Entre os delírios progressivos dos Mutantes e do Terço, um disco avassalador em meados dos anos 70. Em Busca do Tempo Perdido por Regis Tadeu
Regis Tadeu é jornalista e crítico musical, trabalha no Programa Raul Gil desde 2010, atuando como jurado e produtor musical; tem seu próprio canal no YouTube e site; e é consultor artístico e produtor/apresentador dos programas Rock Brazuca e Lado Z na Rádio USP FM (93, 7 — São Paulo). Trabalhou como colunista do Yahoo de 2010 a 2017, onde também produziu e apresentou o programa Na Mira do Regis; e foi editor/diretor de redação por mais de quinze anos das revistas Cover Guitarra, Cover Baixo, Batera e Teclado & Áudio. É baterista do grupo Muzak.
Este texto faz parte da série ÁLBUM — 10 ANOS: DISCOS PARA CONHECER promovida pelo Sesc Belenzinho no mês de abril de 2021 no ambiente digital. O ÁLBUM é um projeto que nasceu em 2011 e trouxe aos palcos da unidade a performance integral de discos importantes da história da música brasileira. Nesta edição virtual, 12 discos brasileiros de gêneros e épocas distintos foram selecionados para escrutínio de jornalistas, críticos e pesquisadores musicais. Confira o livreto com a série completa aqui neste link.
Um único álbum. Apenas um e nada mais. Quem ainda tem o LP original trata o disco como um de seus pertences mais valiosos, enquanto quem se desfez dele sofre de um arrependimento amargo. Muitas vezes, isso é um resumo de nossas vidas: o dilema entre a manutenção e guarda daquilo que amamos a qualquer custo e o desapego circunstancial que, muitas vezes, faz com que nunca mais tenhamos condições de reparar o erro. Sim, é a vida.
O lugar onde vivemos — com quem amamos ou em perfeita harmonia com a solidão, como é o meu caso — precisa ter um espaço em que LPs e/ou CDs sejam tratados como objetos sagrados, como se cada um deles fosse um portal para novas dimensões sonoras e, por que não dizer, culturais em todos os sentidos. O disco a respeito do qual você está lendo neste exato momento tem muito a dizer a respeito disso, mesmo depois de décadas de seu lançamento original. Sim, Em Busca do Tempo Perdido nos ensina muitas lições, musicais e filosóficas, a respeito dessa devoção.
Ao emblematizar a importância que um único trabalho na discografia de uma banda pode ter na construção de uma personalidade musical por parte do ouvinte em seus anos de formação, o álbum é um retrato de uma época em que fazer rock and roll no Brasil era uma epopeia para poucos.
“Não foi diferente para cada um dos integrantes do grupo batizado como O Peso. Aliás, a intensidade de cada uma das faixas justifica plenamente o nome da banda.”
Para as bandas de rock brasileiras da época, absorver as influências de seus pares internacionais era o melhor caminho para a diferenciação, mesmo que faltassem por aqui mínimas condições tecnológicas para se chegar próximo do som que se fazia nos Estados Unidos e na Inglaterra, só para citar dois “cenários dos deuses” para roqueiros de todas as idades. Isso propiciou igualmente um atraso na cronologia natural do que acontecia por lá, mas era o que tínhamos para o “jantar”.
Não foi diferente para cada um dos integrantes do grupo batizado como O Peso. Aliás, a intensidade de cada uma das faixas justifica plenamente o nome da banda. Em 1975, entre os delírios progressivos dos Mutantes e do Terço, e a celebração pesada, pura e simples do Made in Brazil e Casa das Máquinas, a banda surgiu no Rio de Janeiro com um álbum simplesmente avassalador.
Foi o resultado de um contrato assinado com a gravadora Polydor depois de impressionar a todos durante um show realizado no festival Hollywood Rock, em que Rita Lee, Raul Seixas, Mutantes, Celly Campelo e Erasmo Carlos eram as grandes atrações; existe, aliás, um álbum do evento com os mais falsos aplausos de plateia que você pode imaginar, mas isso é outra história.
Nada mal para uma banda com tão pouco tempo de existência, já que não fazia nem um ano que o cearense Luiz Carlos Pôrto havia retornado ao Rio de Janeiro depois de se apresentar ao lado do então parceiro Antonio Fernando na edição de 1972 do celebrado Festival Internacional da Canção, defendendo a música de autoria da dupla, “O Pente”, que fazia alusão sutil ao ato de preparar a maconha para enrolar um baseado:
“Estava lá na Barra, de repente começou a pintar
muita mina, muita gente de mansinho começou a falar
eu disse pente, pente, pente, pente
pra poder fechar
já era quase hora nem aurora muito dia de se clarear
e eu na minha, bem na minha, enquanto o mundo começou a grilar
e de repente muita gente, muita gente, começou a sacar
a minha maneira, meu jeitinho bem faceiro de comunicar
e perguntaram o que havia, o que é que era que estava a brilhar
eu disse a ele que a luz, a luz da lua, a luz do grande luar
sem dar bandeira nem bobeira, bem tranquilo, eu fumei meu plá”.
Claro que não foi classificada. Chegou até a ser lançada em um compacto de reduzidíssima tiragem e não vendeu absolutamente nada. Segundo fontes da época, Pôrto chegou a gravar mais uma canção, “Mundo Sol”, uma parceria com o poeta Cristiano Lisboa, mas essa jamais foi lançada.
Aliás, um detalhe para contextualizar melhor o que estava rolando, para quem não lembra: foi nesse mesmo evento que o então produtor Raul Seixas se revelou como cantor/compositor com “Let Me Sing, Let Me Sing”, Sérgio Sampaio emplacou seu único grande sucesso “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”; e rolou a derradeira aparição de Rita Lee com os Mutantes em “Mande um Abraço Pra Velha”.
“A banda apresenta uma das levadas clássicas do rock and roll praticado no Brasil naqueles tempos, muito influenciada pelos Rolling Stones, mas com uma força de interpretação estonteante, principalmente pela intensidade do vocal de Pôrto.”
Foi justamente quando retornou ao Rio que o simpático, boa praça e carismático Pôrto usou seus contatos anteriores para arregimentar alguns músicos talentosos, com a ajuda do então produtor Guti de Carvalho (futuro diretor artístico da gravadora Warner no Brasil e irmão do baixista Dadi e do tecladista Mu, que todo fã de música brasileira, especialmente dos Novos Baianos e da Cor do Som, conhece muito bem), e montou O Peso, cuja excelência no som logo fez com que recebessem a incumbência de ser a banda de apoio de um proeminente artista paraibano também radicado na cidade: Zé Ramalho! Daí veio o contrato e a participação no festival que contei anteriormente.
Intitulado a partir de uma clara associação com um dos livros mais importantes do escritor Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido abre com “Sou Louco Por Você”. A banda apresenta uma das levadas clássicas do rock and roll praticado no Brasil naqueles tempos, muito influenciada pelos Rolling Stones, mas com uma força de interpretação estonteante, principalmente pela intensidade do vocal de Pôrto. O piano à la Jerry Lee Lewis tocado por Constant Papineanu se insinua por entre as levadas de guitarra do americano (radicado por aqui desde que resolveu visitar o pai) Gabriel O’Meara, que já tinha sido integrante da banda de Gal Costa (na qual foi o substituto de Pepeu Gomes, que, por sua vez, havia entrado no lugar do lendário Lanny Gordin e resolvera sair para integrar os Novos Baianos) e da banda de Erasmo Carlos no início daquela década. Tudo secundado com enorme eficiência pela “cozinha” rítmica formada pelo baixista Carlinhos Scart e o baterista Geraldo D’Arbilly. Identificada com o ideário hippie daqueles tempos no Brasil, a letra é claramente a declaração de um cara obcecado por seu amor:
“Se eu soubesse como lhe dizer
sem você não posso mais viver
eu falo pra você
eu vivo por você
eu sou louco por você
já não posso mais viver assim
sem saber o que será de mim
você longe daqui
e eu correndo te dizer
eu sou louco por você
olha um pouco apenas para mim
veja se estou feliz assim
você longe daqui
e eu correndo te dizer
eu sou louco por você
eu sou louco, muito louco
por você”.
Quem é daqueles tempos facilmente sabe que essa é uma abordagem romântica.
Uma surpresa surge logo na segunda faixa: uma balada! E das mais lindíssimas, pois “Não Fique Triste”, com um astral que remete imediatamente ao som que Rod Stewart fazia com o Faces, é daquelas de fazer com que uma lágrima furtiva escorra em nossas faces por conta da rusticidade da voz de Pôrto e do que ele tinha a dizer:
“Não fique triste
venha ser minha
com seu melhor sorriso
não fique triste
pois eu lhe digo que felicidade até existe
não tenha medo
se não há segredo entre nós
venha dos sonhos
de olhos risonhos
venha quando ouvir minha voz
você como a noite
eu espero lhe ver chegar
nos teus braços quero ficar
e sempre juntos
iremos então passar
a ver a noite inteira chegar”.
A sequência com “Me Chama de Amor” faz todo sentido em relação à canção anterior, principalmente pela melancolia romântica reinante, com o vocalista nos levando junto na busca pela musa de seus sonhos:
“Quantos lugares
procuro por você
se tu soubesses
o quanto eu andei
cada noite fria
que tive que passar
às vezes parecia que o tempo ia parar
me chama
me chama de amor
meus olhos pesam
e chegam a fechar
meu corpo cansado
pede pra parar
em cada esquina
outro ponto final
não desanimo
sei que vou te encontrar
quantos caminhos
eu já caminhei
e tantos outros
que ainda não andei
meu passo é firme
e perto estou, eu sei
daquela estrada
que me leva até você”.
O piano sacana de Papineanu abre as portas do rock and roll descabelado na divertida e sacolejante “Só Agora (Estou Amando)”, pontuada pelos licks faiscantes da guitarra de O’Meara, um confesso adepto dos modelos da Gibson — embora, segundo amigos veteranos dos estúdios naqueles tempos, tenha gravado vários solos ao longo do álbum com uma Fender Stratocaster emprestada pelo guitarrista do grupo Vímana, um jovem chamado Lulu Santos, que tinha como companheiros ninguém menos que Lobão e Ritchie — e em sinergia com o convidado Zé da Gaita, que manejou o instrumento com sutileza e comedimento corretos em relação ao que a música pedia. A letra é de uma simplicidade típica para cantar junto com facilidade:
“Só agora estou amando
estou amando você
eu agora estou precisando
do amor outra vez
já procuro há tanto tempo
o que pode estar com você
estou cansado de sofrer
diga que seu amor só é meu
que nada vai tirar você de mim
seu amor é como vidro
se deixa partir
separação sempre há de existir”.
Não é muito diferente da temática “popularesca” do universo sertanejo atual, mas a embalagem sonora roqueira é, obviamente, muito mais empolgante.
“Eu Não Sei de Nada” e a faixa-título trazem a bateria de Carlos Graça, já que D’Arbilly saiu da banda antes que o disco fosse totalmente gravado. A primeira é um espetacular hard rock blues suingado comandado por O’Meara e Scart, em perfeita sincronia e simbiose com o vocal absurdamente potente de Pôrto. A letra esconde muito bem uma crítica à censura vigente naquela época:
“Eu não sei de nada
e acho que nem vou saber
eu não sei de nada
não vou me comprometer
cada vez que você fala
faço tudo, tudo pra esquecer
o que se ganha com mentiras
leva pouco tempo pra perder
eu não tenho nada
nada tenho pra perder
tanta coisa pra contar
ao mesmo tempo, não!!!
fique aqui no meu lugar
não sei pra onde eu vou”.
Os versos espalhados ao longo de mais de seis minutos de duração são interrompidos por uma “sessão instrumental viajante” no meio, e tudo isso faz com que a música possa ser incluída em qualquer coletânea do estilo ao lado de grandes nomes internacionais, como o Free e o Ten Years After. Já a segunda é um exemplo de como a banda dominava a arte de fazer um folk rock ledzeppeliano sem abrir mão de uma brasilidade percussiva mais próxima do que fazia o guitarrista Carlos Santana e novamente enfatizar o discurso libertário tão comum naqueles tempos de tanta repressão:
“Junto de você
eu acho que essa espera terminou
minha alma peregrina em seu peito abortou
cansado e sem rumo, no seu mundo eu entrei
quanto tempo eu levei pra encontrar você?
a paz já esquecida junto de você eu procurei
e o tempo perdido, entre seus carinhos eu deixei
no entanto, meu descanso é apenas uma ilusão
sua calma é passageira, assim como é seu coração
vou, vou, vou pra qualquer lugar
cigano e solitário, o meu destino é divagar
junto de você
eu acho que essa espera terminou
minha alma peregrina em seu peito abortou
mas seu sossego incerto vibra uma paz que aqui não há
e outra vez amiga, solidão vem me buscar”.
“Blues”, dedicada com humildade e respeito ao mitológico B.B. King, entrega aquilo que promete e não deixa dúvidas de quanto a vertente britânica do gênero influenciava a banda na época. Pôrto “dava bandeira” do quanto Robert Plant não saía dos alto-falantes de seu equipamento, já que ele e seus amigos usaram como referência o que o Led Zeppelin fez em seu disco de estreia com “You Shook Me”, de Willie Dixon. Até mesmo a timbragem da guitarra de O’Meara e seu “duelo” com Zé da Gaita remetem a Jimmy Page. O resultado é de uma honestidade difícil de encontrar em qualquer banda brasileira da época que resolvesse enveredar por essa seara sônica. A letra, de uma simplicidade quase tocante quando inserida no arranjo dos instrumentos, discute a importância que se dava ao materialismo da sociedade e de como isso era um empecilho para as relações amorosas:
“Se eu fosse um homem rico
será que você gostaria mais de mim?
meu amor eu dou de graça
mas você cobra tudo mesmo assim
por isso, baby, eu vou me embora
vou dar o fora daqui
eu estou pra você, baby
mas você não está para mim”.
Assim como ocorreu com “Eu Não Sei de Nada”, chega a ser intrigante — quase um mistério — o fato de o Departamento de Censura Federal da época não ter encrencado com a letra de “Lúcifer”, uma canção que certamente deixou Raul Seixas orgulhoso tanto pelo discurso quanto por ser um rock and roll extremamente sacolejante. Com O’Meara usando Jimmy Page mais uma vez como referência em seus riffs e licks (Não tem como não lembrar de uma das clássicas canções do Led Zeppelin, “Celebration Day”, em certos trechos) e adicionando levadas percussivas no trecho final, essa é uma daquelas canções que dá vontade de ouvir de novo ao final da audição e cantar a letra a plenos pulmões só para sacanear os parentes e amigos evangélicos:
“Estou no mundo
mas minha alma está longe daqui
eu venho do fundo da terra
mas mesmo assim
pode deixar comigo
que eu me encarrego da tua felicidade
eu vou tirar tuas mágoas
em troca quero tua alma
vou espalhar pelas águas
água preta do fundo do mar
a vida é curta
mas curta é pra curtir
você irá longe
mas longe perto de mim
pode deixar comigo
que eu tomo conta de todos meus amigos
Lúcifer reina no mundo
Lúcifer reina no fundo
do coração de todos vocês”.
“Boca Louca” é um daqueles temas inesquecíveis para qualquer roqueiro que se preze, já que é uma mistura de Foghat, Mountain e Black Oak Arkansas, bandas muito queridas pelos roqueiros “setentistas” até mesmo nos dias atuais. Com ótimo solo de guitarra de O’Meara, a canção tem uma letra que aborda o inconformismo contra a “sociedade careta” da época de maneira direta e divertida:
“Hoje me esbarro no mundo
me calo no fundo
deixo o tempo passar
quero ver se o mundo aguenta
essa boca louca
e o tempo vai passar
com o tempo isso vai passar
eu não quero papo errado
já fiquei cansado
não vou mais falar
sempre que eu tento sair do escuro
dá vontade de parar”.
Nem mesmo o barulho falso de plateia consegue tirar o brilho do rock suingado “Cabeça Feita”, composto por Guilherme Lamounier e Tibério Gaspar, duas figuras importantíssimas na música brasileira. Lamounier foi cantor/compositor/produtor de primeira linha e lançou alguns discos excelentes, além de ser o autor de “Enrosca”, eternizada por Fábio Jr.; já o violonista/produtor/compositor Gaspar foi “apenas” o autor de clássicos como “Sá Marina” e “BR-3”, celebradas nas vozes de Wilson Simonal e Tony Tornado. Só pelo título e o contexto da época já dá para sacar que a letra faz alusão à maconha de modo menos implícito:
“Hoje qualquer hora é hora
e por enquanto qualquer dia é dia
não sei se fico ou se vou embora
é tanto tempo que outro tempo pia
não sei se sei de tudo
se calo ou fico mudo
estou numa boa quase sem dinheiro
e o amor que me faz inteiro
vou na que pinta
e na que vai pintar
com a cabeça feita pra não dar bandeira
a cabeça feita não marca bobeira
por isso não sou eu quem chora
e ainda agora não sou eu quem dança
naquela mesma de ficar por fora
chupando dedo balançando a pança
estou numa boa quase sem dinheiro
e o amor que me faz inteiro
vou na que pinta, e na que vai pintar”.
A capa também chamou a atenção, já que as imagens da banda elegantemente trajada, escondida dentro de um banheiro para não ser farejada por uma fêmea de hipopótamo com o seu filhote, e o contrário acontecendo na contracapa, eram cenas quase surrealistas que até hoje suscitam inúmeras interpretações. Isso sem contar a orientação contida no encarte, junto com as fotos dos integrantes: “para se obter um bom resultado auditivo é necessário que este disco seja ouvido em um equipamento com potência mínima de 40 watts”. Coisas dos anos 1970.
Infelizmente, a carreira da banda foi curtíssima. O fim pode ser explicado tanto pelo pouco alcance obtido pelo álbum à época de seu lançamento, devido a uma tiragem reduzida — o que logo tornou o LP um item disputadíssimo entre os colecionadores de vinil — como pelas trocas de formações em um curtíssimo espaço de tempo. Em uma delas, até o então convidado Zé da Gaita se tornou o vocalista. Além disso, Pôrto estava longe de encarnar o vocalista nordestino com um som de fortes influências regionalistas, assim como faziam com grande sucesso alguns de seus conterrâneos, como Ednardo, Fagner e Belchior, que já faziam a cabeça de todos com discos que vieram a se transformar, respectivamente, em clássicos indiscutíveis da música brasileira: O Romance do Pavão Mysteriozo (1974), Ave Noturna (1975) e Mote e Glossa (1974). No caso de Belchior, ele ainda soltou em 1976 sua obra-prima, Alucinação, ao passo que Zé Ramalho estourou em 1978 com o seu primeiro e autointitulado disco solo. Todo esse cenário era muito favorável a quem vinha do Nordeste, mas Pôrto — que não tinha o menor sotaque cearense em sua perfeita dicção para o rock and roll — nunca teve essa chance com o Peso porque o som intensamente roqueiro da banda era demais para a sensibilidade dos fãs da poesia da “turma do Nordeste”.
Ao longo das décadas subsequentes, a banda chegou a ensaiar uma volta, mas nada foi além de alguns shows esporádicos. Reza uma lenda que Luiz Carlos Pôrto chegou a gravar pela Philips um volume de material que poderia ser incluído em três LPs, mas até hoje nada teria sido lançado por conta de sua intransigência em relação a qualidade das gravações e dos arranjos. A única exceção é um autointitulado LP de 1983, igualmente raro nos dias de hoje. Tudo se complicou ainda mais três anos depois, quando Pôrto sofreu um terrível acidente de moto em Fortaleza e, além dos ferimentos, passou a sofrer de esquizofrenia. Nunca mais subiu em um palco ou entrou em um estúdio de gravação.
“Mesmo nos dias de hoje, 46 anos depois e relançado em CD em edições igualmente esgotadas e raras, Em Busca do Tempo Perdido contém composições surpreendentes que soam ‘inoxidáveis’ mesmo com o passar das décadas.”
Por conta de sua reputação como excelente guitarrista, Gabriel O’Meara não teve dificuldades em arrumar novos trabalhos. Erasmo Carlos o chamou para gravar novamente com ele; já havia feito isso em 1974, no ótimo 1990 — Projeto Salva Terra!, e também no álbum A Banda dos Contentes, de 1976, assim como fez Maria Bethânia ao requisitar seus serviços em Pássaro Proibido, lançado no mesmo ano. Isso sem contar trabalhos com o amigo de longa data Tim Maia, Zé Ramalho e Sandra de Sá. Chegou até a produzir o primeiro LP do sambista Almir Guineto! Atualmente, voltou a morar nos Estados Unidos e trabalha como tradutor.
Geraldo D’Arbilly, depois de sair da banda, virou proprietário de uma casa de blues no Rio e depois se mandou para a Europa, onde foi percussionista do grupo de salsa/jazz britânico Blue Rondo a la Turk e tocou com vários grupos, como The Pale Fountains, Fun Boy Three e The Colourfield, além de trabalhar em produções de David Bowie, David Byrne e do Madness. Quando voltou ao Brasil, produziu álbuns do Ira! (Meninos da Rua Paulo, de 1991), Gueto (Estação Primeira, de 1987), Inocentes (Adeus Carne, também de 1987), entre outros, além de shows de Bruce Dickinson, Dio e James Brown no Brasil. Hoje tem seu próprio estúdio e selo, o Atomic Record.
Constan Papineanu também seguiu em frente, colocando seus teclados e piano a serviço de um álbum bastante conhecido do público roqueiro da época, É Proibido Fumar (1978), da banda A Bolha (cujo baterista era Serginho Herval, que anos depois ficaria famosíssimo com o Roupa Nova), além de integrar a banda Ponte Aérea, com quem gravou apenas um autointitulado álbum em 1981, e nas décadas seguintes trabalhar em discos e shows com a cultuada dupla Sá & Guarabyra e, ocasionalmente, com Walter Franco, como no álbum Tutano, de 2001. Hoje trabalha com composições e produções em seu próprio home studio. Já o Carlinhos Scart se afastou da música e vive até hoje recluso em Nova Friburgo (RJ).
Mesmo nos dias de hoje, 46 anos depois e relançado em CD em edições igualmente esgotadas e raras, Em Busca do Tempo Perdido contém composições surpreendentes que soam “inoxidáveis” mesmo com o passar das décadas. É o retrato perfeito de como uma banda extremamente talentosa e tendo um álbum sublime em seu currículo simplesmente derreteu frente às dificuldades do mercado, ao descaso de sua própria gravadora e à indiferença de um público roqueiro ávido por representantes nativos, mas não o suficiente para sustentar uma carreira. Se tudo isso aconteceu com bandas muito mais bem estabelecidas em termos comerciais e profissionais — vide o que aconteceu com os Mutantes, O Terço, Casa das Máquinas, Joelho de Porco, Terreno Baldio e Som Nosso de Cada Dia ao longo de poucos anos de existência entre a segunda metade da década de 70 e o início dos anos 80, a tal “geração BRock” –, imagine como foram as coisas para quem só estava a fim de tocar e fazer um som legal?
Ouvir Em Busca do Tempo Perdido nos dias de hoje não é apenas uma saudosa e gloriosa volta ao passado. É testemunhar a impressionante longevidade, sem envelhecer um segundo sequer, de um repertório que não deixa qualquer dúvida a respeito de um álbum indiscutivelmente antológico dentro da História (sim, com maiúscula mesmo) do rock nacional em todos os tempos!
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