O olhar visionário de Tom Jobim, um dos criadores da Bossa Nova, e seu legado em defesa da natureza
Por Manuela Ferreira
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O compositor, arranjador, maestro, pianista e cantor Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994) viveu, por muito tempo, entre dois endereços. O primeiro deles, uma ampla casa no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, estava nas imediações da estátua do Cristo Redentor, cercado de árvores e pássaros nativos da Mata Atlântica. Na residência, tocava piano de frente para um janelão, de onde via o jardim em que gostava de brincar com a filha caçula, Maria Luiza. No segundo domicílio, um apartamento na ilha de Manhattan, em Nova York, nos Estados Unidos, a natureza se fazia presente nas caminhadas que o artista realizava, com regularidade, pelo Central Park.
Ambas moradas se tornaram emblemáticas em sua história pessoal e artística, e evidenciaram de onde partia a inspiração que permeou muitas de suas composições icônicas. Entre ipês amarelos, palmeiras-imperiais, embaúbas e samambaias, ou avistando as aves migratórias que pousam a cada mudança de estação no espaço verde nova-iorquino, Tom Jobim fez de sua obra uma vanguardista e sensível ode ao meio ambiente – temática que, três décadas após o seu falecimento, gera preocupações em todo o mundo.
Uma síntese da postura pioneira do artista foi descrita pelo biógrafo e jornalista Ruy Castro no livro O Ouvidor do Brasil: 99 vezes Tom Jobim (Companhia das Letras, 2024). “Enquanto tantos de seus parceiros e contemporâneos foram reduzidos a referências nos livros de história, Tom parece fisicamente vivo e ativo. Mas sua preocupação com o meio ambiente, em termos de preservação e defesa de mares, matas e seres, que tantas incompreensões lhe rendeu, só há pouco entrou para a pauta nacional. Tom foi, antes de muitos, um ouvidor do Brasil, um ombudsman por conta própria. Ninguém o contratou ou escalou para isso, ao contrário – era um voluntário da pátria. E, não fosse ele um músico, ninguém mais equipado para ouvir o país, do pio do inhambu aos gritos da floresta sendo abatida de machado ou serra. Mas quantos outros músicos o seguiram nessa missão?”, questiona o escritor na crônica “O voluntário da pátria”, originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo e presente no livro recém-lançado.
A proximidade com a fauna brasileira esteve no centro, por exemplo, do processo criativo que resultou em alguns dos discos mais importantes da música brasileira, conforme explica o jornalista, pesquisador e escritor Rodrigo Faour, doutor em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de História da Música Popular Brasileira sem Preconceitos – Vol. 2 (Record, 2022). “A preocupação ecológica persegue Tom Jobim desde os anos 1970, como é flagrante nos álbuns Matita Perê (1973), Urubu (1976) e o posterior Passarim (1987) – os três com nomes de pássaros. Nesse meio tempo, ele compôs o clássico ‘Águas de março’ no seu sítio na cidade de Poço Fundo (MG), considerada uma das canções mais belas de todos os tempos”, explica Faour.
Lançada em 1972, “Águas de março” ganhou a versão definitiva ao lado de Elis Regina (1945-1982), no antológico álbum Elis & Tom (1974), “considerado pela crítica um dos dez melhores álbuns da MPB já gravados e cultuados mundialmente – era, por exemplo, o disco de cabeceira do cantor Tony Bennett (1926-2023)”, conta o pesquisador e jornalista. Com uma letra repleta de imagens sensoriais que versam sobre os constantes fluxos e renovações que a natureza provoca, ela se tornaria um dos marcos da carreira de Tom Jobim fora do país, amparada, sobretudo, na sua versão em inglês, também de autoria do artista. “A música brasileira no exterior, que só era conhecida por meia dúzia de canções e, principalmente, pela figura de Carmen Miranda (1909-1955), passou a inscrever seu nome na história, graças à Bossa Nova, tendo as obras de Tom Jobim à frente”, analisa Rodrigo Faour.
Tal chegada no mercado internacional se deu, primeiro, com “A felicidade” (1965), parceria com o poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980), da trilha sonora do filme Orfeu (1959) e gravada por Agostinho dos Santos (1932-1973). “O impulso definitivo aconteceu após a gravação do álbum Desafinado, de Stan Getz (1927-1991) e Charlie Byrd (1925-1999), e do concerto da turma da Bossa Nova no Carnegie Hall [casa de espetáculos], em Nova York, ambos em 1962. No ano seguinte, sai The composer of Desafinado plays…, o primeiro álbum solo de Tom, feito sob medida para o mercado americano. Ali, gravou ‘O amor em paz’, ‘Água de beber’, ‘Vivo sonhando’, ‘O morro não tem vez’, ‘Insensatez’, ‘Corcovado’, ‘Samba de uma nota só’, ‘Meditação’, ‘Só danço samba’ e ‘Chega de saudade’”, detalha Faour.
Antes de morar na casa do Jardim Botânico, o maestro viveu no bairro de Ipanema nos anos 1960, em um apartamento na Rua Nascimento Silva, número 107 – local que se tornou famoso na canção “Carta ao Tom 74”, composta por Vinicius de Moraes e Toquinho. Àquela altura, já era um artista de alma boêmia e reconhecido mundialmente. No início de 1964, sairia o single do LP que João Gilberto (1931-2019) e Stan Getz (com Tom, ao piano) gravaram juntos, trazendo Astrud Gilberto (1940-2023) como vocalista. A escolhida? “Garota de Ipanema”, que em inglês foi intitulada “The girl from Ipanema”.
“Foi um estouro tão grande que rendeu ao disco três indicações e um prêmio Grammy que abocanhou no mesmo ano do estouro mundial dos Beatles, sendo o único ano em que o jazz superou a música pop nesta premiação. Para se ter uma ideia da revolução, esta canção, até hoje, é a segunda mais regravada no mundo inteiro e uma das 100 mais ouvidas nos Estados Unidos em todos os tempos. Os grandes jazzistas de então, carentes de um novo compositor que pudessem ‘jazzificar’ as canções, viram em Tom um mundo a ser explorado”, afirma Faour.
Em 1967, veio a consagração definitiva de Tom e da própria música brasileira no exterior, com o álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim. “Frank Sinatra (1915-1998), então considerado o cantor mais popular do mundo, jamais havia feito um songbook de nenhum compositor. E eles ainda gravaram um novo álbum, com um lado inteiro só de músicas de Tom – Sinatra & Company, lançado em 1971. Dez anos depois, até mesmo a primeira-dama do jazz, Ella Fitzgerald (1917-1996), também lhe prestaria um tributo no LP Ella abraça Jobim. Na fase que morou nos Estados Unidos, Tom renovou seu prestígio em álbuns como Wave (1967), trazendo canções como a faixa-título e ‘Triste’, além de ‘Stone Flower’ (1970), em que relia ‘Sabiá’, dele com Chico Buarque”, esmiúça o escritor.
Nos versos de “Sabiá”, consagrada em primeiro lugar no III Festival Internacional da Canção, de 1968, sentimentos como saudade e nostalgia, trazidos pelo exílio vivenciado por muitos brasileiros no período, ganham representação metafórica na figura do sabiá-laranjeira, ave típica da fauna brasileira, de gorjeio suave e melancólico. O canto dos pássaros era uma das maiores paixões do artista, que se definia como um ornitólogo amador.
Na casa do Jardim Botânico, Tom Jobim podia avistar, enquanto tocava piano, espécies como bem-te-vi, tiê-sangue, sanhaço e cambacica. “O [compositor e maestro] Heitor Villa-Lobos (1887-1959), conhece muito passarinho também. Inclusive, nas obras dele, coisas sinfônicas, você escuta pássaros. E eu posso te dizer que passarinho ele estava imitando com a orquestra”, disse Tom Jobim, em depoimento no documentário Visões do Paraíso (1997), do cineasta Lírio Ferreira. “Tudo o que eu fiz foi em decorrência da Mata Atlântica, da floresta Atlântica. A Mata Atlântica é esse espaço onde a vida tem seu máximo de explosão (…) Sempre vivi no mato. O Rio de Janeiro era todo mato. Eu comecei a me apaixonar por essa coisa toda muito antes de conhecer palavras como ecologia (…) e eu fui no dicionário ver o que era ecologia”, declarou o compositor, no mesmo depoimento.
A temática ambiental retornaria na última entrevista do artista, em novembro de 1994, ao jornalista Walter da Silva para a Revista Qualis. “A Mata mais linda do mundo, com um clima tropical de montanha, quer dizer, faz até frio no alto da floresta, com mil espécies. Isso tudo foi arrasado! Quer dizer, sempre queimando o mato. Às vezes, nem cortar as madeiras-de-lei, eles cortaram, botaram fogo simplesmente. E com isso desaparecem centenas de espécies vegetais e animais, destruíram tudo. Lamentável essa coisa de sempre destruir tudo e plantar café, de plantar cana, que é a história do Rio de Janeiro, a história de São Paulo, a história do Paraná, a história da Mata Atlântica”, denunciou Jobim.
Em seu último trabalho, Antonio Brasileiro (1994), estavam “Piano na Mangueira”, composta com Chico Buarque, após o maestro ser homenageado pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira, no Carnaval de 1992, e “Forever Green”, feita para a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente, que ficou conhecida como ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992. Na época de seu falecimento, o artista estava finalizando o livro de fotografias intitulado Toda minha obra é inspirada na Mata Atlântica, lançado postumamente, em 2001, fruto de parceria com a esposa, cantora e fotógrafa Ana Lontra Jobim, responsável pelas imagens. Já havia composto mais de 400 letras e, mesmo assim, trabalhava todos os dias, sempre atento à vida ao seu redor e ávido por registrar tudo o que via, ouvia e sentia a partir do contato com o verde que tanto o emocionou e inspirou.
Álbum Nana, Tom, Vinícius, indicado ao 22º Grammy Latino, é lançado em versão vinil pelo Selo Sesc
Selo Sesc lança na versão vinil o álbum Nana, Tom, Vinícius, da cantora Nana Caymmi, que interpreta canções da dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. O disco, que tem direção artística, violão e arranjos de Dori Caymmi, traz releituras de clássicos como “Eu sei que vou te amar” e “Canção do amor demais”, escritas pelos lendários compositores. O álbum também registra as interpretações da cantora para “Valsa de Eurídice”, de Vinicius, e “As praias desertas”, de Jobim.
Ouça aqui o álbum Nana, Tom, Vinícius, do Selo Sesc
Indicado ao 22º Grammy Latino na categoria Álbum do Ano, a obra foi lançada em 2020 e marcou o retorno da cantora aos estúdios para gravar projetos solo, após um hiato de 10 anos. O disco tem, ainda, a participação de músicos da Orquestra de São Petersburgo, da Rússia, responsáveis pelos instrumentos de cordas. A edição em vinil e capa gatefold (que abre como se fosse um livro) apresenta todo o repertório presente no álbum digital e CD, além de ter um encarte com as letras das canções e textos do compositor Dori Caymmi, do poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho e do diretor do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina.
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