Por Desiree Helissa Casale
“(…) personagens de ficção ou mulheres reais, desde as mais remotas épocas, de mãe para filha e de avó para neta, vieram nos bastidores tecendo seus fios, emendando carreiras, dando pontos e fazendo nós numa espécie de grande texto coletivo: o tecido da História composto pelas linhas entremeadas das histórias”. (MACHADO, 2013, p.194).
O processo de bordar, além de um trabalho que evoca íntima relação com o tempo, é o ato de tornar perpétuas histórias, memórias e desejos. Ao atravessar repetidamente agulha e fio no tecido, as participantes do ateliê aberto Quem conta um ponto? teceram, de maio a novembro de 2024, ideias, memórias e histórias, costurando esse processo em coletividade, aprofundando suas pesquisas e subjetividades, em espaço que corriqueiramente acontece nas tardes de quinta-feira.
“Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo” (BENJAMIN: 1993 pág. 205).
A Mostra de processos foi costurada por 15 bordadeiras e 1 coletivo. As artistas, em sua maioria mulheres residentes dos bairros da Casa Verde e Limão, na zona norte de São Paulo, teceram com afinco suas histórias ao longo de 9 meses.
Em geral, cada uma dessas artistas buscaram um estreitamento consigo mesmas e suas memórias como se olhassem seus trajetos de vida num processo curatorial, elencando figuras e símbolos como relicários.
Em contato com os trabalhos, percebemos a diversidade e riqueza dessas contadoras de histórias.
O cuidado nos trabalhos de Salime Hage, Andrea Cristina e Rita Alves retomam lugares de saudade, acolhida e afeto que já fizeram ou fazem parte de em seus cotidianos.
Salime Hage
Rita Alves
A identidade salta alto em bordados que narram o pertencimento de mulheres ao se reconhecerem em figuras Felinas, como no trabalho de Gileide Bispo dos Santos, retratando Jaguatiricas, e no de Flora César Guabiraba, brincando com a figura curiosa e observadora dos gatos, fazendo um convite para contemplar o cotidiano através de um jogo de esconde-esconde felino entre cortinas. O manto bordado de Alcione Barreto – obra que evoca referências diversas: o manto Tupinambá, devolvido pela Dinamarca, o samba enredo Nosso destino é ser Onça, de Gabriel Haddad e Leonardo Bora e livro de Alberto Mussa, Meu destino é ser onça – alinhava pertencimento e ancestralidade.
Flora César e Sonia Maria
Alcione Barreto
Outros trabalhos demonstram o caráter investigativo e metafórico. Na pesquisa de Veroca Saura, o olhar ganha massa, textura de fios e pontos, disparando o pensamento sobre Olhar além do véu, ou Olhar sem medo, títulos dos trabalhos que instigam a reflexão sobre a produção artística feminina em meio ao cotidiano de cuidados familiares, domésticos e do casamento.
Veroca Saura
Com a obra de Francisca Bernadete, podemos brincar de olhar e ser olhado pela perspectiva de um bordado amuleto com o título Zoião.
A palavra torna-se imagem ao ser tecida nos trabalhos de Helô Loschi, com folhas secas e haicais de Paulo Leminski em tecidos com impressões botânicas, juntando o perpétuo e o efêmero. Melissa Batista Cruz trabalha um jogo de contraste de luz e sombra bem traduzido em pontos de bordado que variam a textura e a luz em meio a letra da música Poema de Ney Matogrosso, e Lara Araujo pousa na simplicidade direta de autoria própria ao mesclar imagem e palavra.
Helo Loschi
De que ponto as idéias germinam?
As ideias germinam nos pontos e conversas do cotidiano, em pequenos momentos de respiro, contemplação e poesia: na obra de Vanessa Nunes ao refletir sobre suas ações no chão de escola a partir dos textos do livro Canção para Ninar Menino Grande de Conceição Evaristo; na obra de Ivonete, que se permite ao encanto pelo movimento que a dança provoca no corpo; e nos 3 trabalhos de Maria de Lourdes, um espaço se abre para a contemplação e reflexão sobre tempo, descanso e formas de alimentar a alma.
Vanessa Nunes
Ivonete
Semelhante é a vivência de Sonia Maria Cardoso, que amplia sua percepção de relação e cuidado com as plantas, em um processo mútuo.
Vivenciar e dar espaço para um ateliê aberto é poder experimentar esses espaços de reivindicação, desses tempos de criar e trazer luz a nossas experiências de vida e de SER no mundo. Jorge Larrosa, pedagogo e filósofo espanhol, desperta-nos a importância de dignificar a experiência e reivindicar um tempo em que a arte, a incerteza, a subjetividade e a imaginação possam ser acolhidas sem tanto receio no tempo presente.
“Dignificar a experiência, reivindicar a experiência, e isso supõe dignificar e reivindicar tudo aquilo que tanto a filosofia como a ciência tradicionalmente menosprezam e rechaçam: a subjetividade, a incerteza, a provisoriedade, o corpo, a fugacidade, a finitude, a vida… Talvez reivindicar a experiência seja também reivindicar um modo de estar no mundo, um modo de habitar o mundo, um modo de habitar, também, esses espaços e esses tempos cada vez mais hostis que chamamos de espaços e tempos educativos” (LARROSA, 2011, p, 24).
A base para a vivência do Ateliê aberto de bordado tem sido sair de um processo solitário de criação e habitar a coletividade criando espaços de rede. Em Mutualismo, trabalho da APD ( Estratégia Apoiador da Pessoa com Deficiência) da Casa Verde, com o grupo Chavosos as terças feiras <3; percebemos as redes tecidas geradoras de ecossistemas de apoio e cuidado, onde Elisabete Araújo, Vivian Bertucceli de Souza, Talita Ramos, Sara Tolentino Alexandre e Daniela Gama trabalharam desde a participação nas aulas de desenho da educadora Tatiane Colevati, estendendo a prática das aulas de desenho e do ateliê vivenciados no Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Casa Verde, para as ações da APD, esticando os fios, entrelaçando-os.
“A Estratégia Acompanhante da Pessoa com Deficiência (APD) foi criada em 2010 como um programa para atender as diversas demandas relativas à dificuldade no cuidado às pessoas com deficiência intelectual, decorrentes de situações de saúde agravadas, envelhecimento da pessoa, seus pais/cuidadores, dificuldade no estabelecimento de redes de suporte para acesso e continuidade na atenção à saúde. (…) Em 2012 foi criado pelo Ministério da Saúde o Plano Viver Sem Limites e publicada a Portaria nº 793, de 24 de abril de 2012 instituindo a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. (…) Além disso, criou serviços na Atenção Especializada, os Centros Especializados em Reabilitação – CER. A partir de então o Município de São Paulo desencadeou um processo de implementação dos NIR de forma a se constituir como CER e fortaleceu a integração das equipes APD nos CER como estratégia de suporte diferenciada para o cuidado às pessoas com Deficiência Intelectual.” (p. 18, Estratégia Apoiador da Pessoa com Deficiência. – APD; · Org. Área Técnica de Saúde da Pessoa com Deficiência · São Paulo, 2024).
Apoiador da Pessoa com Deficiência – APD – 14 pessoas, da APD Casa Verde e Chavosos
O registro desse grupo poderia ser acolhido também no abraço do trabalho de Miriam Fukai, que tece fios, redes, nós, raízes e novos sistemas solares a partir de sentimentos que a acompanham na busca efetiva de rede de apoio para seus pares.
Com quem estamos tecendo? Como tecemos afetos? Como tecemos nossa rede de cuidado?
Tecer também é cuidar dos nós.
O ateliê Quem conta um ponto? segue aberto para quem já borda e para quem nunca bordou; para quem mais quiser partilhar memórias, ou criá-las. É dessa diversidade de pessoas e processos que histórias partem de processos individuais e evocam o coletivo. Afinal, o ateliê de bordado só ocorre em circularidade de afeto e em porosidade com quem o habita, ensina e aprende junto, uma vez que é na convivência que retomamos a nossa humanidade.
“Precisamos nos colocar em uma atitude de aprendizagem, o que quer dizer uma circulação de afetos e ideias através de nós e de outras pessoas na prática”. (Ponce de León ,2016. p.16)
Abaixo, um exercício de descrição dos trabalhos. Os áudios foram gravados pelas próprias autoras dos bordados, as artistas e tecelãs da Casa Verde. E vocês podem ouvi-las descrevendo, a seu modo, em variados tons de voz, sotaques e modos de ler.
Aponte a câmera para o QR-code para ouvir os aúdios
Essa Mostra foi tecida por mãos cuidadosas das equipes do Sesc Casa Verde: do Espaço de Tecnologias e Artes (ETA) Tatiane Colevati e Fabiana Coletta e dos setores Programação, Comunicação, Infraestrutura, Serviços e Alimentação. Toda partilha é um festejo.
Todas as imagens possuem texto alternativo e edição por Michel Enrique e Desiree Helissa como processo da comissão de acessibilidade do Sesc Casa Verde.
Referências do Texto:
BENJAMIN, Walter. “Rua de mão única”. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987
BIENAL , Fundação. “Incerteza viva, processos artísticos e pedagógicos”. In: KASTRUP, Virginia (Org). Educação e Incerteza, Artistas: Felipe Mujica, Rita Ponce de León e Oyvind Fahlström. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016
CHRISTOV, Luisa H. da S. “Contribuições narrativas para a formação de professores”.In: BARBOSA,R.L.L.(Org). Formação de educadores-artes e técnicas-Ciências e políticas.São Paulo:UNESP,2006
MACHADO, Ana Maria. “Texturas: sobre leituras e escritos.” Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2001.
MARTINS. Mirian Celeste.”Pensar juntos mediação cultural:[entre]laçando experiencias e conceitos”, São Paulo:terracota,2014
LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade São Paulo: Revista reflexão e ação santa cruz do sul [online]. 2011. Disponivel em: https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/2444/1898
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