O ponto fora da curva e a curva fora do ponto

08/05/2020

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Ano passado o Theatro Municipal de São Paulo apresentou a ópera p r i s m, das autoras Ellen Reid (compositora canadense) e Roxie Perkins (libretista norte-americana). A obra foi vencedora do Pulitzer 2019 na categoria Composição Musical e recebeu o prêmio de melhor ópera inédita de 2018 pelo MCANA — Music Critics Association of North America. São Paulo foi a terceira cidade a recebê-la, depois da estreia em Los Angeles e da temporada em Nova Iorque.

A montagem foi absolutamente competente e a composição é de fato, um primor. Trata-se de obra contemporânea, com todo o experimentalismo a que tem direito, sem, no entanto, deixar de se comunicar imediatamente com o público. Essa comunicação é garantida, não por ser “fácil” ou “palatável”, mas por soar realmente bela, lírica e fluida aos ouvidos ocidentais. As melodias cantabile convivem com a música eletrônica, a orquestra e o coro com batidas de bateria. Para além disso tudo, sendo escrita por duas mulheres, traz como tema experiências pessoais do universo feminino, não calcadas em delicadezas (como se supõe enviesadamente característica fundamental da mulher), mas sim na violência. Trata de violência física — mais especialmente sexual — e emocional. É lírica, mas incômoda.

A montagem levou a certa mobilização da mídia e do cenário paulistano da música de concerto, não apenas pelas questões estéticas da composição e da montagem (Coral Paulistano, Orquestra Sinfônica Municipal e as únicas cantoras em cena Rebecca Jo Loeb e Anna Schubert, estiveram impecáveis), mas sem dúvida também pela questão de gênero. Não é nada comum assistirmos a montagens sofisticadas de obras compostas por mulheres. Mas por quê?

A cena da música de concerto não tem sido fácil para as mulheres. Se na música popular existe certa dificuldade em se colocar e se projetar, na erudita a situação parece mais crítica.

No século XIX era raro as mulheres terem acesso ao mundo da profissionalização artística. Esse não era um lugar considerado possível para elas. Na maioria das vezes em que uma mulher alcançava esse tipo de reconhecimento, eram reservados a ela papéis muito específicos, que estavam mais relacionados à ideia da “Diva” do que do “Gênio”. Às mulheres era permitido exercerem o papel de intérpretes, mas não de compositoras. Mesmo nos conservatórios, não lhes era permitido frequentar as aulas de composição, harmonia, e outras disciplinas mais intelectuais e menos mecânicas (no sentido de fazer uso de capacidades motoras). Assim, as mulheres tinham autorização para ser pianistas, violinistas, harpistas e cantoras, além de professoras de música, mas não criadoras.

“Descontroladamente inventivo, deixando pouca dúvida sobre o motivo de toda a confusão sobre sua música”, assim foi definido p r i s m pelo o jornal The LA Times | Foto: Maria Baranova

Atualmente encontramos uma grande quantidade de compositoras produzindo, assim como de estudantes mulheres nas cadeiras das universidades. No entanto, ainda que o volume de compositoras e compositores esteja se aproximando de um equilíbrio (ainda não atingido), a quantidade de peças executadas por grupos profissionais se mantém absolutamente díspar quando comparamos a produção feminina da masculina.


“Sem uma renda permanente e o direito a um quarto com chave, a potencialidade da criação artística é comprometida. Esse cenário parece se transportar facilmente para a situação da educação musical em São Paulo (assim como para diversas outras esferas da vida social).”


Como exemplo, é possível citar a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, organizada pela Funarte, no Rio de Janeiro. Em 2019, dentre 5 compositores convidados, somente uma, Jocy de Oliveira, é mulher. Dentre as 47 obras selecionadas, somente 3 foram compostas por mulheres (Candeias, de Roseane Yampolschi; Palimpseste, de Tatiana Catanzaro; e Déjà-Vu, de Elodie Bouny), sendo que duas delas tiveram curiosamente a maior nota em sua categoria no processo seletivo.

No ensaio Um Teto Todo Seu, Virgínia Woolf discorre a respeito da necessidade de autonomia financeira e liberdade de gestão de tempo para a possibilidade da atividade criativa. Sem uma renda permanente e o direito a um quarto com chave, a potencialidade da criação artística é comprometida. Esse cenário parece se transportar facilmente para a situação da educação musical em São Paulo (assim como para diversas outras esferas da vida social). Ainda que muitas meninas ingressem em escolas públicas de música, sejam municipais ou estaduais, ao longo dos anos vão abandonando os cursos, de modo que a discrepância entre alunos do sexo masculino e feminino vai se intensificando nos níveis avançados. É possível supor que isso se dê pela necessidade de essas meninas dedicarem seu tempo a atividades domésticas diversas, de modo que as crianças do sexo feminino recebem maiores responsabilidades familiares do que as do sexo masculino. A atividade artística não é vista como algo que poderia ser levado a sério por essas jovens mulheres; sua capacidade criativa não é valorizada, essa é uma função reservada ao mundo dos homens.


“Meninas evitam mostrar em aula um trabalho até que elas mesmas o julguem satisfatório, enquanto os jovens alunos do sexo masculino se sentem muito mais à vontade para compartilhar o processo com quem os está orientando.”


Para além do fato de mulheres terem sensivelmente menos acesso do que homens ao estudo, ao conhecimento, ao tempo disponível para dedicar-se ao aprendizado diletante da música, existe ainda um componente cultural que interfere diretamente na auto-imagem e confiança das estudantes, mesmo quando possuem condições financeiras e de autonomia para gerir seu tempo. É comum professoras e professores de música relatarem que a auto-cobrança das alunas é consideravelmente superior à dos alunos. Meninas evitam mostrar em aula um trabalho até que elas mesmas o julguem satisfatório, enquanto os jovens alunos do sexo masculino se sentem muito mais à vontade para compartilhar o processo com quem os está orientando. É importante ressaltar que essa falta de auto-confiança feminina está calcada no machismo estrutural da nossa sociedade e que isso é refletido nas diversas atividades humanas exercidas por elas.

Essa condição parece encontrar raízes intrinsecamente calcadas na posição feminina, não somente no campo das artes, mas em diversas outras áreas do conhecimento. Segundo nos diz a cientista social e professora da Pontíficia Universidade Católica/PUC-SP, Carla Cristina Garcia, não somente no campo da música de concerto, mas também em outras áreas do conhecimento, historicamente as mulheres que alcançam certa visibilidade têm sido justamente aquelas consideradas um ponto fora da curva, ou seja, para conseguir reconhecimento, as artistas precisam ser absolutamente geniais. As artistas comuns, diferentemente do que ocorre com os artistas comuns, enfrentam dificuldade para conquistar credibilidade no cenário profissional.


“O gênio isolado não gera genealogia, o movimento coletivo sim.”


Ocorre que, ainda segundo a pesquisadora, o ponto fora da curva está justamente “fora da curva”, e os movimentos artísticos são exatamente “a curva”. Ou seja, as mulheres acabam sendo, de certa forma, excluídas do processo de condução desses movimentos, que é privilégio dos artistas comuns do sexo masculino que, mesmo não sendo gênios, são atores de seu tempo, construindo uma estética que reflete os questionamentos de sua época. São excluídas, assim, do protagonismo da história da arte. O gênio isolado não gera genealogia, o movimento coletivo sim.

Não deveria ser necessário, mas vale esclarecer que isso tudo se dá por razões absolutamente sociais, e não estéticas. Equivocam-se aqueles que consideram, ingenuamente, que a obra de uma compositora difere daquela de compositores homens por ser mais emotiva, mais sensível, mais delicada, ou outras características erroneamente atribuídas ao universo feminino. Ainda que as questões que envolvam o “ser mulher” sejam diferentes das questões do mundo dos homens, e que isso certamente se veja refletido na produção artística, não é diferente do que se passa entre a diversidade de artistas de diferentes partes do mundo, que carregam sua história, suas angústias, seus anseios. Isso não significa que as questões de gênero não devem passar pelo pensamento acerca da música. Pelo contrário, apenas significa que não se deve fazer uma cisão estética entre a obra de homens e a obra de mulheres.

A flautista Cássia Carrascoza na gravação de seu álbum Tempo Transversal (Selo Sesc, 2017) | Foto: Alexandre Nunis

Como sair dessa?

Para refletir sobre tudo isso e para lutar por seu direito à visibilidade, uma grande quantidade de compositoras tem se articulado em grupos e discutido a respeito de música e da cena musical de concerto contemporânea. Não apenas para debater, mas para atuar nessa cena. Ainda, mais do que isso, para mostrar que os estudos de gênero têm sim relação com a música, como afirma em entrevista a professora Isabel Nogueira, da Universidade do Rio Grande do Sul — UFRS, articuladora do Coletivo Medula, grupo de pesquisa em criação sonora que desenvolve trabalhos musicais com Linda O Keeffe (Reino Unido), Maia Koenig (Argentina) e Leandra Lambert (Brasil), além de integrar o Grupo de Pesquisa em Estudos de Gênero, Corpo e Música e os coletivos e redes feministas Female Pressure, Feminoise Latinoamerica e WISWOS — Women In Sound Women On Sound.

Sonora — Músicas e Feminismos

Um dos grupos de maior atuação no Brasil é a rede colaborativa Sonora — músicas e feminismos. O coletivo surgiu em abril de 2015 a partir da necessidade de trazer visibilidade e possibilitar o diálogo sobre o trabalho artístico das mulheres. O grupo reúne artistas e pesquisadores/as interessados em manifestações feministas no contexto das artes. Desde o início de suas atividades, realiza reuniões semanais presenciais no Departamento de Música da ECA-USP com apoio do NuSom — Núcleo de Pesquisas em Sonologia da USP. Sonora propõe a criação e ocupação de espaços, a realização de pesquisas e debates, e está envolvida em atividades musicais de diversas vertentes.

Suas atividades são pautadas por cinco eixos regulares: um Grupo de Estudos (15 edições desde 2015), que busca realizar um levantamento do repertório composto por mulheres na música experimental e contemporânea por meio de sessões de escuta, além de promover leituras e discussões de textos sobre questões de gênero, musicologia feminista, dentre outros; a série Vozes (13 edições), que recebe mulheres artistas para apresentar e falar sobre seus trabalhos; a série Visões (10 edições), que recebe pesquisadoras/es de diversas áreas para apresentar trabalhos sobre teorias e epistemologias feministas; a série Experimenta (1 edição), dedicada ao compartilhamento de práticas diversas através da realização de oficinas ligadas à música, som, tecnologia e áreas afins; e a série Escuta (2 edições), dedicada a performances relacionadas à temática de gênero, seguidas de conversa.

A rede é formada por compositoras atuantes na cena paulista. Inclui Valéria Bonafé, que integra o NuSom, e tem tido suas obras executadas em festivais e eventos, além de uma composição gravada pela Camerata Aberta no CD Sobreluz, lançado em 2019 pelo Selo Sesc. Ela participou também do ciclo de discussão “Diálogos prismados”, atividade reflexiva com curadoria de Camila Fresca e Marici Salomão promovido pelo Theatro Municipal na ocasião da temporada da ópera p r i s m. Desse evento também participaram nomes como Anna Maria Kieffer, Cláudia Toni, Ligiana Costa, Livia Sabag, dentre outras.

Atualmente, a Sonora tem como membros, além de Bonafé, Ana Laura Mathias Gentile, Carolina Andrade Oliveira, Daniela Souto, Davi Donato, Eliana Monteiro da Silva, Flora Camargo Gurfinkel, Flora Holderbaum, Francisco Lauridsen Ribeiro, Lílian Campesato, Lúcia Esteves, Manon Ribat, Mariana Carvalho, Marina Mapurunga, Tide Borges e Vanessa de Michelis, entre outras.

Grupo de Pesquisas em Estudos de Gênero, Corpo e Música

Em seu artigo Mujeres en la música experimental y colectivos feministas en estudios sonoros en Brasil, a professora Isabel Nogueira mapeou grupos brasileiros dedicados à reflexão acerca da produção e ocupação feminina da música contemporânea, tendo listado coletivos, festivais e encontros com esse fim.

A autora inicia esse trecho de seu artigo discorrendo a respeito do coletivo que coordena, da universidade em que leciona, o Grupo de Pesquisa em Estudos de Gênero, Corpo e Música — UFRGS. A proposta é abordar diversas expressões musicais, dentre música de concerto, música experimental, e mesmo música popular, alinhadas com uma abordagem interdisciplinar que reúne performances e estudos teóricos sobre as diversas esferas da criação musical. As linhas de pesquisa contempladas pelo grupo são “Música, Gênero e identidade” e “Performance e processos criativos”. Integram o grupo os pianistas Giulia Nakata, Mari Brito e Jairo Thiersch, além do professor Felipe Merker, a produtora cultural Alice Castiel e a artista visual Sofia Pulgatti. Durante o ano de 2018 promoveram ciclos de concertos de músicas de mulheres no Instituto de Artes.

Feminaria Musical

Na Universidade Federal da Bahia, reúne-se o Feminaria Musical. Criado em 2012, o grupo de pesquisa e experimentos sonoros faz parte da linha de pesquisa “Gênero, Cultura e Arte” do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), e tem como proposta criar um espaço de discussão, reflexão, experimentação e intervenção artística a partir de parâmetros etnomusicológicos feministas. Como outros grupos, consideram não somente as questões de gênero e sexualidade, mas também as de raça e etnia. Além de contar com professoras, professores, alunas e alunos, o grupo recebe frequentemente artistas e pesquisadores de fora da universidade, sempre no intuito de discutir a produção artística e intelectual envolvendo a questão de gênero e suas derivações, como feminismo negro, heteronormatividade, teorias queer, dentre outras.

Dissonantes

A série Dissonantes, organizada por Renata Roman e Natacha Maurer, acontece em São Paulo, em diferentes espaços, e é dedicada a ampliar a participação das mulheres na cena da música experimental. Em sua curadoria, convida tanto mulheres quanto grupos nos quais ao menos metade dos integrantes seja do sexo feminino. Assim, a série funciona como um espaço de articulação e troca, promovendo não somente a visibilidade, mas também a colaboração entre compositoras, musicistas e públicos femininos.

Sopapo Mulheres

Sopapo de Mulheres é um coletivo independente e multidisciplinar de Porto Alegre dedicado a desenvolver projetos que relacionem mulher, arte e meios de comunicação, com o objetivo de trabalhar o tema da autoestima de mulheres negras. Dentre diversas outras vertentes de atuação, o grupo realiza um programa de rádio, Ruídos Urbanos, que parte de uma investigação dos sons do cotidiano, para a criação de peças sonoras de música experimental.

Sonora Ciclo Internacional de Compositoras

O festival Sonora Ciclo Internacional de Compositoras surgiu da iniciativa da musicista Deh Mussulini para dar voz às muitas mulheres criadoras nas artes sonoras, que não encontram espaço nos festivais e salas de espetáculo. Assim, lutam por um maior equilíbrio no mercado musical, sobretudo em funções específicas como as de compositoras, regentes, instrumentistas e arranjadoras. Ainda que seja mais focado na música popular, frequentemente recebe em sua programação musicistas que se dedicam à música de concerto contemporânea, assim como à música experimental, como Catarina Domenici, Ana Fridman, Alessandra Bochio, Medula, Cuca Medina. Tendo surgido no Brasil, o festival já chegou a 16 países, sendo que 74 cidades se inscreveram para realização do Sonora 2018.


“Trata-se de produção musical contemporânea, que reflete os anseios de seu tempo, de sua região, de sua cultura.”


Além desses, existem outros festivais e coletivos que não trazem a questão feminista em seu cerne, mas que buscam um equilíbrio de gênero em sua curadoria, como o Ibrasotope, o FIME — Festival Internacional de Música Experimental, o EIMAS — Encontro Internacional de Música e Arte Sonora, o Encun — Encontro Nacional de Criatividade Sonora, dentre outros.

Como dito anteriormente, a produção de mulheres não difere da produção masculina de música no que se refere a características artísticas. Trata-se de produção musical contemporânea, que reflete os anseios de seu tempo, de sua região, de sua cultura. O desequilíbrio no mercado não encontra, portanto, justificativas estéticas, mas reproduz um pensamento hegemônico, calcado em preconceitos alinhados com um viés patriarcal que marca a cena artística e cultural.

Esses coletivos de compositoras estão dando importantes passos para visibilizar sua produção, além de escancarar essa discrepância. Mas o que o outro lado dessa equação, a população que ouve música, pode fazer no sentido de caminhar para uma relação de maior igualdade? Enquanto público de música, é fundamental questionarmos festivais e séries de concertos com forte desequilíbrio entre gêneros, equipes curatoriais sem a presença de mulheres, ou conjuntos e coletivos formado somente por músicos homens. Mas, sobretudo, consumir música (e outras formas de arte) criada por mulheres: frequentar concertos, comprar CDs, escutar sua produção nos serviços de streaming, seguir e divulgar a agenda desses e de outros coletivos nas redes sociais. Enfim, reconhecer a mulher na curva.

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