João Marcos Coelho compartilha sua biblioteca musical e indica cinco pérolas (ou mais) para começar a ler sobre música
João Marcos Coelho é jornalista, crítico do jornal “O Estado de S. Paulo”, colunista da revista “Concerto”, colaborador do suplemento “Eu & Fim de Semana”, do jornal Valor Econômico. Passou pelas redações de “Veja” e “Folha de S. Paulo”, nas quais foi crítico musical. Editou em 2015 o livro coletivo “Cem Anos de Música no Brasil — 1912–2012” (Ed. Andreato) e coordena, há doze anos, o módulo de música contemporânea da CPFL Cultura, em Campinas. Há dez anos produz e apresenta programas na Rádio Cultura FM de São Paulo, tais como “O Que Há de Novo”, “Música Contemporânea”, “CD da Semana” e o “Compositor do Mês”. Para o Selo Sesc, concebeu uma série de livros — DVDs sob o título geral de “O Som da Orquestra”. Assina também a direção artística de vários CDs, entre eles “Cage +” (Selo Sesc); e CD “Radamés Gnattali” (Instituto CPFL).
Capa por Ale Amaral – Paulistano e pai da Laura. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e colabora musicalmente com diversos artistas nacionais da cena experimental e de improvisação livre.
Gostar de uma música, seja ela qual for ou a que gênero pertença, é em primeiro lugar questão de pele. Você ouve uma vez e quer porque quer continuar ouvindo cinco, dez, vinte vezes aquela específica combinação de ritmo, melodia e harmonia que te capturou os sentidos. Assim caminha nossa viagem pela(s) música(s), como abelhas saltando de beleza em beleza. Digamos que este é um consumo inconsciente, porque seleciona sem nenhuma racionalização, entre a multidão de sons que nos bombardeia da manhã à noite, aquilo que nos cativa os sentidos.
O passo seguinte é perguntar-se por que gostamos desta e não daquela música. Aí a questão é racional. Neste momento, estaremos com certeza dispostos a conhecer melhor esta arte tão efêmera, que entra e sai de nossos ouvidos, encantando-nos.
E aí descobrimos que na prática a música não admite adjetivos. Clássica, popular, folclórica, pop — isso faz pouco ou nenhum sentido hoje. Importa mesmo é que na medida da nossa curiosidade — e nós devemos exercê-la sempre, não fugindo de novas propostas e do “desconhecido” — seremos levados a descobertas sensacionais no dia-a-dia do garimpo no tsunami sonoro que nos envolve.
Aí entram os livros, que podem nos ajudar a caminhar com alguma segurança nestes terrenos minados. Dois exemplos:
Descubro, por exemplo, que Shostakovich embutiu a cançoneta “Vamos ao Maxim” da opereta vienense “A Viúva Alegre”, de Franz Lehar, só para sacanear Hitler, que a adorava, no momento em que, em plena Segunda Guerra Mundial, ele compunha sua Sétima Sinfonia numa Leningrado cercada pelo exército nazista. Sabendo disso, com certeza vou ouvir esta obra grandiosa de outro modo.
O sexteto de cordas “Noite Transfigurada” de Arnold Schoenberg, em geral um compositor que mete medo nos ouvidos tradicionais, retrata em sons versos do poeta Richard Dehmel contando o passeio noturno de um casal de apaixonados num jardim vienense: ela diz que está grávida e, antes que o parceiro comemore, acrescenta que é de outro; passam brigando a noite inteira, até que na chegada da aurora ele resolve assumir o filho do outro. Ouço novamente sabendo deste enredo de novela global, com interesse muito maior.
Aos 56 anos, o jornalista e escritor Roberto Cotroneo, nascido em Alexandria, de pais calabreses, sempre fez da música o eixo de seus ensaios e ficção. Em “Presto con fuoco” (Ed. Rocco, 1999), faz um retrato de corpo inteiro do mítico pianista italiano Arturo Benedetti Michelangeli (1920–1995), professor de Martha Argerich (1941), às voltas com as variações sobre a quarta balada de Chopin. Cinco anos depois, a Rocco lançou o delicioso “Carta a meu filho [Francesco] sobre o amor aos livros” onde a música tem lugar de honra e ocupa lugar de destaque no capítulo “Talento”, sobre o pianista Glenn Gould (1932–1982). E, em 2005, a mesma editora lançou no Brasil “Por um longo instante, esqueci o meu nome”, onde Beethoven e o xadrez terçam lanças para ocupar o centro da narrativa. Afinal, que pode haver de melhor do que tocar Beethoven? Esta é a pergunta que frequenta, sorrateira e determinante, cada uma das 294 páginas do romance que se fixa na “Grande Fuga” de Beethoven. Inicialmente concebida pelo compositor como último movimento do quarteto opus 130, foi rechaçada pelos contemporâneos (“difícil demais”). Mas Beethoven recusou-se a mexer nela; em vez disso, compôs outro final mais palatável para o opus 130 e deixou-a como peça isolada. Chamou-a de “Grande Fuga, ora livre, ora rebuscada”. Nela, dois temas de perfil quase idêntico esgrimam durante 741 compassos e terminam empatados. O livro é apaixonante pela adequação de tudo que se diz sobre música: “Os músicos têm o mesmo poder que têm os espelhos. Refletem tudo dos outros. Espelham os sentimentos das pessoas. A música não é nada sem isso, meu rapaz. A música não existe se não lhe passa através do corpo, se não lhe recorda aquilo que você foi e aquilo que será”. Mesmo que, como no caso da Grande Fuga, ela tenha demorado um século para ser corretamente entendida.
uma história para ser lida como romance
A primeira edição, em 1958, saiu pela Zahar e levava o título “Uma nova história da música”. É, sem dúvida, a história da música mais vendida no Brasil desde seu lançamento. Já teve dezenas de edições, as mais recentes pela Ediouro, onde virou “Livro de Ouro da História da Música”.
Otto Maria Carpeaux (1900–1978), autêntico produto genial da Viena das primeiras quatro décadas do século 20, foi um verdadeiro enciclopedista. Estudou direito, química, filosofia, matemática, sociologia, literatura e política — além de música. Chegou ao Brasil em 1939, fugindo do nazismo.
E trouxe na frasqueira um novo modo de ver a cultura em sentido amplo, e a música em particular. Com exceção de Alberto Nepomuceno (1864–1920), que estudou em Berlim, em geral os músicos brasileiros viam em Paris a meca da música na primeira metade do século 20. Isso resultou numa visão afrancesada demais da evolução da música.
Carpeaux revirou isso de cabeça pra baixo. Sua história da música é duplamente inovadora: primeiro, por sua incrível capacidade de escrever de modo direto, sem tecnicismos, o que torna a leitura do livro muitíssimo saborosa; depois, porque suas fontes incluíam, além das francesas, as do universo germânico.
Por tudo isso, é até hoje leitura obrigatória para quem quer conhecer a música num livro que passa longe das chatices do hermetismo acadêmico. Continua válido. E delicioso.
a vida pública e privada dos grandes compositores
Harold Charles Schonberg (1915–2003), nova-iorquino (nada a ver com o compositor austríaco Arnold Schoenberg), dominou a crítica musical por três décadas, entre os anos 1950 e os 1980, como titular do jornal “New York Times”. Em seus livros, usa a mesma linguagem saborosa e ferina de suas críticas, porém sempre com forte embasamento conceitual.
Escreveu livros sobre os maestros e os pianistas (dizem que sua especialidade eram os pianistas). Mas foi com este, sobre os grandes compositores, que Schonberg construiu um painel delicioso e ao mesmo tempo muito informativo sobre 41 grandes criadores e movimentos musicais, de Claudio Monteverdi (1567–1643), o “inventor” da ópera no finalzinho do século 16, ao radical vanguardista Elliott Carter, morto em 2012 aos 103 anos.
De um nome como Georg Frideric Handel (1685–1750), do qual se sabe pouco sobre a vida pessoal, revela que “era extremamente guloso, sua famosa caricatura feita por Joseph Goupy o mostra com a cara de um porco, sentado sobre um barril de vinho e rodeado de comida”. E quando uma soprano recusou-se a cantar uma de suas árias, agarrou-a e ameaçou jogá-la pela janela: “Madame, sei que você é verdadeiramente demoníaca, mas vou provar-lhe que sou Belzebu, o demônio-mor”.
O capítulo sobre Franz Liszt (1811–1886), por exemplo, começa assim: “Se Chopin foi o pianista dos pianistas, Liszt foi o pianista do público — o showman, o Herói, o que manipulava completamente sua audiência”. Um superstar, que quebrava de propósito as cordas do piano para jogá-las às moçoilas fãs da primeira fila, que com elas faziam pulseiras, punha urnas na entrada de seus recitais para o público colocar em papeizinhos os títulos de suas árias e melodias favoritas; na segunda parte, sorteava as músicas sobre as quais improvisava. Dá vontade de parar a leitura pra ouvir este músico tão arrebatador.
encarnando a mente privilegiada dos jazzmen
O inglês Geoff Dyer, 60 anos completados em 5 de junho, pertence à mais refinada linhagem anglófone dos grandes ensaístas contemporâneos. É do tipo que faz qualquer tema tornar-se interessantíssimo. Mesmo não tendo interesse mais específico sobre fotografia, por exemplo, é impossível largar a leitura de “O instante contínuo” (2008, Companhia das Letras), seu livro que cria uma história alternativa da fotografia.
Mas “Todo aquele jazz”, dos anos 1990, permanece sua obra-prima. Ele sabe tudo sobre os músicos e as músicas de jazz — no detalhe. Mas confessa, de saída, no prefácio, que “quando comecei a escrever este livro, não sabia ao certo que forma ele teria. Isso representou uma grande vantagem, pois fui obrigado a improvisar, e assim, desde o começo, meu texto teve como modelo uma das características definidoras do tema”.
Acertadamente, Dyer qualifica seu trabalho como “crítica imaginativa” + ficção. Ele cria versões novas para estórias muito conhecidas, como a do trompetista Chet Baker perdendo os dentes levando uma surra por causa de droga. Ou mesmo inventa cenas a partir de palavras ou frases deste ou daquele músico.
O resultado é que você não consegue largar o livro, pois sente-se como um privilegiado papagaio de pirata no ombro de gigantes como o pianista Thelonious Monk. Ou então — meu texto preferido — o primeiro capítulo, dedicado a uma viagem de carro de Duke Ellington (1899–1974) ao lado de Harry Carney (1910–1974), esteio de sua seção de saxofones por 45 anos, na lendária big band que consolidou o gênero e o fez flertar com o impressionismo de Ravel e Debussy, entre outras façanhas inacreditáveis como os “Concertos Sacros” e as suítes mais extensas, como “Such Sweet Thunder”, estreada em 1957 em festival dedicado a Shakespeare em sua terra natal, Stratford-upon-Avon.
Para não encompridar o texto, termino com uma frase que traduz a sensação exata de se ouvir o som redondo, volumoso, aveludado, sensual até a medula, de um sax-tenor especialíssimo: “Que ninguém, nem mesmo um rei ou um príncipe que tivesse chamado Mozart ou Beethoven para tocar em seu salão, jamais tivera uma experiência musical tão privilegiada ou pessoal como aquela — Ben Webster tocando só para você”.
finalmente uma história legível da música do século 20
O celebrado crítico musical da revista “The New Yorker” Alex Ross, 48 anos, conseguiu o impossível: escrever uma história da música de invenção no século 20 fácil de ler. É a maior virtude deste livro admirável, que troca em miúdos uma história que até agora vinha sendo contada esotericamente, de modo complicadíssimo.
Não é para menos. Mesmo o chamado público especializado, aquele que vai a concertos com regularidade, rechaça em bloco a música produzida no século 20. Com as exceções de praxe. Isto é, ouve e curte Ravel e Debussy na França; Benjamin Britten na Inglaterra; os incríveis russos Stravinsky, Prokofiev e Shostakovich. Por aqui, o máximo de modernidade permitida é Villa-Lobos (e os nacionalistas que lhe seguiram as pegadas, como Francisco Mignone e Camargo Guarnieri).
É um retrato pálido e incompleto do que foi a revolução musical pela qual passou o século. Alex Ross conta esta história de um modo tão envolvente que você acaba interessado em ouvir mais música de hoje.
Como ele faz esta mágica impossível? Adotando uma perspectiva inclusiva. Ou seja, Ross explora os vasos comunicantes entre a chamada grande música do século (que rompeu com a tonalidade e deu as costas ao público) e as músicas ditas de consumo de massa. Assim, por exemplo, ele destaca a parceria de Frank Zappa (194–1993), ícone do pop radical, com um dos mais radicais compositores, o francês Pierre Boulez (1925–2016).
Seus artigos na “New Yorker” ajudaram a consolidar o prestígio de um compositor como John Adams (1947), sujeito inteligente o suficiente para pegar grandes temas atuais como assunto de suas óperas. A histórica viagem de Nixon ao encontro de Mao Tsé-Tung, na China, em 1972; ou A morte de Klinghoffer, turista americano cadeirante que foi assassinado por terroristas italianos no navio Achille Lauro, em 1985; e mesmo Doutor Atômico, sobre o dilema de Oppenheimer e a bomba atômica.
Este tipo de obra contemporânea cria um ponto comum com o mundo no qual vivemos hoje. E por isso leva chance de se integrar melhor à vida musical.
Se, depois de ler “O resto é ruído” você ficar muito entusiasmado com Alex Ross, não deixe de ler uma coletânea de seus melhores artigos para a mesma “New Yorker”, que a Companhia das Letras lançou aqui em 2011: “Escuta só”.
contra a virtuosidade, vício da vida musical
Mário de Andrade (1893–1945) fez questão de espraiar seu talento caleidoscópico por todos os setores da vida cultural brasileira.
Mas sempre manteve como núcleo mais forte de seu interesse a música. Melhor para nós, que podemos ler gemas como o pequeno e precioso volume “Sejamos todos musicais”, reunindo, pela primeira vez em livro, as 22 crônicas escritas entre agosto de 1938 e junho de 1940 para a “Revista do Brasil”, período em que morou no Rio de Janeiro.
Continuam atualíssimos seus temas, como a cruzada permanente contra os virtuoses (seus lemas eram “o princípio mesmo da grande virtuosidade é um vício, uma imoralidade” e “a alta virtuosidade se desencaminha e principia a ter a sua finalidade em si mesma”).
Mas estes quase três anos em que viveu no Rio lhe dão novas certezas. Contrapõe ao doentio culto ao solista e ao virtuose a opção pelo coletivo. Em vez de produzir solistas, a arte precisa aspirar ao coletivo. Daí a comovente crônica, por exemplo, sobre um coral de crianças na Escola Nacional de Música: “O simples fato de acostumar essas crianças, ainda facilmente moldáveis ao exercício coletivo da música, é um grande golpe na falsa virtuosidade que ainda domina entre nós”.
Nascidas logo depois de sua demissão do Departamento de Cultura paulistano, as crônicas acariciam suas crias à distância. Na quarta, de novembro de 1938, lambe as feridas ainda abertas, sangrando. “O correio, suculento de invejas, me traz semanalmente os programas dos concertos fonográficos que realiza, em São Paulo, a Discoteca Pública do Departamento de Cultura… Não há um dó-de-peito. São sempre obras importantes, na sua maioria difíceis de serem executadas entre nós”. Criação sua, como, aliás, todos os corpos estáveis do Teatro Municipal de São Paulo: a orquestra, os corais Lírico e Paulistano, o quarteto de cordas, a Discoteca Pública Municipal. Estruturas centrais da vida musical de Sâo Paulo até hoje.
Dá e provoca muitas risadas no hilário “O mundo da musicologia e da ciência”, onde, após comentar pesquisas médicas sobre a surdez de Beethoven, confessa que “uma bela manhã, senti nos ouvidos um ruído singular, um ronquido longínquo, e não sei que anjo danado da vaidade me segredou que eu estava destinado a sofrer a mesma doença de Beethoven”. O doutor foi enfático: era cera no ouvido. “Saí do consultório com ouvidos ótimos e, palavra de honra, bastante desligado de Beethoven, julgando-o já com menos adoração e maior clarividência. Não durou um mês e eu já comentava em voz alta e mesmo com certa maldade, defeitos e cacoetes do sublime surdo”.
Há livros interessantes, que ainda não foram traduzidos nem lançados no Brasil, mas valem a indicação:
“De Madonna al canto gregoriano — una muy breve introducción a la música”, de Nicholas Cook (Alianza Editorial,2006): uma introdução diferente à música, ou melhor, às músicas todas que tenham um mínimo de invenção. Não só a “grande” música clássica, mas, em pé de igualdade, também o jazz, o pop e o rock.
“Chiedimi chi erano i Beatles. Lettera a mio figlio sull’amore per la musica”, de Roberto Cotroneo, Oscar Saggi Mondadori, 2005: nesta comovente e inclusiva “carta a meu filho sobre o amor à música”, de 119 preciosas páginas, desfilam Mozart, Beethoven, Chopin e Brahms, mas também John Lennon, Nino Rota e Keith Jarrett.
“La valeur des Beatles”, de Laurent Denave, Presses Universitaires de Rennes, 2016 — Os Beatles são os Schuberts do nosso tempo, dizia o maestro Leonard Bernstein. Denave, como bom musicólogo francês, faz uma análise exaustiva da obra gravada dos FabFour. E descobre coisas como esta: em “Within you whithout you”, George Harrison respeita integralmente as regras da música indiana: a introdução livre, em pulso, com tampuras — depois ele usa tablas para marcar o tempo. Aqui também há um acompanhamento de 8 violinos e 3 cellos. A música indiana não é harmônica, canta-se em uníssono e Harrison também respeita este princípio: os instrumentos dobram as notas da melodia vocal. E em “Good morning Good morning”, há “ruidismos eletrônicos” e até sons de animais à la Hermeto Pascoal: galo, cavalos, gato, cachorro e pássaros.
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