Leonardo Lichote apresenta Lugar Comum de João Donato
Leonardo Lichote é jornalista. Como repórter e crítico musical do jornal O Globo desde 2001, entrevistou e assinou reportagens com grandes nomes da música popular brasileira, como Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Djavan, João Bosco e Dona Ivone Lara. Assina o texto final do livro “Minha fama de mau” (Objetiva), com memórias de Erasmo Carlos. É autor dos textos críticos que acompanham a caixa de Chico Buarque “De todas as maneiras” (Universal), que contém os 22 primeiros discos do artista. Trabalha numa biografia de Elke Maravilha. Integra o júri do Prêmio da Música Brasileira e do Prêmio Multishow.
João Donato era menino quando ouviu, às margens do Rio Acre, uma melodia assobiada por um homem que seguia o leito numa canoa. Nunca esqueceu aquelas notas. A partir delas, anos depois, ele comporia “Índio perdido”, que posteriormente ganhou versos de Gilberto Gil, tratando exatamente da transcendência que inspira quem está à beira d’água. Era “Lugar comum”: “Beira do mar/ Lugar comum/ Começo do caminhar/ Pra beira de outro lugar/ Beira do mar/ Todo mar é um/ Começo do caminhar/ Pra dentro do fundo azul”.
A canção abre e batiza o disco de 1975 de Donato. O disco que escolhi para esta seção — não sem dificuldade, frente aos milhares de recortes possíveis, aos milhares de discos que se entrelaçam na minha história, do mais íntimo ao mais universal. Mas quando “Lugar comum” (que bateu em mim aos 20 e poucos e não saiu mais) brotou como possibilidade, ele se afirmou com a força da obviedade, a clareza de síntese que sustenta a própria música de Donato — alguém que pode ser reconhecido ao tocar apenas uma nota no piano, como certa vez me disse seu parceiro Moacyr Luz.
Vejam só “Lugar comum”, a canção, por exemplo. Saber da história do homem no Rio Acre me afetou não por ela ter revelado sentidos ocultos da canção — mas, ao contrário, por ela corresponder a tudo que a canção projeta, por ser reconhecível nela. Noutras palavras, não faz diferença sabermos do rio, do menino, da canoa, porque quando ouvimos “Lugar comum” estão lá, nas notas de Donato e nos versos de Gil, o rio, o menino, a canoa.
O mergulho no rio, no menino, na canoa, vai ainda mais fundo. Lançada no espaço, pra beira de outro lugar, “Lugar comum”, o disco, é capaz de explicar um bom tanto dessa bola azul povoada de 7 bilhões de pessoas a um extraterrestre. O sumo. As cinco notas de “Contatos imediatos do terceiro grau” na vida real são de Donato.
Falar de um disco é quase sempre menos do que ouvir um disco — e isso fica mais evidente neste esforço verborrágico frente à precisão (novamente) de síntese de Donato. E mesmo do Gil parceiro de Donato — no caso desse disco, em oito canções. Compositor e pensador famoso por não economizar palavras, frente às notas de Donato o baiano é tropical-minimalista. “Tem, tem, tem/ Sempre tem/ Tem, tem, tem/ Jeito tem”, escreve ele sucinto, monossilábico, sobre o suingue cubano de “Tudo tem”. A faixa prepara o terreno pra outra dos dois, a funk-lisérgica “A bruxa de mentira”, reafirmando aquele menino da beira do rio flutuando entre a inocência infantil e estados alterados de consciência, em meio a imagens como “neném rapadoçura” e “esdrúxula figura”.
Nessa altura do disco, você só quer sorrir menino e sentir no rosto a umidade da margem do Rio Acre. “Ê menina”, “Xangô é de baê” e “Emoriô” são o rio Atlântico, esse que liga África e Brasil — da ancestralidade mais funda de tambor às conquistas mais fundas dos arranjos da bossa nova instrumental, as duas suspensas num não-tempo, sem hierarquia de passado e futuro. “Bananeira” eu não sei, sei lá, sei não, isso é lá com você. A árvore da iniciação sexual dos meninos do mato, o fruto do Éden tropicalista, o ícone caricato do Brasil de Carmen Miranda — amarrados sob o chamado do corpo e da mente pra se soltar no meio daquela conversa de sopros, suingue mãe e pai de tudo.
“Patumbalacundê” comprova, com o esperanto da onomatopeia. “Pretty Dolly” vai pro inglês — o antiesperanto ou o überesperanto — pra reafirmar a infância, na menina que dança e no menino Donato que a traduz numa melodia que podia ser de cantiga de roda. “Naturalmente” aponta pra outro norte, Belém (“Achar a forma para a flor/ Naturalmente para Deus”, nos versos de Caetano). “Que besteira” é molecagem musical das mais sérias — e papo (quase) reto de quem aconselha quem fez a besteira mas quase se solidariza (“Pois eu/ Também/ Já fiz”).
“Deixei recado” é despedida: “Falei do tempo/ Falei do fogo/ Falei da dor/ Agora calo/ Calço o chinelo/ Reparo a flor/ (…) Deixei recado/ Voltei cansado/ Vou descansar”. A agulha para. O streaming impertinente chama a próxima no automático porque o corre é louco, o fluxo é intenso, 2019. Mas no vinil ou no shuffle, terráqueo ou ET, nenhum ser se banha duas vezes no mesmo Rio Acre de Donato, começo do caminhar pra dentro do fundo azul.
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