da Cidade Maravilhosa. O filme é como a música do Black Future: estranho e inclassificável; por vezes lúdico, outras vezes agressivo, e sempre experimental.
Os dois filmes são extremos de uma cena documental que parece cada vez mais forte. Nenhum é “melhor” ou “pior” que o outro. São filmes diferentes, sobre artistas diferentes e narrados de forma diferente. Mas provam o ecletismo da nova safra de documentários brasileiros.
Um filme revelador sobre um dos personagens mais fascinantes do pop brasileiro: Raul Seixas, o guru da Sociedade Alternativa, o homem que azucrinou a MPB nos anos 70 com discos místicos e confrontacionais.
A vida de Wilson Simonal é dividida em duas partes: a ascensão, até se tornar um dos maiores sucessos da música brasileira, na virada dos 60 para os 70, e a queda, depois de ser acusado de informante da ditadura militar. Esse filme tenta solucionar o mistério, por meio de entrevistas, documentos e imagens de arquivo.
Gastão Moreira sempre foi um desbravador de sons alternativos, e nesse filme, bancado do próprio bolso, ele conta a importante história da chegada do punk no Brasil. É um trabalho jornalístico de fôlego, com dezenas de entrevistas e cenas de arquivo raras.
Um mergulho na mente brilhante e um tanto perturbada do maluco beleza Arnaldo Baptista, ex-Mutante, fã de discos voadores e de viagens em geral. Ora triste, ora lindo, o filme capta a singeleza da obra de Arnaldo e de sua personalidade única.
O grupo fluminense Gangrena Gasosa criou uma inusitada mistura de punk, metal e música de macumba. Esse filme é como o som da banda: estranho, pesado, bizarro, e 100% independente.
Um filme lúdico e intimista sobre Nelson Freire, gênio tímido e avesso a holofotes. O documentário acompanha Freire em turnês internacionais, e mostra o peso gigante de seu nome no mundo da música clássica.
Curta-metragem sobre o mitológico sambista. É um filme simples, mostrando Nelson em bares e em casa, mas vale pela beleza das imagens (fotografadas por Mário Carneiro) e por ser um dos poucos registros de Nelson Cavaquinho.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.