Escutar a Argila: respeitar a mais velha 

19/11/2024

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Texto de Renata Felinto para a exposição Ofício: Barro: Gabriela Marinho: Argila-Griô: Pompeia exibida entre os dias 13 de agosto e 8 de dezembro de 2024.

Por entre causos, crônicas e histórias, é passível de se escutar a Argila. Das participações nas quais foi protagonista na elaboração das cosmogêneses de muitas civilizações, cedendo a sua malemolência à elaboração de uma multiplicidade de formas; adquirindo perenidade na confluência com o seu parceiro, o Fogo; e fornecendo à humanidade meios de permanência e desenvolvimento, entre muitos outros feitos que podemos descobrir.  

Há milênios, a Argila tem sido a base de inúmeras narrativas, visto que, generosamente, ela se tornou matéria e instrumento nas mãos de diferentes povos, refletindo as cores das terras habitadas, das gentes que nelas vivem e dos barros que auxiliaram essas pessoas a erigir comunidades, reinos e impérios. 

Inexistem progressos de agrupamentos humanos que não envolva a presença da Argila na criação de objetos ritualísticos, utilitários, decorativos, artísticos e arquitetônicos. Os mais antigos registros arqueológicos que atestam a inventividade humana por meio de técnicas de manejo da linguagem cerâmica datam de 26 a 29 mil anos atrás. Entre essas inventividades, destaca-se a Vênus de Dolní Věstonice, a mais antiga estatueta representando uma pessoa com vulva. 

O termo “Vênus” é adotado pela arqueologia para designar figuras femininas, geralmente associadas a rituais de fertilidade, procriação e encontro carnal. A Vênus de Dolní Věstonice mede 111 milímetros de altura por 43 milímetros de largura e foi encontrada no sítio arqueológico de mesmo nome, na República Tcheca.  

A diminuta modelagem é um testemunho das primeiras representações de figuras humanas, sintetizando formas e evidenciando atributos físicos relacionados à geração e manutenção da vida, como a vulva, o ventre e os seios, mas sem valorizar a fisionomia, pois possivelmente sua produção possuía finalidades simbólicas sagradas, não se tratando de um retrato fiel.  

Além de suas propriedades metafísicas e alegóricas, uma peça como essa também representa um vestígio civilizatório que demarca o desenvolvimento e o aprimoramento de tecnologias nascidas da sapiência obtida pela observação e experimentação do que nos oferece o mundo natural; aprendizado obtido e reunido ao longo de milênios de exercício em diferentes geografias e culturas. Esse conhecimento denota o aprimoramento técnico que encontramos na confecção de peças por placas, acordelamento com rolos e modelagem via torno. 

Escutar a Argila acerca desse fluir na história requer tempo e, portanto, disponibilidade para saber desses eventos, que revelam um significativo legado epistemológico fundado nas terras do mundo.  

A Argila se oferta às necessidades humanas e solicita humildade ao ser escolhida como material nos processos de criação artística, pois, para descobrirmos as diferentes qualidades e técnicas dessa linguagem, são necessárias paciência e sensibilidade. 

Por vezes, não se trata de uma simples seleção, e sim de uma convocação atávica que ressignifica nossa relação e entendimento com a historicidade. Isso nos realoca no exercício biográfico e, consequentemente profissional, conferindo outros sentidos às vivências que nos constituem.  

Reexaminar a história mediada pela Argila – impulsionada pelas lentes advindas da leitura do livro Luuanda, de José Luandino Vieira, escritor português radicado em Angola – transportou a artista visual e educadora fluminense Gabriella Marinho para suas experiências da infância e juventude. Durante sua especialização em Literaturas Afrikanas, seu interesse voltou-se para a autoria angolana na arte das letras. Na obra literária mencionada, Vieira apresenta três histórias que orbitam em torno dos musseques, palavra derivada do kimbundu, kimbundo ou quimbundo, segunda língua mais falada em Luanda, capital de Angola, cujo significado é “terra vermelha”. 

Os musseques são bairros periféricos similares às favelas brasileiras, que passam por um moroso projeto de urbanização após a guerra civil angolana, iniciada depois da conquista da independência de Portugal, conflito interno que perdurou de 1975 a 2002.  

A terra vermelha onde a população organiza  suas moradas vulneráveis em Luanda assemelha-se à terra vermelha também existente em muitas localidades fragilizadas Brasil afora, revelando um contexto de vida precarizada que denuncia as falhas da proposta colonial nos territórios invadidos e explorados pelos europeus.  

Essa terra vermelha, exposta aos olhos em vez de estar coberta por asfalto, cimento ou outra engenharia de pavimentação, na perspectiva desenvolvimentista, representa o atraso e a pobreza nesses locais onde as promessas da modernidade não foram exitosas. A poeira vermelha proveniente do barro que recobre os pés de quem caminha por esses territórios; que demarca as partes inferiores das edificações; que reveste as superfícies das mobílias; e que penetra na pele e nos poros das muitas gentes que circulam por esses ambientes, por muito tempo, foi sinônimo desse fracasso social, que, em verdade, foi cruelmente planejado para não contemplar essas pessoas. Dessa maneira, uma parcela considerável da população é mantida na constante iminência do colapso, suscetível a inúmeras adversidades em sua luta pela sobrevivência. 

A modernidade atribui um caráter negativo à terra visível nos espaços que se pretendem urbanizados e às pessoas que se deslocam desses locais para regiões melhor equipadas segundo a noção de civilização ocidental. O termo “pé de barro” sintetiza os estigmas inerentes a quem tem os pés marcados pela coloração vermelha da terra em que caminha para frequentar áreas mais centrais. 

O barro vermelho, em vez do asfalto preto, é muito comum em complexos habitacionais carentes de infraestrutura básica, como a pavimentação. Contudo, viver em locais com essa característica, que sinaliza a ineficiência do poder público e o descaso com populações não brancas, também permite outras formas de convivência e de confluência. 

Se nos perímetros urbanos os resquícios da natureza são controlados para se manterem na dimensão decorativa, é nas comunidades periféricas com chão de terra vermelha que se torna possível manter pequenos roçados, criar animais domésticos de menor porte, cultivar ervas medicinais que curam o corpo e o espírito e brincar com bolo de barro decorado com pétalas de flores e sementes de plantas.  

Nesses lugares, onde vivem as populações remanescentes misturadas às que foram forçadas a migrar para as metrópoles, a falta de comprometimento do projeto de modernização junto a essas comunidades é também a fresta que permite a preservação de tradições, hábitos e culturas.  

O cenário do desenrolar das histórias fabuladas por José Luandino Vieira, ambientadas nos musseques, reflete o cotidiano dessas coletividades que, embora tenham seus enfrentamentos em relação a acessos básicos, convivem esperançosas de melhorias vindouras, contribuíram na recondução de projetos de vida de Gabriella Marinho, especialmente no que se refere à sua vida profissional. 

Memórias do trabalho de modelagem com as mãos, que realizava junto de sua mãe, tia e avó, não com barro, porém com o biscuit, uma espécie de massa também conhecida como “porcelana fria”, também são tributárias das reflexões e redefinições que se deram tendo essa leitura como um marco divisor. 

Nascida no Jardim Catarina, na cidade de São Gonçalo, na Grande Rio de Janeiro, formada em Comunicação com ênfase em Jornalismo, Gabriella Marinho foi mobilizada pessoalmente pelo contato com uma obra que destaca o território como marcador de identidade cultural, reconectando-a às suas vivências familiares no trato com a artesania desenvolvida pela linhagem materna como trabalho a ser comercializado.  

Essas conjunções de novos saberes e velhas lembranças despertaram Gabriella Marinho para a sensação da matéria moldável entre as mãos, para o prazer do reencontro consigo mesma e para a importância do território onde nasceu e foi criada em sua formação como pessoa. Nesse processo de reconhecimento de seus anseios, ela passou a estudar desenho – uma linguagem que a acompanha desde menina – e, por meio dele, religou-se à modelagem, substituindo o biscuit pela Argila. 

Intuindo esse percurso, a artista optou por manejar a sua relação com a Argila orientando-se pelos desafios que surgiram durante o processo e aprendendo organicamente as técnicas próprias dessa linguagem ancestral, conforme seus interesses a direcionavam. Como artista-educadora-pesquisadora, ela sistematizou as etapas de aprendizagem que lhe conferiam o domínio dessa tecnologia, a fim de, através dela, elaborar conceitos e formas para as obras que vem desenvolvendo. 

Gabriella Marinho acolheu como motes criativos suas memórias afetivas somadas à herança artística advinda das mulheres de sua família. Em outras palavras, ela incorporou em seu fazer a educação informal, tão presente nas formações de pessoas não brancas. Ela também reconheceu seu território como uma extensão dos musseques angolanos, dentro de um contexto colonialista e afro-diaspórico. 

Esse desdobramento foi acionado através de ponderações em torno de marcadores e conceitos sociais como raça, classe, gênero, localidade, pertencimento, vivências que a reacomodaram no mundo, proporcionando-lhe uma compreensão holística de sua existência. Consequentemente, isso abarcou o seu horizonte profissional, que se consolidou como um labor de criação artística, mas também como uma devolutiva à sua comunidade, ministrando cursos nas escolas do entorno. 

Entre essas rememorações biográficas que fortalecem a sua consciência de si e a observação de seu percurso, identificamos, primeiro no desenho e depois na literatura, as linguagens mediadoras do encontro de Gabriella Marinho com a Argila. Nesse contexto, Gabriella Marinho mobilizou-se a coletar, investigar e experimentar diferentes qualidades de terras, sistematização que adotou por volta de 2017, construindo, dessa maneira, um repositório de solos. 

Simultaneamente a essa metodologia, a artista visual notou que não era apenas a terra vermelha, constantemente mencionada pelas personagens do livro Luuanda, que tinha uma constância em sua história; essa aproximação também residia nas menções ao mar e aos trânsitos que permitem conhecer outras territorialidades.  

A respeito desses deslocamentos, é preciso citar também aqueles feitos à revelia, como os de nossos/as antepassados/as na travessia involuntária do Oceano Atlântico entre os século 16 e 19. Por entre as terras firmes provedoras e do mar salgado lacrimoso, estão presenças imateriais e ausências materiais de recontos que escutamos e daqueles que não restaram vozes capazes de contar. Encontramos nesses estados sólido do solo e líquido do oceano o surgimento de outro estado: o da lama, do barro, que nos permite moldar outras narrativas. Finalmente, estão dadas as circunstâncias que, solene e intuitivamente, guiaram Gabriella Marinho nesse modelar matriarcal presente em sua biografia, decifrando os interditos que a Argila carrega juntamente com tudo o que está dito. 

Exercitando a deferência que as cosmologias de África congregam a quem veio antes de nós, Agô (2021) é uma obra instalativa de Gabriella Marinho, sendo a primeira de suas produções a obter reconhecimento da crítica de artes visuais. A despeito dessa adesão, observamos nesse trabalho a reunião de elementos conceituais, históricos e estéticos que anunciam uma produção implicada com a afrocentricidade. 

“Agô”, no idioma iorubá, língua falada na Nigéria e em outros países da África Ocidental, significa um pedido de licença para entrar, sair ou passar. Sobretudo, pede-se  agô ao nos dirigirmos a pessoas mais experientes, com mais tempo de vida na terra. A palavra é muito utilizada nos ilês, que são as casas, terreiros ou roças de Candomblé Ketu, de rito Nagô.  

Essa obra é, pois, o pedido de licença da artista visual para iniciar seu processo de reorientação e restauro corpóreo e espiritual, por meio do manuseio desse estado de envolvimento que a Argila proporciona; um estado físico de granulação fina, cuja plasticidade nos permite desvendar e nos beneficiar de seus muitos propósitos. Também, a Argila ecoa em sua matéria as falas emudecidas de quem ficou no mar, bem como reincorpora os corpos restituídos à terra.  

Agô revisita o princípio do emprego da Argila como uma matéria que nos acompanha desde as primeiras modelagens ritualísticas, como já mencionamos, atendendo a diversas demandas humanas e aderindo aos nossos anseios imaginativos e criativos. A instalação é formada como um mural de 384 peças modeladas individualmente como búzios, dispostos de frente e alinhados, imbuídos de sentidos históricos, culturais e filosóficos.  

Os búzios, que são carapaças calcárias que protegem moluscos, possuem importância incontestável para as populações de África Ocidental. Já foram utilizados como moeda em transações comerciais nessa região entre os séculos 11, antes da nossa era, e o19, sendo comumente nomeados também como “cauris”. A partir dessa acepção que denota valor financeiro, também adornavam penteados feitos em tranças, conferindo beleza, indicação de prosperidade e riqueza a quem os detinha nos cabelos. Essa espécie de concha também é instrumento na consulta ao Ifá, um oráculo que traduz as mensagens do orixá Orunmilá e de demais divindades que precisem se comunicar com a pessoa consultante. 

A instalação Agô foi produzida com Argila cozida, sem esmaltações e vidrados, que são camadas de vidros e cristais moídos que servem à ornamentação e proteção das peças de cerâmica. A maioria das peças de Gabriella Marinho segue esse procedimento, tornando-se uma característica do seu trabalho, e aproximando-o de um uso mais frugal da Argila, visto em culturas antigas adeptas da terracota. Esse cozimento em temperaturas mais baixas pode ser efetuado com a utilização de engobes, que são proteções e colorações realizadas com as próprias argilas, remontando às primeiras tintas naturais e decorativas feitas para cerâmica. 

Com o Agô solicitado, a produção de Gabriella Marinho prossegue ora como objetos tridimensionais, ora como experimentos bidimensionais, como na série Caminhos (2021-2024). Tal série sintetiza a vasta investigação sobre as tipologias de terras iniciada em 2017, experimentando a aplicação das mesmas sobre painéis de PVC. É possível visualizarmos as muitas texturas e particularidades de cada amostra, considerando as que ao secarem, ficaram mais uniformes e as que craquelaram como os solos que passam pela estiagem, além dos desenhos intencionais traçados pela artista. 

Caminhos apresenta a aplicação da Argila como tinta de pintura, que é o mesmo emprego que Gabriella Marinho confere à obra Chão de barro seco quando bate o vento e muda toda terra de lugar (2023). No centro dessa pintura com barro sobre PVC, há um monte de Argila rachada que alude às intempéries climáticas e às transformações anunciadas pela secura da terra.  

Ainda acionando a linguagem da pintura, contudo agora como uma crítica à supremacia ocupada por essa linguagem no sistema da arte, a obra Engoma (2017-2024) à distância adquire características de pintura. Todavia, ao nos aproximarmos, identificamos sua tridimensionalidade. O fragmento de tecido em algodão é estendido por ganchos sobre a superfície e saturado em lama, sendo moldado pela própria gravidade.  

Nesse ínterim, Gabriella Marinho experienciou duas residências artísticas, a primeira em Taipei, Taiwan, pela 0101 ArtPlatform em colaboração com a Treasure Hill Artist Village, no ano de 2022, propiciaram-lhe a ampliação da escuta da Argila como linguagem incorporada por civilizações autóctones desses territórios. A segunda em Luanda, Angola, pela MOVART, em 2023, tendo a possibilidade de conhecer pessoalmente não apenas as técnicas de cerâmica da região, mas também os citados mussenques e seu contexto. Ambas as residências, expandiram-lhe a percepção de multiplicidade do uso do barro em diferentes culturas e contextos, evidenciando a complexidade das queimas de terracota até as de porcelanas, como as faianças. 

A partir dessas duas experiências internacionais, Gabriella Marinho elaborou a série Cobogós (2023-2024), ainda em Luanda, composta de cinco peças que indaga acerca do caráter industrializado desse elemento vazado presente em muitas construções. Seja feito de cimento, seja feito de barro, o cobogó segue uma rigidez em seu feitio, realizado por meio de moldes. A série Cobogó propõe a rebeldia da Argila, que assume as imperfeições do fazer manual, destoando do ordenamento linear encontrado na arquitetura desse elemento, seja em Luanda, seja em outros lugares. 

Em sua estadia em Taipei, irrompeu a obra Sanasay (2022-2024), medalhas que são produzidas na região e que em seu centro carregam miçangas. Esse formato a estimulou a modelar várias peças semelhantes a essas medalhas, que, conquanto tenham dimensões aproximadas, não são idênticas. Novamente, isso circunscreve a manualidade como um princípio que é incontornável no seu relacionamento com a Argila. É a irregularidade de cada um dos componentes moldados e os intervalos entre eles que conferem leveza e fluidez à composição.  

Esse diálogo com a Argila e com sua aplicabilidade em diferentes tempos e espaços tem sido extremamente frutífero na concepção das obras de Gabriella Marinho. Ele resgata, inclusive, o barro enquanto solução de refrigeração em construções, como na obra Respiro (2024), composta de vários cilindros extensos que, agrupados e empilhados, formam uma parede filtra o ar, funcionando como um ar-condicionado que dispensa energia elétrica. Existem evidências da eficácia desse recurso em áreas da Índia, nas quais ele é tipo como uma sabedoria antiga.  

O aprofundamento técnico da artista-educadora-pesquisadora está muito bem representado por trabalhos que didaticamente trazem às vistas a sapiência dos procedimentos cerâmicos, como na obra Acordelar (2024), que enfatiza os acordelamentos como método de sua concepção. Do mesmo modo encontramos um vaso cerâmico que é a obra Desenho topográfico (2022-2024) cuja superfície possui uma composição sinuosa em baixo relevo que alude às topografias dos terrenos. Ainda nesse rumo, há a peça Mosaico (2024), uma composição realizada com diminutas unidades cerâmicas pintadas com engobes. 

A evidência do saber usar a Argila e a intimidade das mãos com a palpabilidade da linguagem, por vezes, divide a centralidade com obras em vídeo-performance ou instalações imersivas, anunciando o interesse da artista por experimentar outros suportes, como na obra Com o coração na mão (2017), uma vídeo-performance que trata das tensões às quais o povo preto afro-diaspórico está submetido diariamente decorrente do racismo estrutural, e como essa sensação de instabilidade psicológica e emocional reflete nos corpos das pessoas. Entretanto, o peso do coração de argila que Gabriella Marinho segura gentilmente nas imagens desse trabalho é uma metáfora para a densidade do afeto preservado nos corações das pessoas negras, ainda que micro e macro violências que espreitam essa valorosa e sensível resistência.  

Sentimentos e sensações compõem o aparato poético dos trabalhos em exibição, sobretudo na instalação imersiva multimídia Ecoar/Ressoar (2024), que dispõe de placas cerâmicas onduladas de 40 cm de altura e 10 cm de largura, objetivando criar uma vibração que remeta o público visitante aos movimentos e emoções proporcionados pelo mar.  

Ainda que a pesquisa de Gabriella Marinho esmere-se à pluralidade de finalidades da Argila e à historicidade dessa substância, é de extrema pertinência que a artista   circule por suportes diversos. Dessa forma, ela questiona a hierarquia e delimitação de linguagens, uma vez que, equivocadamente, a produção com Argila frequentemente vista como restrita e não pertencente à contemporaneidade das artes visuais.  

Dado esse panorama, a primeira exposição individual da artista em São Paulo, Ofício: Barro: Gabriella Marinho: Argila-Griô concebida para o galpão de Oficinas de Criatividade do SESC Pompeia, busca verter e explicitar a incumbência assumida pela artista-educadora-pesquisadora, de posicionar a cerâmica e seus desdobramentos como uma potente expressão da arte do passado e do tempo presente. Logo,  são apresentados  26 trabalhos, criados a partir de 2017, que nos permitem adentrar aos processos criativos geradores de uma poética genuinamente afro-referenciada urdida por Gabriella Marinho, acrescida à exaltação da importância incontornável e versátil do barro. 

Se as primeiras conformações históricas concebidas para Argila tiveram as formas voluptuosas e abundantes de mulheres denominadas Vênus como cerne,  tal qual a Vênus Dolni Vestonice, reverenciando esse corpo generoso que contém o ventre como órgão-portal que concebe, acolhe e confia ao mundo cada ser humano, é reconhecendo o viés afro-orientado das cosmogêneses que Gabriella Marinho acrescenta outra perspectiva aos mitos de surgimento, e de seu surgimento como a artista-educadora-pesquisadora cujos trabalhos integram Ofício: Barro: Gabriella Marinho: Argila-Griô. 

Em O Nascimento de Nanã, 2018, obra em terracota coexistem a alusão à Vênus Dolni Vestoniceque, e a dissensão como o estabelecimento do panteão iorubano como  origem e marco civilizatório, que anunciam outros valores comunitários a serem cultivados. Na reimaginação do itã feita por Gabriella, é a própria Nanã que nasce da lama, transcendendo o papel do barro cedido por Nanã à Oxalá para que o orixá da criação modelasse os seres habitantes da terra, predizendo a soberania da lama dentre as demais matérias, o princípio que resultando do solo, se recria, se remodela desde o mistério de todos os tempos. Por fim, Agô, pediu permissão para a manipulação dessa matéria-prima e, O Nascimento de Nanã, consagrou e instaurou outra verdade original que converge com valores africanos e afro-diaspóricos que são caros ao nascimento da artista-educadora-pesquisadora Gabriella Marinho.  

Ofício: Barro: Gabriella Marinho: Argila-Griô revisita e restitui às tradições do barro, em suas muitas versões imaterial míticas e material artísticas que são convergentes, e não divergentes, o lugar de reverência, pioneirismo e atemporalidade que deve ser assegurado pelas narrativas históricas acerca da humanidade ao tratarmos dessa substância. Juntamente a isso, nos convida a testemunhar sobre a perenidade da Argila no campo da criação artística tendo como elo as obras de Gabriella Marinho, que por sua vez, nos cativam à escuta dessa Senhora Argila, cujas virtudes atuam no mundo, anteriormente à consciência da nomeação do mundo e do que há nele, de um tempo em que tudo era barro.  

Por Renata Felinto 
Junho 2024 


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