Mães, pais e filhos atípicos utilizam redes sociais para compartilhar informações, lutar contra o capacitismo e avançar na defesa da individualidade das pessoas com deficiência
Por Luna D’Alama
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Grávida de sete meses, a administradora de empresas Mônica Pitanga teve uma apendicite supurada e precisou fazer uma cirurgia de emergência, que acabou incluindo uma cesariana para salvar a primogênita, Luísa, hoje com 21 anos. Mãe e filha foram para Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) separadas, em Cachoeiro de Itapemirim (ES), e só se conheceram quando a menina já tinha dez dias de vida. A alta do bebê veio após quase um mês, associada a um diagnóstico de paralisia cerebral leve. Mônica ficou emocionalmente abalada, inclusive acredita que teve uma depressão pós-parto não tratada na época. Mas, ao lado do marido, o médico Bruno Pitanga, reuniu forças para enfrentar as adversidades, cuidar de Luísa e, tempos depois, teve outros dois filhos: Thor, de 15 anos, e Laila, de 12.
Na pré-adolescência, Luísa precisou operar os quadris e nunca mais voltou a caminhar sem andador. Foi aí que os médicos a diagnosticaram com uma doença rara: Charcot-Marie-Tooth (CMT), que causa fraqueza e falta de sensibilidade e equilíbrio nas mãos e nos pés. Cerca de 80 mil brasileiros(as) e três milhões de pessoas em todo mundo vivem com CMT atualmente. “A primeira escola onde Luísa estudou não tinha acessibilidade, era impossível participar do recreio. Ela sofreu bullying, foi excluída. Quando passou no cursinho pré-vestibular, havia uma escadaria imensa, e o andador não entrava no banheiro. A instituição sugeriu que ela estudasse de casa, em vez de promover adaptações”, conta Mônica.
Aos 15 anos, mãe e filha viajaram para Nova York (Estados Unidos), onde Luísa alugou uma scooter adaptada e, assim, pôde rodar pela ilha de Manhattan e região. Ficou impressionada com as calçadas largas, as rampas de acesso e os postes subterrâneos. “Na hora de voltar, ela me disse que não queria, pois lá poderia ser quem realmente era. Foi, então, que virei uma ‘mãe leoa’ e, em 2019, fundei a ONG Mova-se para conscientizar a sociedade – principalmente, crianças em escolas – sobre pessoas com deficiência”, revela. Mônica também começou a atender mães e pais, dar palestras sobre educação positiva e escreveu o livro Pontos de afeto – Lições da maternidade atípica (Literare Books International, 2022), além de compartilhar esses assuntos em seu perfil no Instagram.
“Atendo muitas famílias que passam anos com o diagnóstico errado, ou que nem fecham um diagnóstico. Algumas doenças são menos conhecidas, outras ainda nem foram catalogadas. Por pior que seja, receber um diagnóstico é libertador, porque você entende o que está acontecendo. Mas um diagnóstico nunca define um indivíduo”, destaca Mônica. Segundo ela, cada criança e adolescente é único, tem temperamentos e necessidades diferentes, pontos fortes e fracos que precisam ser considerados. “O movimento das pessoas com deficiência diz: ‘Nada sobre nós sem nós’. Por isso, hoje a presidência da ONG é ocupada pela jornalista Bárbara Gaspari, que é cadeirante e tem paralisia cerebral. Precisamos avançar na educação inclusiva, usar os termos corretos, romper barreiras comunicacionais e atitudinais, lutar contra o capacitismo e possibilitar que essas pessoas ocupem espaços com protagonismo”, reivindica.
Luísa Pitanga e sua mãe em uma prova de corrida de rua neste ano. Na ocasião, Mônica Pitanga postou nas redes sociais: “Que possamos repensar os eventos e ambientes de modo que todos possam participar com equidade e dignidade”.
Foto: Arquivo pessoal
Hoje, Mônica vê na própria casa os resultados de sua luta: Luísa vive com bastante autonomia, cursa jornalismo, trabalha home office, tem conta em banco e paga seus próprios boletos. Também já viajou com amigas para o Maranhão e Minas Gerais, e foi para a Austrália visitar uma tia. “Isso é fruto do que plantei lá atrás, incentivando-a (e os demais filhos) a tomar decisões, resolver problemas e comunicar o que sente. É preciso enxergar além da deficiência”, enfatiza.
Este ano, em outubro, as duas resolveram aceitar um novo desafio: uma corrida de rua de cinco quilômetros. “Não tinha categoria PCD [pessoa com deficiência], nem rampas, o asfalto era cheio de buracos, havia morro. Ficamos em 140º lugar. Fomos com mais três amigos com deficiência, em um grupo de 640 atletas. Mas terminamos o percurso”, comemora.
A médica veterinária Laís Palma Elsing estudava para um concurso público quando engravidou, sem tratamento, de trigêmeas: Athena, Sophia e Helena, hoje com seis anos. Durante o pré-natal, Laís descobriu que havia um problema no cordão umbilical de uma das filhas. O trio nasceu prematuro, com 26 semanas de gestação. Foi um longo período de angústia na UTI neonatal. Helena nasceu com uma cardiopatia, precisou fazer uma cirurgia no coração, e tanto ela quanto Sophia foram diagnosticadas com síndrome de West, doença neurológica rara caracterizada por espasmos epiléticos e regressão ou atraso no desenvolvimento. Além disso, as três têm paralisia cerebral: Athena, grau I; e Sophia e Helena, grau V. Athena tem, ainda, transtorno do espectro autista (TEA), com nível de suporte 1.
“Até me tornar mãe, eu nunca tinha convivido com pessoas com deficiência. No início, foi muito sofrido, tive que entender que eu mesma tinha preconceitos. Pensava no que poderia acontecer com minhas filhas se eu morresse, quem lidaria com essa situação. Demorei para entender que elas têm um diagnóstico, mas esse não é o destino delas. E, embora sejam trigêmeas, cada uma é única”, analisa Laís. Ela e o marido, o advogado Fernando Bucci, dividem os cuidados com os avós paternos, com a escola e com instituições onde as meninas fazem terapias, em São Paulo (SP). Mas a maternidade atípica de Laís é uma exceção num país onde, segundo pesquisas estatísticas, até 80% dos casamentos terminam em divórcio quando há um filho com deficiência. Muitas mães abandonam suas carreiras e vivem em função das crianças, inclusive virando enfermeiras ou terapeutas delas. “Há todo um machismo, o que intensifica a sobrecarga materna. Mesmo privilegiados, nós passamos por momentos difíceis, fui para a terapia”, lembra.
Laís avalia que a luta anticapacitista precisa ser uma desconstrução contínua e coletiva, que inclua toda a sociedade, políticas públicas e, sobretudo, a educação, e fala sobre isso em seu perfil no Instagram. “As escolas ainda não são para todos, mas deveriam. A criança com deficiência tem que ser olhada, acolhida, e os pais atípicos também”, analisa. Athena, Sophia e Helena estudam no mesmo colégio, mas cada uma numa sala, com sua própria turma – o que ajuda na formação da identidade e da individualidade delas. “Temos que ir além das aparências, e não infantilizar ou vitimizar essas pessoas e suas famílias. Minhas filhas são indivíduos singulares, com qualidades e defeitos. Aliás, no aniversário delas, em novembro, cada uma optou por um tema diferente. “A gente que lute”, pontua a mãe, descontraída.
Para Laís, a sociedade precisa estar aberta para receber e conviver com as diversidades, outros corpos, gêneros, raças e orientações sexuais. “Só vamos conseguir um mundo mais justo e igualitário dessa forma. Aprendemos a respeitar as pessoas diferentes de nós quando convivemos com elas. Por isso, as pessoas com deficiência precisam ter representatividade, acessibilidade e dar as caras nas ruas, nos espaços públicos”, completa.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) feita em 2022, o número de pessoas com deficiência no Brasil, acima dos dois anos de idade, é estimado em 18,6 milhões, o que corresponde a 8,9% da população nessa faixa etária. A deficiência pode ser física, sensorial (auditiva, visual), intelectual, psicossocial ou múltipla. Na família da psicopedagoga, ativista e influenciadora digital Gabriela Pereira, de Sorocaba (SP), ela, o marido, Moisés dos Santos, e o filho, Benyamin Luiz, de nove anos, convivem com diferentes tipos de deficiências. Gaaby, como prefere ser chamada, foi diagnosticada há três anos com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e Transtorno do Espectro do Autismo [TEA] de nível suporte 1. Moisés também tem TDAH e está investigando TEA. Já Beny tem múltiplas deficiências: síndrome de Down, surdez, TEA (nível de suporte 2) e está sendo avaliado em relação a uma suspeita de TDAH.
“Os médicos diziam que eu era uma mãe especial, que meu filho era especial, não o chamavam pelo nome. Eu virei ‘mãezinha’. Antes do diagnóstico, já sabia que Beny seria excluído socialmente, por ser preto, então me tornei mãe já com a consciência de que precisaria empoderá-lo”, ressalta Gaaby. Hoje, ela e o marido lutam contra o capacitismo e por políticas públicas que apoiem mães e pais atípicos. Criaram, inclusive, o Instituto Ampara, para acolher famílias diversas. Com apenas 40 dias de vida, Beny fez um procedimento pulmonar e, com um ano, operou o coração. Andou aos três anos e meio, e hoje senta-se, pula e corre. “Gostamos de fazer textos bem-humorados, passar emoção e conscientização no canal [Família Afro Atípica, nas redes sociais e YouTube], nada de ficar com pena. Queremos que as pessoas reflitam, pois não existem verdades absolutas. Somos protagonistas da nossa própria história. Beny tem voz, apenas traduzo o que ele quer dizer, não falo por ele. Educamos nosso filho numa chave antirracista e anticapacitista”, explica Gaaby.
Precisamos criar nossos filhos para se relacionar com todo mundo, e a sociedade, em contrapartida, deve abrir a mente para entender a diversidade
Ao lado do filho, Benyamin Luiz, de nove anos, a psicopedagoga Gabriela Pereira e seu marido, Moisés dos Santos: o casal compartilha o cotidiano nas redes sociais e no canal do YouTube Família Afro Atípica. Foto: Arquivo pessoal
No início do ano, a família conseguiu verba pública para o menino fazer equoterapia (com cavalos), hidroterapia e terapia ocupacional – as duas últimas foram interrompidas em junho, pelas instituições. “Com a equoterapia, por exemplo, o garoto fica mais tranquilo, melhora a postura, fortalece a cervical e desenvolve a atenção”, cita a mãe, que hoje dá palestras, presta consultorias e participa de congressos. “Levo meu filho a eventos de cultura negra, povos originários, pessoas LGBTQIAPN+, para ele também aprender a conviver com as diferenças. Precisamos criar nossos filhos para se relacionar com todo mundo, e a sociedade, em contrapartida, deve abrir a mente para entender a diversidade. Ferir a existência do outro é crime, e isso precisa ser responsabilizado. Ninguém tem que fazer pergunta, dar opinião ou conselho sem ser solicitado”, argumenta a mãe de Beny, uma criança que gosta de pipoca, salada e que detesta que o tratem como um bebê ou como se fosse de porcelana.
Editor da seção Vida Pública e colunista de Diversidade no jornal Folha de S.Paulo, o jornalista Jairo Marques teve poliomielite aos nove meses de idade. Desde a infância, usa cadeira de rodas e, após os 40 anos, viu sua vida ser radicalmente transformada com a chegada de Elis, hoje com nove anos. Em seu canal Assim Como Você, Marques faz vídeos bem-humorados, escreve crônicas e conta histórias por um mundo mais diverso. “Não tinha planos de ser pai, foi um impacto muito grande na minha vida. Tinha receio de que um(a) filho(a) viesse a sofrer os reflexos das situações e dos preconceitos que enfrento. Tanto em termos de atitudes e comportamentos, quanto de barreiras físicas”, conta.
O jornalista e a mãe da menina se separaram há quatro anos e hoje compartilham a rotina da filha, em casas separadas. Marques revela que uma atitude frequente das pessoas, principalmente quando Elis era menor, era não o reconhecer como pai, estranhando quando o viam passeando com um bebê no shopping, por exemplo. “Havia uma preocupação, velada ou explícita, de a criança estar junto a um homem cadeirante. Ainda bem que Elis se adaptou rápido, tira tudo de letra, e hoje até guarda minha cadeira de rodas no porta-malas do carro”, acrescenta.
O jornalista acredita, acima de tudo, no poder da escola e da educação para transformar a sociedade num espaço mais inclusivo, diverso e acessível. “A criança precisa conviver com outras. Seja para aprender outros idiomas ou apenas ‘fofocar’, ela deve estar nesse ambiente, ser vista. Privar uma pessoa com deficiência disso é uma forma brutal de exclusão. Nós somos indivíduos plenos”, finaliza.
No mês do Dia Internacional da Pessoa com Deficiência (3/12), Sesc São Paulo encerra a sétima edição do projeto Modos de Acessar e faz parte da 10ª Virada Inclusiva
Atento às questões de diversidade, acessibilidade e visibilidade social das pessoas com deficiência, o Sesc São Paulo realiza até 3/12, em 29 unidades da capital, interior e litoral, a sétima edição do projeto Modos de Acessar. Na programação, espetáculos, oficinas, debates, entre outras atividades em diversas linguagens. Neste ano, o tema “Construindo acessibilidade em territórios diversos” joga luz sobre a acessibilidade como um processo contínuo de adaptação e aprendizado em seus locais de atuação.
“Os modos de acessar das pessoas são diversos, mudam ao longo da vida e dizem respeito a maneiras diferentes de habitar o mundo e experimentá-lo. Levar em conta essa diversidade no desenho de espaços e, sobretudo, nas relações é benéfico para a sociedade e fundamental para a ação cidadã do Sesc São Paulo, que, por meio da dimensão da educação permanente, busca promover o acesso à cultura, à participação social e ao desenvolvimento humano em todas as fases da vida”, afirma Lígia Zamaro, especialista em educação para acessibilidade da Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo.
Além disso, entre os dias 2 e 8/12, o Sesc São Paulo integra a Virada Inclusiva, iniciativa realizada desde 2010 pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência. A ação busca promover a participação e o protagonismo de pessoas com deficiência, por meio de atividades esportivas, culturais e educativas, em celebração ao Dia Internacional da Pessoa com Deficiência (3/12).
Confira destaques da programação:
CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO
Memórias do acesso: movimento pelos direitos da pessoa com deficiência
O encontro propõe um resgate de memórias sobre o movimento das pessoas com deficiência. Com as ativistas dos direitos das pessoas com deficiência Lia Crespo e Elza Ambrosio, pesquisadora. Mediação de Marta Almeida Gil.
Dia 6/12. Sexta, das 15h às 17h30. GRÁTIS.
SANTOS
Artes manuais para jovens e adultos com deficiência intelectual
Oficina com Vânia Paula, Adriana de Souza e Renata de Barros Dias. Por meio da construção de objetos, promove a interação entre os participantes e a reflexão sobre suas experiências. Pessoas com deficiência tuteladas devem participar com acompanhante ou responsável.
Dia 8/12. Domingo, das 15h às 17h. GRÁTIS.
PINHEIROS
Mulheres, DEFs e arte
Com Isabel Portella, crítica de arte, Isadora Ifanger, artista DEF, Lua Cavalcante, artista e educadora. Mediação: Daniel Moraes, mestre em pintura pela Universidade de Lisboa.
Dia 8/12. Domingo, das 13h às 15h30. A partir de 12 anos. GRÁTIS.
sescsp.org.br/modosdeacessar e pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/virada-inclusiva-2024
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