Nove décadas de peregrinação do funkman brasileiro nas tintas de Eliana Alves Cruz
Eliana Alves Cruz é carioca, escritora e jornalista. Pós graduada em comunicação empresarial, assina colunas nos sites The Intercept Brasil e UOL Esporte. Eleita conselheira municipal de cultura do Rio de Janeiro na linha de literatura. Como escritora, tem no currículo os romances Água de barrela (Malê, 2018), fruto de cinco anos de pesquisa sobre a história de sua família desde os tempos da escravidão e O crime do cais do Valongo (Malê, 2018) — escolhido como um dos melhores do ano de 2018 pelos críticos do jornal O Globo e semifinalista do Prêmio Oceanos 2019. Até o momento a autora está em mais dez antologias de contos e uma de poesias. “Nada digo de ti, que em ti não veja” é seu primeiro romance pela Pallas Editora.
ilustrações por Alexandre Calderero — “de boa”.
“A gente corre na BR-3
A gente morre na BR-3
Há um foguete
Rasgando o céu, cruzando o espaço
E um Jesus Cristo feito em aço
Crucificado outra vez”
Antônio Viana Gomes não é apenas um menino nascido no interior de São Paulo, em Mirante do Paranapanema, em 23 de maio de 1930. Ele é uma força da natureza, mais especificamente um tornado, aquele redemoinho de vento formado a partir da tempestade e que passa varrendo tudo. Um tornado que passa a vida varrendo os estereótipos, o lugar comum e a caretice. Sim, a “caretice”, essa gíria tão dos anos 1970 que ele viveu intensamente diminuindo Antônio para Tony e dando maiúscula ao tornado para transformá-lo em sobrenome que revolucionou a Música Popular Brasileira.
Tony Tornado completou nove décadas em 2020. São noventa anos de uma vida nada monótona. Não fosse ele mesmo uma super personalidade dos nossos tempos, poderia facilmente ser comparado àquele personagem de cinema que esbarra a todo tempo com eventos e personagens históricos. O ativista Black Power Stokely Carmichael, Janis Joplin e uma enorme porção de artistas lendários da MPB estão na sua biografia. Uma história que começa com seu pai, Ray Antenon Roger Patterson, nascido em 1911, na capital da Guiana — Georgetown — , que um dia traçou uma reta até Macapá, depois foi se embrenhando pelo Brasil até conhecer sua mãe, Maldy Pessanha Viana, no interior de São Paulo.
Ray Patterson era um exemplo vivo do que a escravidão foi capaz de fazer com homens negros, mesmo depois de abolida oficialmente. Apesar de ter nascido na primeira década do século 20, ele desembarcou criança no Brasil, foi escravizado em fazendas do interior e trabalhava como reprodutor. Ele disse este ano em um talk show: “Meu pai era alugado pelas fazendas só para fazer filho. Era um reprodutor, era um escravo especial. Não podia ser qualquer um. Ele tinha muito orgulho. Nunca foi pra as lavouras e nunca foi para o tronco”. Segundo Tony, Ray deve ter mais de 100 filhos. Ele afirmou em outra entrevista: “Existe uma rudeza nele por tudo o que passou na época da escravidão”.
Alguém com este passado familiar tão recente, não poderia mesmo passar a existência sem muitas lutas. Desde muito cedo Tony entendeu que a arte era seu destino e que cidade onde nasceu era pequena demais para ele. Saiu de Mirante de Paranapanema aos 11 anos e foi parar no Rio de Janeiro.
“Moleque de rua legal. Sem parente. E foi combinado assim: ‘Mamãe, vou para o Rio, isso aqui é pequeno para mim’. Desde criança, quando pintava circo na cidade, eu já queria subir no palco. Todo o mundo me tinha como maluco na cidade, por causa dessas coisa artística, entende?”, disse à revista Trip.
O menino grande para a idade e, por conta desta mesma idade, ainda imaturo viajou de carona e foi parar na casa de uma tia em Seropédica. Achou muito longe do centro da cidade e, então, engraxando sapatos, vendendo amendoins, dormindo em trens e debaixo de viadutos, Tornado foi conseguindo sobreviver em um Rio de Janeiro dos anos 40. Por vezes pagava um hotel pequeno na Rua Lavradio apenas para dormir apoiado numa corda. Até que aos 19 anos entrou para a Escola de Paraquedismo de Deodoro, onde foi colega de turma do apresentador Silvio Santos.
É possível fechar os olhos e ver Antônio já se transformando em Tony, influenciado pelo rock and roll nascente e que começava a despontar no Brasil, pois quando voltou da guerra pelo Canal de Suez — sim, ele tem uma guerra no currículo! — participou do programa Hoje é Dia de Rock, na Rádio Mayrink Veiga.
Também é possível imaginar o impacto que causou um homem negro com dois metros de altura cantando e dançando twist. A figura impressionante do, na época, Tony Checker (uma homenagem a Chubby Ckecker) não passou despercebida pelo apresentador Carlos Imperial, que o contratou como dançarino em seu programa na TV Continental, ‘Festival dos Brotos’, ao lado de Roberto e Erasmo Carlos.
Enquanto Tony dançava na jovem televisão brasileira, a luta pelos direitos civis estava ganhando corpo e chegando ao seu auge nos Estados Unidos. O Brasil também começava a ter grupos muito engajados na luta antirracista e nestes anos de pura efervescência ele decidiu seguir, em 1963, com o ‘Conjunto Folclórico Coisas do Brasil’ para a Europa e depois para os Estados Unidos.
Mais uma vez o tornado que muda os ventos da vida girou e o colocou no coração do bairro do Harlem, onde conheceu Stokely Carmichael (casado com a cantora Miriam Makeba), os movimentos ‘Black is beautiful’, “Black Power’, ‘Black Panther’… Ele chegou à América em anos emblemáticos. Estava tudo à flor da pele. A Marcha sobre Washington (1963), o Verão da Liberdade e do Nobel da Paz para Martin Luther King (1964), a Marcha de Selma no Alabama e o assassinato de Malcolm X (1965).
O bairro do Harlem naquela época era, como se diz, “uma quebrada”.
“Morei no centro do Harlem. E, lá, ou você canta ou trafica. Como é que eu ia cantar num lugar onde você ouve Ray Charles e James Brown o tempo todo?”, recordou ainda na conversa com a Trip. Tony traficou, mas garante que nunca foi usuário ou bebeu porque não gosta.
“O Sebastião (nome de batismo de Tim) era mais ilegal do que eu. Eu era ilegal, mas era mais ou menos comportado, tinha 20 mulheres na rua. Cafetão era uma profissão boa, não era uma profissão qualquer, eu tinha minha Cadillac branca por dentro e por fora, roupas bonitas… O Sebastião, não, eu fui tirar ele na delegacia, ele tinha roubado não sei o quê. Alguém falou “ô, Comfort (apelido de Tony no Harlem), tem um brasileiro pegado lá”. Eu fui, e era o Tim. Paguei a fiança, ficamos muito amigos e continuamos a nossa amizade no Brasil. Eu fui no dia do último show dele…”, explicou em entrevista ao jornal O Globo.
Os quatro anos de Estados Unidos foram tão marcantes que batizou os três primeiros filhos como Abraham Lincoln Tornado, Aretha Franklin Pearl e Ray Arthur. Não adiantava nada, Tony já estava com tudo no corpo e na mente quando foi deportado de volta ao Brasil, pois estava ilegalmente nos Estados Unidos. Segundo ele, alguém o denunciou. Foi o fim de sua carreira como cafetão. Em uma entrevista para Anna Ferraz, contou que “Alguém lá me caguetou.” Era o fim da vida de cafetão e traficante. “Eu protegia a mulherada. A barra era pesada porque o cliente come e não quer pagar.”
Ao descer no aeroporto em 1968 deve ter parecido um extra terrestre para quem o visse, pois com todo o seu tamanho chegou de jaqueta aberta, torso musculoso nu, coturno, cabelo black no alto e um ar de superioridade. Encontrou o Brasil na fase mais dura da ditadura militar, após o golpe de 1964. Era preciso sobreviver e Tony passou a cantar em inferninhos da Praça Mauá até que foi à boate New Holiday, para integrar o conjunto de Ed Lincoln. Já era possível ver toda a influência de James Brown, do funk e do soul, dos quais Tornado fora um dos introdutores no Brasil.
Nesta época ele conheceu Janis Joplin, apresentada pelo cantor Serguei, e dois nomes que o fariam entrar para a história da MPB: Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, os compositores da canção “BR-3”, que em 1970 Tornado interpretou no 5º Festival Internacional da Canção ao lado do Trio Ternura.
Um ciclone, um tornado, um furacão era o homem negro dançando e cantando versos como “a gente morre na BR-3”. Um impacto aumentado pelo contraste da vencedora do ano anterior, “Cantiga por Luciana”, uma balada romântica que conquistou o país fazendo com que muitas crianças nascidas na época fossem batizadas com este nome, logo, leitor ou leitora, se você, a sua mãe ou avó se chama Luciana…
O fato é que a força da imagem e da interpretação de Tony Tornado ao lado dos irmãos do trio Jussara, Jurema e Robson, todos negros, deu à canção um inesperado primeiro lugar no Festival, desbancando nomes como Caetano Veloso, Jair Rodrigues, Ivan Lins, Tom Jobim, Beth Carvalho e Gilberto Gil; o estrelato nacional e os olhares da ditadura.
“Um revolucionário americano estaria no Brasil recrutando militantes para implementar no país um regime de segregação racial”.
O astro que Tony Tornado se tornara o levou ao primeiro trabalho como ator no programa Chico Anysio Especial, ao casamento com a atriz Arlete Sales e a estreia no cinema, no filme “Tô na Tua, ô Bicho! (1971)”, do diretor Raul Araújo, com a participação da cantora Evinha e do grupo The Fevers.
Outro movimento agitava a vida cultural do país, principalmente no Rio de Janeiro: O Movimento Black Rio, que veio na esteira do estouro da soul music. A Banda Black Rio surgiu assim como sucessos de nomes como Tim Maia, Cassiano e o próprio Tornado, que acabara de ser sucesso com BR-3.
Os salões dos subúrbios cariocas eram tomados pelas roupas coloridas, os cabelos crespos, os discursos fortes e motivadores de uma auto estima negada desde há muito tempo à população negra. A Comissão Estadual da Verdade do Rio (CEV-RJ) resgatou o seguinte trecho publicado, na época, pelo jornal O Globo: “Um revolucionário americano estaria no Brasil recrutando militantes para implementar no país um regime de segregação racial”.
Tony era um suspeito em potencial e não demoraria muito tempo para o inevitável acontecer. Elis Regina fez um show no Maracanãzinho e levantou as arquibancadas interpretando “Black is beautiful”, de Marcos e Paulo Sérgio Vale. Elis abriu seu inconfundível sorriso e pediu para alguém negro subir ao palco. Tony gritou na hora um “sou eu!”.
“Quando ela disse que ‘eu quero um homem de cor’, eu falei: ‘sou eu. Só pode ser eu’. Empolguei-me”, recorda ao jornal de Brasília. E complementou, “vou levantar o punho como haviam levantado os atletas nas Olimpíadas. As pessoas acharam estranho: por que ele não sambou e tal?”.
Depois de abraçar a cantora, ele ergueu o punho cerrado como dos Panteras Negras. Já desceu do palco algemado, com 40 mil pessoas vaiando a polícia no estádio.
Caso a palavra “incômodo” tivesse uma foto no verbete do dicionário, Tony na época poderia facilmente ser esta ilustração, pois descia com sacrifícios pela garganta da elite e de certa classe média brasileira. Casado com uma atriz branca, falando em consciência racial e alçado ao topo do estrelato. Há dois anos, no programa Conversa com Bial, Tony relembrou: “É uma história complicada. Foi um choque muito grande. As pessoas não estavam acostumadas. Eu cantava e falava coisas de negros, depois casei com uma loira. Foi um negócio muito sério. Deixavam recados ofensivos no meu carro.”
A cena seguinte da prisão no Maracanãzinho acontece na Praça XV. Tony algemado e ouvindo dos policiais: “Canta aí, rodopia. O senhor é igual a melancia: verde por fora e vermelho por dentro”, ou seja, militar por fora e comunista por dentro. Tony até hoje ri bastante da interpretação que os militares fizeram de “BR-3”, pois, segundo eles a estrofe “Há um foguete/Rasgando o céu, cruzando o espaço/E um Jesus Cristo feito em aço/Crucificado outra vez” fazia referência à heroína: “Diziam que BR-3 era a terceira veia, o Jesus Cristo feito em aço era a agulha. A BR-3 é a estrada Rio-Belo Horizonte e o Jesus em aço é uma estátua lá em Minas”.
A repressão o enviou para um exílio forçado no Uruguai e de lá foi para a atual República Tcheca, Coréia do Norte, Cuba e Moscou. Um tour nada elogiável pela ditadura, mas Tony voltou e neste retorno pode se considerar vanguarda ao Papa João Paulo II, pois beijou o chão do Brasil.
Uma vez em solo nacional deu seguimento a uma extensa carreira como ator. Estreou na TV Tupi a novela “Jerônimo, o Herói do Sertão”, “Tchan, a grande sacada”, apresentou o show dos Jackson Five quando Michael Jackson tinha apenas 16 anos. Fez incontáveis filmes e a carreira de cantor foi ficando de lado.
Os anos 80 chegaram e Tony Tornado aportou na Rede Globo para atuar no humorístico “Os Trapalhões” e ao lado de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias fez o filme “Os Trapalhões e o Mágico de Oroz (1984)”. A partir daí Tony deu corpo e voz a todo tipo de personagem. Foi Ganga Zumba no filme “Quilombo (1984)”, capitão do mato na novela “Sinhá Moça” e capataz da Viúva Porcina em “Roque Santeiro”. Originalmente, era Rodésio quem ficava com Porcina no final da novela. A cena chegou a ser gravada, mas foi vetada pela emissora. Podemos imaginar como seria a repercussão, em 1984, do fim de um sucesso estrondoso como foi a novela, com a protagonista e ex “namoradinha do Brasil” terminando em par romântico com o capataz negro.
Podemos lembrar ainda de sua atuação em 1993 como o chefe da segurança pessoal do presidente Getúlio Vargas, Gregório Fortunato, na série “Anjo Negro”, baseada no livro de Rubem Fonseca. Foram tantos papéis em produções marcantes, que Tornado está definitivamente na história da televisão brasileira, mas… e a música?
Em 2015, aos 85 anos, Tony subiu ao Palco Sunset do Rock in Rio para cantar ao lado de Rappin Hood e encarnar outra vez o “rei do soul”. Foi ovacionado ao entrar de óculos escuros e paletó amarelo no palco onde já estavam Hood e Nasi, do grupo Ira. Ele cantou “BR-3”, o grande hit da carreira de sua carreira de cantor, Tornado chamou o filho, Lincoln, para dividir o microfone. Ambos pediram igualdade racial em diferentes momentos.
Tony gosta da vida. Ele canta e interpreta a vida. Sua longevidade ainda é exceção em um país que assiste adormecido à morte de um jovem negro a cada 23 minutos. Curiosamente, 23 é o número de anos que separam a abolição da escravidão no Brasil e o nascimento de seu pai, Ray Antom, que mesmo assim ainda foi escravizado. Tony Tornado atravessou nove décadas superando truculências que atingem em cheio o corpo negro masculino sem despertar compaixão ou amor, no máximo fetiche e desejo.
Salta aos olhos a alegria, a paixão e a leveza com que relata passagens nada fáceis. Salta aos olhos como não existe traço de amargura e como não deixa de acreditar em valores cultivados desde uma juventude para lá de engajada e como segue inspirando jovens e adultos.
Tony Tornado é também uma referência estética. Vaidoso, sabedor da própria beleza, sempre foi na prática um sinônimo para empoderamento muito antes de a palavra virar moda e lugar comum apropriado por muitos movimentos e personalidade que estão distantes do “Black is beautiful” dos anos 60/70 e do qual ele se diz representante.
No Rock in Rio de 2015, além de BR-3, Tornado abriu o show cantando “Pode crer, amizade”, e engatou numa versão de “Festa do santo reis”, famosa na voz de Tim Maia.
Por falar em Tim Maia, quando morou nos Estados Unidos, Tony dividiu apartamento com ele, a quem chama de “Sebastião”. Ele o cita para dizer porque não quer uma biografia: “Quando escreve o cara morre, ele dizia. Aconteceu com ele” .
Antônio Viana Gomes, o Tony Tornado, não precisa ter medo. Como todo fenômeno da natureza ele faz parte da Terra. Não morrerá. Continuará para sempre girando e dizendo às gerações futuras com seu canto, atuações, humor e atitudes o mesmo que canta a voz de James Brown: “Say it loud, I’m Black and I’m proud!” (Diga alto, sou negro e com orgulho!)
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