O Laboratório Música em Nuvem do Sesc Carmo propôs para músicos, intérpretes, técnicos e compositores criarem uma canção ao final de 5 encontros. Os percalços, as delícias e o diário de bordo desta viagem estão relatados neste texto. Por Túlio Ceci Villaça
Túlio Ceci Villaça é crítico e editor. Também autor do livro Sobre a Canção: e seu entorno e o que ela pode se tornar (Appris, 2020). Formado em publicidade na ECO/UFRJ, cursou música na Escola Villa-Lobos e na Unirio. Atuou como músico, arranjador, compositor e regente de coros, como arte educador no CCBB-RJ por dois anos. Colabora com publicações digitais sobre música e arte e em artigos acadêmicos.
Nando Motta é designer, ator, diretor de teatro e produtor. Um mineiro apaixonado por pão de queijo (é claro), dono de um monte de cachorros e que adora misturar referências, cores, e ideias em busca de novos arranjos visuais. Acredita e pratica sem pudor o poder do Crtl C + Crtl V = colagem, ressignificação e antropofagia visual.
“Escuta” é o nome da canção gestada nos encontros. A arte é de Nando Motta
“Como nasce uma canção?”, perguntava o teaser do Laboratório Música em Nuvem. Já neste teaser, cada participante tinha sua resposta. E, como não? Afinal, esta inevitavelmente varia de acordo com quem responde, sua vivência, sua especialidade, seu instrumento. Mais ainda, variará a resposta de acordo com a canção, já que cada uma tem sua gênese particularíssima — um acorde ou encadeamento que se insinuou e pediu melodia, uma melodia assoviada que pediu harmonia e/ou letra, um ritmo que pediu discurso, uma ideia sem palavras que pediu expressão. E no banho, no ponto de ônibus, enquanto se ouve outra canção, no ensaio, no exercício do instrumento, na conversa. Perguntado para este mesmo teaser, respondi que, se for uma boa canção, ela pode nascer como menos se esperar.
Isto sem contar a pluralidade de autorias. Pois se a incerteza é desta magnitude para apenas um compositor, cada um que se acrescenta corresponde uma análise combinatória, a potenciação das possibilidades, ao acrescer-se relações interpessoais, complementaridades de talentos (ou de falta deles, vá lá), múltiplas interações que podem se somar ou anular entre si. Que o digam grandes duplas de compositores, Lennon e McCartney, Tom e Vinícius, Roberto e Erasmo. Que o digam os autores de samba-enredo — o da Mangueira, campeã de 2019, tinha seis autores e mais uma não creditada. Quantas dinâmicas de ideias podem surgir? Quantas diferentes canções?
Para completar, chegamos ao Música em Nuvem e sua proposta. Oito músicos e mais de 70 pessoas inscritas, de diferentes formações, fossem ou não musicais, em contato digital para comporem juntas uma canção. Sem dúvida já surgiram inúmeras canções a partir do contato digital em tempos de pandemia. Mas aqui é diferente. Chico Buarque, uma vez, reuniu um grupo excepcional — Francis Hime, João Nogueira, Carlinhos Vergueiro, João Bosco — depois de um jogo do Politheama para compor uma canção. Mas daquela junção de talentos suados e cheios de cerveja não saiu nada, e foi ele quem teve depois de desenvolver o fiapo de ideia que tinha tido e compor praticamente sozinho — com uma discreta participação de Francis — a obra prima “Vai Passar”. E aqui, como se dará?
Cá estamos: Sergio Molina, Marcelo Segreto, Juçara Marçal, Rômulo Alexis, Clara Bastos, Priscila Brigante e Gustavo Lenza — compositores (mais teclados, violão, guitarra), voz, trompete, baixo, baterista, além dos 70 participantes do Laboratório — e eu com a incumbência de assistir, participar e relatar. Tivemos cinco encontros semanais de duas horas cada, para ao fim e ao cabo termos histórias, aprendizado… e uma canção.
Dito isto, começo meu diário de bordo da invenção.
Por onde começar? Quem dá o pontapé inicial do jogo? Naturalmente o capitão, e esta escolha já determina um pouco do caminho inicial. Sergio é o capitão aqui, o coordenador, e foi quem então forneceu o material a servir como ponto de partida dos trabalhos, a semente de um tema musical, ouvido atentamente por quase cem ouvidos. O que nos leva a pensar na escuta, sua imensa importância, e como e quando passar dela.
Um trabalho de equipe à distância como este exige, antes de tudo, saber o momento de ceder a voz ao outro, sem deixar de exercitar a sua quando conveniente ou produtivo. Qualquer dinâmica de grupo tem alguém que fala muito e alguém que fica quieto num canto. Já em uma dinâmica ocorrendo virtualmente, como qualquer professor em sala de aula virtual percebeu nesta pandemia, é possível a um estudante passar em brancas nuvens por um curso inteiro, sem ligar a câmera, nem mesmo o microfone.
Aqui não ocorre diferente. Neste primeiro dia, das três telas cheias de perfis nesta reunião realizada no aplicativo Zoom, cerca de um terço se manifestou em algum momento, incluindo os realizadores do Laboratório, e cerca de metade não chegou a ligar a câmera, contentando-se com o lugar de plateia anônima. Há, evidentemente, uma dificuldade natural de tantas pessoas se manifestarem. Mas há também, da parte de muitos e sensível no ar, um cuidado coletivo em não falar demais, em não atropelar o processo, em fruir o desenrolar dos acontecimentos e a canção em construção. Há, para muitos, tanto o desejo de criar uma canção quanto o de vê-la nascendo, uma curiosidade de como aquilo se dará e quase um medo de, ao se posicionar, desvirtuá-lo, como na física quântica a mensuração de uma característica do elétron torna outra indeterminada.
Por outro lado, talvez pela responsabilidade de dar o pontapé inicial, talvez por entusiasmo próprio do processo de composição mesmo, o material que Sergio trouxe, embora propositalmente incompleto em termos melódicos, veio acompanhado de um proto-arranjo de teclados e percussões eletrônicas que preenchia vários dos espaços onde se esperavam vazios. Este foi um dos pontos mais interessantes do primeiro encontro: a detecção da necessidade de esvaziar aquele pré-arranjo para que a proto-melodia proposta pudesse surgir e tornar-se maleável à composição. Esta necessidade foi se impondo ao longo da conversa, sendo sugerida menos pelos participantes que pelo próprio desenvolvimento da escuta de sua versão. Com a retirada da base rítmica, o caminho ficou aberto para que Clara e Priscila apresentassem uma proposta de cozinha no ensaio seguinte, que serviria de chão para a composição caminhar adiante.
Não apenas uma proto-melodia foi apresentada, mas também uma proto-letra da parte de Marcelo. E aí temos o grande momento deste primeiro dia, pois, entre uma proposta de refrão com pouco mais que a repetição tripla de uma palavra (“Escuta”) e a melodia ascendente por degraus apresentada por Sérgio houve uma coincidência inesperada e gigante, daquelas em que a soma das partes é superior a elas. E é sintomático que quem tratou de apontar, e no ato de apontar já estabelecer com a voz a mínima e necessária adaptação entre ambas, intermediando o primeiro e tão preciso encontro entre palavra e nota, tenha sido exatamente a cantora, Juçara. Os versos restantes de Marcelo se mostraram promissores, mas dependentes de ajustes deles e da melodia para o encaixe, para que a forma se concretizasse. No entanto, não se pode questionar a força de um refrão, e, como se comentou, quem tem um bom refrão tem mais da metade de uma canção.
Portanto, este foi, dentre tantas possibilidades no mundo, o caminho que esta canção escolheu para iniciar seu parto: o refrão foi a cabeça posta fora, o bebê coroando. O restante, nesta gestação tão original, ainda se formava. Mas viria. E assim foi o primeiro dia, tarde e manhã. (Genesis,1,4).
Depois de separar as trevas da luz, o segundo dia foi de separar águas e águas. Os debates do primeiro encontro guiaram os passos seguintes na estruturação da canção durante a semana. Sergio chegou a este segundo dia com um mapa de canção esboçado e uma proposta de melodia para uma letra mais estruturada de Marcelo.
A versão foi uma tentativa de pôr em prática as sugestões dadas uma semana antes. A partir do refrão bem delimitado, cabia agora estabelecer as estrofes intermediárias, partes 1, 2… Sergio trouxe uma proposta bem organizada, inclusive com um espaço para solo, ou improvisação instrumental. Novamente, o olhar de 50 pessoas sobre ela aos poucos foi desvelando os detalhes a serem aperfeiçoados ou mesmo descartados.
Alguns exemplos: a reentrada do refrão era feita pelo verso “por isso me escuta”, mas o pronome oblíquo acabou cortado, em nome de deixar a mensagem menos pessoal. Além disso, foi seguida uma sugestão de Juçara retirando os artigos iniciais dos versos intermediários, aumentando a concisão. Drummond já dizia, escrever é a arte de cortar palavras.
Outro ponto a ser resolvido na letra foi a palavra “corrente” num verso que mais adiante tinha a expressão “pra frente”. Com a melodia inicial, que subia por degraus, o trecho acabou lembrando incomodamente os “90 milhões em ação” da canção ufanista de Don e Ravel. Ninguém havia notado isto inicialmente, mas a partir do momento em que foi apontado, a escuta de todos ficou irremediavelmente contaminada, o que levou à busca de descaracterizar a semelhança, com sugestões modificando a melodia e a letra — “corrente” por “torrente”, por exemplo.
E aqui demarcam-se tanto os limites quanto as potencialidades do processo digital, já que a falta de sincronia de áudio nestas reuniões impede o tocar conjunto ideal num grupo musical. Isto fez com que mesmo quando Sergio tentou apresentar uma gravação da base percussiva em seu próprio gravador tocando junto em seu teclado, o resultado chegasse em tempos diferentes para os demais, fora de sincronia. Por outro lado, conforme a interação entre as partes avança, estas necessidades vão sendo supridas com os instrumentos disponíveis, e assim, depois de um primeiro dia de timidez e estudo, no segundo a participação dos inscritos cresceu muito. Porém, com a natural limitação para falar, algumas das participações mais interessantes iam sendo feitas em tempo real no chat do aplicativo de reunião.
Virtual ou não, aos poucos se impôs a natural prova dos nove da composição de uma canção, por parte do elemento-mor para o qual ela é feita: a voz. Juçara foi se tornando o fiel da balança para definir o que funcionava ou não. A nova base de Sergio foi posta para tocar por Juçara, que cantou a proposta de letra de Marcelo por cima. E o canto de Juçara foi como que resolvendo boa parte dos impasses teóricos na prática, no próprio ato de cantar.
Conforme foi se delineando esta forma, a própria temática da canção foi se tornando mais nítida, como que decidindo por si do que iria falar, e mostrando-se cada vez mais uma canção metalinguística sobre sua condição particularíssima, sobre o ato de ser e se tornar canção, sobre a palavra tornando-se música. Assim, versos como “Tudo vai virar canção” chegaram a se tornar incômodos para o próprio letrista por evidenciarem em demasia este caráter, surgindo a demanda para serem substituídos — e dividindo opiniões, como é natural numa assembleia tão numerosa.
Tendo então mais que um mero esqueleto da composição, abriu-se espaço para a participação dos instrumentistas. Aliás, a bem dizer, o espaço já se abrira entre o primeiro encontro e o segundo, e neste, junto com a proposta de composição, foram apresentadas algumas propostas percussivas — mais eletrônica, mais acústica, combinada — além de possíveis linhas de baixo, dando o tom do que serão os próximos encontros, em que não apenas o arranjo será definido, mas também retroalimentará a canção, instigando-lhe certamente novas modificações e aperfeiçoamentos.
A avaliação do dia foi otimista. A canção ainda não inteiramente delineada, porém com avanços importantes — a segunda parte em particular, já com mudanças sobre os versos originais, ainda parecia destoar do conjunto. A percepção geral foi de um jogo quase ganho, faltando definir o placar. Mas como lembrou sabiamente Sergio, 2×0 é um placar perigoso… e nesta partida ainda faltam três tempos. Que venham.
Chega o terceiro tempo, e com ele não apenas mais uma versão — quiçá a definitiva da canção em processo, como também uma primeira versão de arranjo — que quem sabe ainda mudará a canção. E um grande debate sobre a estrutura da gravação, o lugar de cada instrumento, na passagem da versão voz e violão da canção ajustada para aquela já com instrumentos gravados durante a semana. Mas vamos por partes.
Sergio apresentou as mudanças feitas por ele e Marcelo a partir dos desconfortos da semana anterior, em especial com a parte B, ainda remanescente da versão inicial, e que agora ficou bem mais enxuta, e cuja relação com o restante da canção ficou mais orgânica. A solução, como sempre, foi cortar. Dos longos quatro versos originais de Marcelo, ficou metade, transformando o que era uma estrofe completa em pouco mais que uma ponte — exatamente o que era necessário naquele ponto.
Além disso, vários pequenos ajustes na prosódia voltaram a ser definidos a partir de seu destinatário, o canto. A divisão de versos como “Tudo mutado surdo mudo” estava difícil desde o início, com uma rítmica sincopada que vinha desafiando a melodia proposta. Foi na experimentação da voz de Juçara que a questão se resolveu, estabelecendo uma interessante conexão letra/melodia: a divisão acidentada destes versos se contrapõe à fluência do seguinte, com a melodia ascendente de “Tudo vai virar canção” — verso que acabou por afirmar-se quase por consenso.
Por sinal que Juçara sentia-se confortável para cantar esta canção cerca de dois tons abaixo do proposto inicialmente por Sérgio, e chegou a pensar em pedir a mudança, mas depois pensou melhor e decidiu correr o risco de cantá-la no tom em que foi composta, apostando numa certa urgência expressa na composição que se refletiria em sua interpretação.
O recurso da escolha do registro a utilizar numa interpretação é algo relativamente pouco explorado em música popular, mas muito comum na música de concerto (vide o fagote em seu registro mais agudo na abertura da Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky). Não se presta apenas a aumentar a tensão na direção do agudo: Djavan escolheu seu registro mais grave e inusual, correspondente a um registro emocional contido, para sua “Violeiros”, na qual canta os cantadores nordestinos. Mas digressiono.
Resolvidas, até segunda ordem, as questões cancionais propriamente, passemos às instrumentais. Na versão trazida por Sergio com voz guia de Juçara e todos os instrumentos, cada um deles fora gravado sobre bases um pouco diferentes. Alguns dialogavam com um violão base que depois foi retirado, outros com uma voz base que logo depois foi substituída, e cada um gravou sua parte levando em consideração um tamanho de gravação. Ao menos o metrônomo era o mesmo para todos, ajustado em 104 bpm.
Estas são agruras de um processo virtual com prazo apertado, mas que não deixam de ser parte do aprendizado. Há também prenúncios da entrada em cena de Gustavo Lenza, responsável por organizar e dar forma final a tudo o que vai sendo confabulado e criado ora coletivamente, ora individualmente, entre trancos e arrancos. A dificuldade de comunicação entre as vozes será algo que vai somar pelo imponderável ou vai atravancar o processo? Vamos descobrindo enquanto fazemos.
Enquanto isso, sobre o arranjo, algumas decisões ocorreram quase por acordo tácito entre os músicos: por exemplo, que a primeira sílaba da primeira palavra, “Escuta” seria cantada acappela por Juçara, com os instrumentos entrando na segunda sílaba, sem introdução — mas com um espaço instrumental logo após. Isto não chegou a ser combinado, mas apresentou-se como o caminho direto à expressividade desejada.
Porém, outras decisões não se afiguravam assim tão evidentes. Depois deste refrão, quantos tempos de espera antes da entrada da letra? A quadratura de compassos seria o caminho fácil aqui. Desta vez, porém, a solução mais interessante não era necessariamente a óbvia. Decidiu-se por um tempo de espera estendido por mais alguns compassos antes da entrada da estrofe, criando um pequeno suspense e estabelecendo por mais alguns segundos o ressoar do refrão, a escuta.
Subjacente a esta discussão de detalhes, tratava-se de questões fundamentais: o lugar espacial de cada voz, de cada instrumento, a ser decidido em linhas gerais para guiar a mixagem; e o mapa da canção. Aos poucos, vai se delineando que, após os dois minutos aproximados de letra, haverá um instrumental… de quantos minutos? Um, dois? A existência deste instrumental é ponto pacífico — o apelo do refrão, “escuta”, serve de senha para ele. Mas qual será o caráter deste instrumental? Seguindo a harmonia do refrão, num formato mais pop? Partindo para um improviso coletivo e aproximando-se do free jazz? E o final? Retorna-se ao refrão para encerrar? Retoma-se a canção em outro ponto? Ou termina-se com o próprio instrumental?
Fazer estas escolhas coletivamente é um desafio, e Sergio exercita com sabedoria o papel de coordenador, recusando-se discretamente a tomar as decisões por si só. Aos poucos, vai sendo esboçado um instrumental de aproximadamente um minuto, que manterá uma proximidade com o universo harmônico do refrão e que dispensará o retorno a ele portanto, por redundante. Mais uma vez a necessidade de corte se impõe, o exercício do desapego ao já feito. Escrever, a arte de cortar palavras. Arte, a arte de cortar.
Assim estabelecem-se as linhas gerais que orientarão a mixagem, que por sua vez trará novas questões. Faltam dois encontros de gestação, encontros de pré-natal, até que a canção chegue ao ponto de não retorno, a partir do qual não mudará mais na confecção — e passará a mudar na escuta para sempre.
Mixagem não se termina, se abandona. Eu tinha anotado este dito para usar nesta parte do artigo como uma tirada própria, mas Gustavo Lenza o usou durante o encontro. E, se no início do processo a bola esteve principalmente com Sergio e Marcelo e no meio com Rômulo, Priscila e Clara — com a voz de Juçara perpassando tudo -, neste quarto dia, na prática o último (o quinto foi usado para a audição do produto final com sutis mudanças finais, e para uma avaliação de todo o processo), quem conduziu a partida foi Lenza.
E sua ação ocorreu em dois níveis: primeiro, o de organizar os instrumentos espacialmente, a primeira e essencial coisa a ser feita numa mixagem — e neste caso especial, homogeneizar as sonoridades de captação muito diversas fornecidas por cada músico em suas gravações caseiras. E o segundo, este já integrando-se totalmente ao processo de autoria de arranjo e, no limite, de canção mesma, distribuindo intervenções sonoras diversas numa canção que convida a escutar.
Esta sessão de mixagem à distância, com cada um ouvindo de sua casa, com ou sem fones, numa ambiência múltipla, começou com a apresentação das mudanças feitas durante a semana mas já com “uma levantada” de Lenza no material gravado, para que a voz da Juçara entrasse com as relações entre os instrumentos já estabelecidas — menos o trompete de Rômulo. Por sugestão dele, o trompete foi gravado depois da voz, para que pudesse dialogar com ela.
Mas esta mixagem já inclui diversas interferências suas, como ecos na voz de Juçara e efeitos de estúdio. Os três “escuta” iniciais de Juçara surgem: um no canal esquerdo, um no direito, o terceiro no centro. Além disso, tanto voz quanto instrumentos ganharam neste introito uma sonoridade de rádio, só com frequências médias, abrindo-se a cada “escuta” até apresentarem-se já cheias, plenas, no terceiro. Ideia trazida por Lenza e aprovada com entusiasmo.
Sobre a voz, Juçara contou ter enviado quatro takes feitos em casa: três da canção inteira, a cada vez com uma intenção um pouco diferente (o segundo foi o principal aproveitado — o clima foi o dele, com trechos pontuais dos outros), e uma só com scats, improvisos, cacos, segundas vozes, sussurros, já a propósito para que fossem manipulados por Lenza. Juçara também mostrou seu segredo para não provocar o efeito de “puff” no microfone em sua gravação caseira: um coador com uma meia fina a ser posto em frente a ele. Um exemplo da baixa tecnologia adotada em situações fora do comum como esta, mas não menos eficazes.
Lenza foi enumerando os efeitos (como um compressor valvulado que é na verdade um aplicativo do programa de gravação Pro Tools emulando esta sonoridade) aplicados ao baixo, assim como as dificuldades enfrentadas para homogeneizar o som das gravações de bateria eletrônica e acústica atuando juntas. Pois, por mais que ele tenha trazido muita coisa semipronta (até porque uma mixagem dura muito mais que duas horas), logo fica clara uma das armadilhas que nosso formato alternativo pode gerar. Juçara já achara o trompete de Rômulo baixo na mixagem, dialogando pouco com sua voz. Mas Rômulo externou uma insatisfação diferente e mais profunda com o som final de seu instrumento: achou-o homogêneo demais.
Explica-se: assim como Juçara, Rômulo enviara três ou quatro versões de sua participação, sendo uma delas com surdina e outra tocando dentro de uma lata, de forma a conseguir variações de timbre até o limite do experimental. No entanto, ao receber estas versões, Lenza tendeu a fazer o que fizera com a bateria, diminuindo as variações sonoras. E assim, o trompete acabou mais homogêneo que o intencionado.
Pois foi-se ajustar o trompete, e em meio ao processo Lenza foi explicando distorções e pedais aplicados, até em certos lugares ele se tornar pouco mais que uma microfonia. A ponto de o próprio Lenza dizer que achava que estava, nas suas palavras, “meio Disneylandia”. A expressão acabou se incorporando a nosso vocabulário composicional: o “freenal”, referindo-se ao improviso depois do fim da letra, que tanta polêmica causou até decidir-se seu tamanho, e os “90 milhões em ação”, este tratando do trecho descartado da primeira versão, mas que integrou brincadeiras até o último dia.
No fim, os efeitos no trompete foram não apenas mantidos, mas aumentados em diversos pontos. Já na voz de Juçara, proporcionalmente, Lenza fez muito pouco, ao menos na letra propriamente dita. Já nos cacos ele pôde brincar bem mais, tornando a voz de Juçara parte dos efeitos, mesmo ainda reconhecível. Assim, iam se criando elementos de escuta, detalhes a conversarem entre si, complementos ao apelo do refrão fornecendo ao ouvinte filigranas, sutilezas a serem notadas.
Por sinal que em certo momento elogiei Juçara por um improviso na última parte, em que ela repetia o verso “tudo vai virar canção” em meio aos scats, num momento particularmente interessante. E ouvi como resposta: “Mas não fui eu!” Embatuquei até entender que a voz era dela, mas não a decisão de cantar ali. Havia sido Sergio, antes mesmo da mixagem de Lenza, quem enxertara em meio aos solos o verso cantado durante a letra. Mais tarde, para o último encontro, ela regravaria algumas vozes e cantaria efetivamente este verso no improviso, substituindo a voz replicada. Resultados de um processo de composição que é de montagem e edição simultaneamente.
Ao fim, por mais que cada escuta revelasse novas possibilidades — Juçara pediu a redução de volume de sua voz, para que ficasse mais próxima do plano dos demais instrumentos, atendida em um sutil decibel por Lenza — um dia a mixagem precisa ser abandonada.
Sergio avaliou que quase 80% de tudo o que se ouvia eram as mesmas notas da semana anterior, só o que mudara fora a organização espacial. No entanto, passáramos de um esboço promissor para uma obra acabada, sujeita ainda a um ou outro retoque, mas com um caráter definido e, definitivamente, com algo a dizer. Nossa canção nascera.
Em cada um de nossos cinco encontros de gestação da canção, quando Rosi, a técnica de programação do Sesc, iniciava a gravação da reunião, uma voz metálica avisava: “recording in progress”. E realmente foi isto que ocorreu, por cinco semanas, uma recording in progress, como notou Sergio.
Este último dia foi de avaliar, entender o que se passou e como — e escutar, como sempre. Escutar a última versão, a definitiva — mas que não soou 100% na primeira vez, por um problema de conexão que esperou para se manifestar quando não seria mais capaz de atrapalhar um processo já completo.
Rômulo comentou que, antes de ser uma música de montagem, o que fizemos foi uma música de desmontagem, porque várias vezes foi necessário desfazer algo — os versos e melodia originais propostos por Sergio e Marcelo que não se encaixavam, o pré-arranjo, o “freenal” extenso de improvisos gravado inicialmente. Por mais plural e detalhado que seja o resultado final, ele será sempre resultado também de incontáveis possibilidades deixadas para trás, e que fazem parte dele também de certa forma, por terem sido responsáveis pelo fortalecimento da decisão final.
Um exemplo a calhar: o segundo verso-chave da letra, “Tudo vai virar canção”, que arremata o caminho dado pelo refrão “Escuta” como os dois ganchos de uma rede. O incômodo do próprio autor com ele, considerando-o um pouco óbvio, me levou a sugerir uma alternativa — “Para iluminar o som”. Os dois versos se alternavam na letra levada a Juçara para gravar a voz guia, mas o segundo não chegou a soar convincente em sua interpretação, de forma que o verso pensado inicialmente se fortalecesse como o que efetivamente tirava o melhor em significação e expressividade.
Assim, duas coisas ficaram claras ao fim: primeiro, que esta canção é uma autoria coletiva, incluindo quem não chegou a se manifestar nos encontros, mas se fez presente como público, assim como uma apresentação ao vivo é feita também por quem assiste, ou linhas melódicas não aproveitadas influenciam as que ficam e dialogaram com elas. Ou como Marcelo ponderou, quando se compõe sozinho é preciso ouvir as vozes internas, mas aqui ele precisou ouvir as externas — inclusive as que falavam no chat.
E a segunda é que, em que pese esta autoria coletiva, o fato é que a canção tomou os caminhos que decidiu, e, narcisística e metalinguisticamente, decidiu falar sobre si mesma e seu próprio nascimento, da letra à mixagem. (Mas generosamente reservou em sua temática um espaço para a experimentação ansiada pelos músicos). A tal ponto que, em todo o processo, em nenhum momento se chegou a discutir qual seria o título, e só me dei conta disso depois de tudo terminado. Pois ela se chamou, e o verbo reflexivo aqui cabe literalmente, pois foi mesmo por sua própria decisão, “Escuta” — aqui, na palavra isolada, entre o verbo e o substantivo, dupla leitura que surge agora, enquanto escrevo, assim como só no último dia percebi que a palavra “mutado”, além do anglicismo, pode remeter também a mutação. Pois, depois de nascida, a canção é filho no mundo, e quem sabe o que se tornará. Se ela já decidiu seu trajeto até aqui, quem o decidirá daqui para a frente? Não mais ela, e sim o ouvinte. Estes encontros futuros, tanto quanto os passados, a definirão.
Ou, como resumiu Juçara: o encontro foi mais forte que a distância. Mas estes encontros foram apenas a primeira parte. Agora vem a segunda: na escuta.
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