Batucando frigideira ou bateria de soldado, o caçador de orelhas nas tintas de Jotabê Medeiros
Jotabê Medeiros é jornalista e escritor, autor de O Bisbilhoteiro das Galáxias (Lazuli Editora, 2015, finalista do Prêmio Jabuti de Literatura) e Belchior — Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017). Repórter da área cultura há 32 anos, trabalhou na Folha de S. Paulo, Veja SP, O Estado de S. Paulo (onde foi correspondente em Nova York em 2004–2005) e é atualmente editor de Cultura da revista Carta Capital.
Capa por Ale Amaral – Paulistano e pai da Laura. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e colabora musicalmente com diversos artistas nacionais da cena experimental e de improvisação livre.
Em mais de seis décadas de profissão, o percussionista, baterista e compositor Robertinho Silva tocou com Caetano Veloso, João Donato, Tom Jobim, Egberto Gismonti, Lee Morgan, Flora Purim, Raul de Souza, Sarah Vaughan, Hermeto Pascoal, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gal Costa, Bud Shank, George Benson, João Bosco e mais uma centena de outros artistas daqui e de outras esferas. Ele é do tempo em que Dominguinhos ainda era conhecido como Neném do Acordeon.
Sabe aqueles sons de cascavéis da gravação da música Certas Canções, de Milton Nascimento? É Robertinho na bateria (ele ficou 26 anos ao lado de Milton). Sabe O Trem Azul, de Lô Borges? É Robertinho na bateria. Palhaço, de Egberto Gismonti? Flor de Maracujá, de João Donato? Robertinho, Robertinho, Robertinho.
No final dos anos 1960, integrou o mitológico grupo Som Imaginário, que tinha Wagner Tiso, Luiz Alves, Frederyko, Zé Rodrix e Tavito. Em 1964, Robertinho foi levado para tocar com Cauby Peixoto na Boate Drink. Era um menino caminhando numa Terra de Gigantes.
“Esse preconceito com a percussão vem desde 1900 e antigamente. O que é isso? Um neguinho tocando frigideira? Era tanto que eu tinha vergonha de tocar na Zona Sul do Rio.”
Enfim: aos 77 anos, Robertinho já possui uma folha corrida de feitos notáveis na MPB tão grande que nem precisaria falar sobre ela. Sua fama o precede. Mas acontece que ele também transformou a perambulação pelo mundo da música em uma espécie de aula-show, um aprendizado em movimento tão divertido quanto aquele que o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna manteve durante sua existência.
“Sou caçador de orelhas, falo pra caramba!”, avisa Robertinho Silva antes de iniciar sua conversão de plateias.
O jeito de Robertinho contar sua história é feito de breques e viradas improváveis, de gargalhadas exorcizantes e revelações imprevisíveis. E muito ritmo. Em algum momento de suas aulas-show, Robertinho se senta e toca um instrumento de percussão com maestria, mas faz isso parecendo que é com displicência. Essa é uma arte à parte: fingir que é fácil fazer o que é inimitável.
Filho de pernambucanos, Robertinho nasceu 1º de junho de 1941 em Realengo, Rio de Janeiro, quando aquilo ali era praticamente zona rural.
“Minha mãe era boleira. Fazia bolos muito bem. Eu pegava aquela latinha de Fermento Royal vazia, enchia de milho e ficava batucando. Eu não preciso de instrumentos porque eu faço instrumentos”, contou. Não há uma latinha de Fermento Royal por ali, mas tem caixa de fósforos, e ele mostra que guarda uma bateria de escola de samba inteirinha ali dentro. Ao seu redor, há uma profusão de objetos familiares, e ele vai puxando um aqui, outro acolá.
“Um instrumento que marcou muito a minha vida foi esse aqui, a frigideira. Ele mostra uma, mas tem várias de diversos tamanhos em seu kit de percussão ambulante. “Esse preconceito com a percussão vem desde 1900 e antigamente. O que é isso? Um neguinho tocando frigideira? Era tanto que eu tinha vergonha de tocar na Zona Sul do Rio. Aí o Airto Moreira me viu tocando frigideira e me levou para os Estados Unidos para tocar frigideira com ele”.
Airto Moreira é um amigo-mestre para Robertinho. No lendário disco Native Dancer, de 1974, que junta Wayne Shorter e Milton Nascimento, Airto é o percussionista e Robertinho o baterista. “Airto é meu ídolo. Gravei um disco com ele, Identity”. Disco de 1975, Identity tem músicos como Herbie Hancock, Raul de Souza, Egberto Gismonti. Uma preciosidade.
Quando estava em vias de desembarcar pela primeira vez nos Estados Unidos, num tempo em que acompanhava a banda de Caetano Veloso, ele olhou para o patrão e disparou, tirando onda: “Caetano, vou chegar nos USA e falar pro guarda: My name is Bob Silver and i play very well!”. Esborracha de rir com seu próprio mimetismo da história.
Esse jeito de Robertinho parece preservá-lo numa redoma de artista-moleque eterno. Todos adoram aquela gargalhada. Logo emenda, como se fizesse um plano cronológico, em outra fase da carreira: “De repente, Jovem Guarda. Roberto Carlos. Todo mundo fala mal dele, mas para mim é gente boa”. Defende o ‘Rei’ pelo critério exclusivo da camaradagem, que é tudo que lhe interessa.
Os nomes vão povoando sua narrativa, poucos deles familiares para a plateia. Não importa, acabam de se tornar. Gente como Jorge Negão, passista e ritmista da Portela. E um anônimo soldado chamado Jair, que vivia na pensão de uma tia de Robertinho e possuía uma bateria no quarto. A tia alugava quartos no bairro de Oswaldo Cruz. Robertinho era menino e entrava escondido no quarto quando o soldado não estava. Robertinho sempre pedia: “Não fala pro soldado que eu mexi na bateria dele”.
Como ele tocava? Não sabe dizer. Era coisa que ele tinha visto no cinema. Mas o soldado um dia o flagrou tocando e perguntou: “Beto, você toca bateria?”. Desmascarado, Robertinho tocou um baião pra o soldado, que tinha um grupo de samba. A levada o soldado não conhecia, mas acabou levando o invasor para tocar bongô com seu grupo.
“O agogô era proibido na escola de samba. Coisa de macumba. Mas sempre tem um maluco que invade a área. Já fui malandro. Eu sei”.
“Um instrumento que não vai com a minha cara é a cuíca. É como dizem os mineiros: o trem fica enguiçado”.
Robertinho trata todos os instrumentos como se fossem personagens de uma novela, com ingredientes de intriga, segregação e destino. “Não é que eu diga: agora vou estudar essa levada. Vai nascendo”, diz. Enquanto fala, vai ensinando os moleques e divertindo os marmanjos: “Foi Gene Krupa quem botou tambor na bateria”.
Uma vez, Robertinho conta, foi ao Méier comprar uma calça Lee e o dinheiro não dava. Viu uma bateria numa vitrine e levou a mãe consigo para convencê-la a ajudar a comprar-lhe o instrumento, mas só conseguiu mesmo com extrema boa vontade do vendedor. Começou sua profissionalização, sempre às próprias custas S/A.
“Já fui jardineiro. Nunca ninguém me ensinou nada. Eu sou autodidata em tudo. Não tinha bateria, ficava tocando caixote. Até que conheci o cajón. Soube depois que foi o Rubens Dantas que convenceu o Paco de Lucia a usar o cajón. Era um baiano que tinha criado o instrumento do flamenco”.
“Tamborim não veio, vou tocar isso aqui. O chamado objeto sonoro”, anuncia, antes de pegar outro de seus objetos percussivos para colocar ritmo na conversa.
Robertinho se diverte com suas próprias tiradas. Fulano era “inteligente, mas o lado burro dele era mais forte”. A plateia também se acaba de rir. “Eu não quis ser ritmista de escola de samba. Para que serve a mão esquerda? Para dar tchau”.
“Nunca fui burro, mas eu sei. Mais de 70 anos e ainda ouço isso. Estava num estúdio de gravação e o artista distribuiu partitura pra todo mundo, menos pro percussionista. Mas o que é isso? Que preconceito é esse? Meus toques de tamborim eu sei escrever. Até hoje, tô estudando isso”.
Um dia, desembarcou em São Luis do Maranhão e queriam levá-lo para ouvir um boi. “Eu disse: que boi que nada, não quero ver boi. Mas acabei indo, e pirei. Aquele ritual, nego esquentando os tambores. Comecei a chorar. ‘Toma catuaba que tu melhora’, disse alguém. Chegaram e avisaram: ‘Já são 8 horas da manhã, você tem que dar aulas daqui a pouco!’”. Robertinho tinha perdido a hora. Entusiasmado com a descoberta daquela percussão brasileira tão eloquente, foi convertido. “Levei um tambor de crioula para os USA. No aeroporto, os caras me disseram: ‘Meu irmão, comprou uma árvore?”.
Na sua casa, não teve jeito: todo mundo saiu batucando. Tem 4 filhos bateristas. É o negócio da sua vida, diz. De repente, ele começa a ensaiar uma espécie de esquete teatral de como esse relacionamento se desenrola no dia a dia da família: “Thiago, de 33 anos, malandrinho otário, me pede instrumento emprestado. ‘Você nem usa’. Folgado!”.
“Thiago, respeita os oito mil baixos do teu pai!”
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