Aparecida, a samba negra

25/06/2021

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Maitê Freitas é mãe da Ilundy Airá. Doutoranda em Mudança Social e Participação Política e Mestre em Estudos Culturais, na USP. É ensaísta, jornalista e gestora cultural. Idealizadora da plataforma Samba Sampa e coordenadora executiva da Editora Oralituras. Colabora nas ações e produção da websérie Empoderadas. Participou de coletâneas literárias como autora e editora. É organizadora e idealizadora da Coleção Sambas Escritos (Pólen, 2018). Cofundadora do coletivo de pesquisadoras negras Acadêmicas das Sambas, é jornalista pesquisadora do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis (FIOCruz) e colabora com o Fórum de Comunidades Tradicionais da Bocaina.


Ousamos dizer que Samba é como uma mulher de ventre pleno e fecundo, que traz consigo a possibilidade de acolher, de gestar, de parir e de cuidar.


A pesquisa para este ensaio se deu durante o período de isolamento social, em decorrência do cenário pandêmico propagado pelo Sars-coV-2, vírus de proporções continentais, que no Brasil já subtraiu a vida de mais de 250 mil pessoas, em sua maioria negras e de origem periférica. No momento em que escrevo este texto, o número de mortos no Brasil já ultrapassa mil pessoas por dia. Carnaval suspenso. Rodas de samba suspensas.

Cada um correndo gira como pode, preservando-se e permanecendo em suas casas. Infelizmente, não foi possível mergulhar nos acervo do Museu da Imagem e Som de Santos (SP), onde aparentemente haveria registros das participações da cantora nas rádios e programas de TV durante as décadas de 1960 e 1970. Para redação deste ensaio, consultar amigos jornalistas e sambistas foi essencial para levantar informações complementares que confrontassem alguns dados presentes na web.

Ser uma intelectual negra é construir um caminho pautado na busca por romper com as estruturas e os engessamentos que nos oprimem e invisibilizam nossas epistemologias e nossas presenças ao longo de expressões populares, como a música. “Escrevo como quem manda cartas de amor” profetizou Emicida, rapper paulistano que durante entrevista no programa Roda Viva (TV Cultura, 27/07/2020) evocou a memória de Aparecida e seu long play emblemático Foram 17 Anos. A frase de Emicida conduz o desejo de escrever este ensaio como quem envia uma carta de amor à história da sambista.

A capa de Foram 17 anos traz o olhar fixo de Aparecida em foto de Luiz Pessanha | Imagem: Reprodução

Uma carta-ensaio. Um ensaio-manifesto para que as histórias de mulheres negras no samba não caia no esquecimento. Aviso de antemão que tal desejo poderá se diluir ao longo do texto, cuja escrita é como um ato de bordar uma colcha de retalhos recorrendo a diversas fontes para encontrar e costurar as memórias de Maria Aparecida Martins, tais como vozes de sambistas, da produção intelectual de mulheres negras e pesquisadores, de amigos e familiares da cantora.

Quando o convite para redação deste texto me foi feito, muitas perguntas surgiram e, na busca por responder uma a uma, iniciei a saga para compreender quem foi Aparecida para além da sambista. Meus olhos olhavam para a capa do disco e as poucas imagens disponíveis na internet e era como enxergar uma mulher que guardava em sua trajetória a história de diversas mulheres negras; a partir disso, eu poderia reconhecer a minha própria história, como ensina a escritora e sua conterrânea Conceição Evaristo:

A voz de minha mãe
Ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
Debaixo das trouxas
Roupagens sujas dos brancos
Pelo caminho empoeirado
Rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue e fome.
(Vozes Mulheres, 1989)

Maria Aparecida Martins nasceu em 4 de dezembro de 1940, na cidade de Caxambu, sul de Minas Gerais. Caxambu, palavra de origem tupi e banto, significa “água que borbulha”, em tupi (catãmbu); em banto designa “tambor, dança” e habita os refrãos de sucesso nas rodas de samba, através da poesia de Almir Guineto: “olha, vamos na dança do caxambu, saravá, jongo, saravá (…) O tambor tá batendo é pra valer”. A cidade, que pertenceu à capitania de São João Del Rei, foi fundada em 1901, perto das cidades de São Lourenço e Cruzeiro, locais por onde meus avós passaram e trabalharam nas lavouras até meados dos anos 1950.

Antes de sambista e curimbeira, Maria Aparecida Martins era uma mulher negra cujos registros encontram-se fragmentados em diversas fontes informais geradas a partir de uma voz hegemônica: masculina e branca. A mim, como pesquisadora, me senti provocada a entender quem foi essa mulher a partir de vozes negras, ouvir pessoas que conviveram com ela e poderiam, minimamente, me ajudar a entender as subjetividades desta sambista icônica, cuja presença na cultura popular brasileira revela nuances profundas, ressaltando a importância das mulheres negras no samba.

Aparecida, nos poucos documentos disponíveis, é retratada apenas como sambista, aspecto importante que será tratado ao longo deste ensaio, cujo principal objetivo é humanizar a voz dessa mulher que “cantava as almas, os pretos-velhos”, como me contou o radialista Rubem Confete, o primeiro que entrevistei para construir essa trajetória invisível; foi um telefonema rápido, mas que trouxe algumas informações importantes, depois confirmadas na conversa que tive com Paulo Henrique Leal, filho da cantora.

Ainda menina Aparecida deixou a bucólica Caxambu/MG | Imagem: IBGE

Diversas fontes registram que, entre 1949 e 1950, a senhora ainda menina, junto de seus pais, foi para o Rio de Janeiro. De Caxambu ao Rio de Janeiro, estimo que a família percorreu aproximadamente de 300 quilômetros. Chegando ao Rio, trabalhou como passadeira, faxineira, serviços historicamente delegados às mulheres negras em uma sociedade de herança escravocrata.

Na busca por reposicionar Aparecida na história e entender como o contexto político e social influenciaram sua trajetória, apurei fatos de sua vida que vão dando contornos à linha do tempo da sambista. A chegada de sua família a terras fluminenses também é marcada pela reeleição de Getúlio Vargas (1882–1954), a inauguração da TV Tupi e a criação dos estúdios cinematográficos Vera Cruz.


“é importante assinalar que a limitação (e a invisibilização) da presença das mulheres negras como sujeitos de ações e criações nos relatos da vida nacional, seja cultural ou política, é produzida ativamente em decorrência da hegemonia das ideologias racistas e sexistas”


No Rio, foi morar nas terras de Noel Rosa (1910–1937) e Martinho José Ferreira, o Martinho da Vila, no bairro de Vila Isabel. Em 1952, dizem os registros que Aparecida compôs os primeiros sambas e integrou um grupo de passistas formado por Salvador Batista. Nas pesquisas, não foi possível apurar quais sambas eram esses e encontrar mais detalhes sobre tal grupo… Na década de 1960, ela teria participado do filme Benito Sereno e o Navio Negreiro (não foram encontradas informações sobre o diretor nem informações gerais sobre o filme). De acordo com os textos encontrados na internet, a atuação rendeu a Aparecida um prêmio e uma viagem à França. Neste ponto da história, as informações rareiam: “eis uma personagem dificil pacas de levantar informações”, me alertou o historiador Luiz Antonio Simas em uma conversa informal.

No tocante à memória da população negra, a escassez de informações e documentos é notória e desafiadora, se é que é possível pensar uma fonte oficial para a História. Assim, para tecer este ensaio-carta, recorri a entrevistas e conversas com sambistas e aos amigos que, assim como eu, buscam preservar a memória e as boas histórias ocultadas da narrativa oficial hegemônica. Nas palavras da ativista e pesquisadora Jurema Werneck: “é importante assinalar que a limitação (e a invisibilização) da presença das mulheres negras como sujeitos de ações e criações nos relatos da vida nacional, seja cultural ou política, é produzida ativamente em decorrência da hegemonia das ideologias racistas e sexistas”1.

Como já dito, busquei construir este texto tecendo fragmentos de fontes e relatos. Dos poucos registros disponíveis sobre Aparecida Martins, a maior parte dos dados foram publicados pela gravadora CID, fundada em 1958, por Hermann Zuckermann. Pesquisar, ainda que brevemente, a história de Aparecida é se deparar com o apagamento sistêmico que atinge as mulheres negras; na página da gravadora, na Wikipedia, não há menção à cantora:

Artistas do quilate de Emílio Santiago, Nana Caymmi, Moreira da Silva, Bezerra da Silva, Baiano e os Novos Caetanos e tantos outros começaram a gravar seus primeiros álbuns pela CID e se juntaram a estrelas da música internacional como Donna Summer, Barry White e Patrick Hernandez que a CID passou a distribuir no Brasil.

Aparecida Martins figura entre os “tantos outros” da gravadora. Mas, ainda que a cantora não esteja entre os nomes de destaque no verbete, de acordo com seus familiares e amigos próximos, houve excelente distribuição e venda durante os anos em que Aparecida participou das coletâneas e gravou seus discos na empresa judia.

“A CID tinha uma produção barata, acessível e era amplamente divulgada fora do Brasil, nas comunidades negras dos EUA. Aparecida rendeu um bom faturamento para eles, mas infelizmente eles não recompensavam o artista na mesma velocidade que vendiam”, me contou o radialista Rubem Confete.

Dos poucos registros fotográficos da sambistas encontrados na web | Imagem: Pitaya Cultural

De acordo com Rubem Confete, falar de Aparecida é uma missão impossível, visto que muitas das pessoas que conviveram com ela já não estão mais vivas e muitos documentos sumiram. Além disso, acessar os acervos radiofônicos dos museus — em tempos de pandemia — é algo impraticável. O radialista, no entanto, se emocionou ao falar da cantora e relembrar que, nas décadas de 1960–1970, havia em todas as comunidades mais de trinta e dois programas de rádio voltados para o samba.

Aparecida surgiu nas rodas de samba do Opinião, dirigido por Teresa Aragão. Caiu no gosto de Teresa, e “isso ajudou muito ela, me contou Geovana” cantora carioca e amiga de nossa protagonista.

Mas quem foi essa mulher cujo nome e amizade estão eternizados no refrão do samba? Teresa Aragão foi uma importante referência para a cena cultural da década de 1960, por ser uma das integrantes do Grupo Opinião (1964–1982), espaço que ao longo da ditadura foi responsável por montagens críticas e de oposição ao regime ditatorial do período. De acordo com Geovana e Confete, Teresa seria responsável pela primeira turnê internacional da cantora.

E pra quem não conhece Tereza Aragão
Vou dizer apenas isto
Foi a primeira pessoa que me deu
A primeira oportunidade nos shows jazz
E a única chance de viajar para o exterior

O Opinião foi frequentado por nomes importantes na produção intelectual e nas artes cênicas brasileiras: Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, João das Neves, Millôr Fernandes. O grupo mantinha as rodas de samba “como um espaço voltado para negritude. Muita gente passou pelas rodas do Opinião; entre esses encontros, Teresa produziu o show a Fina Flor do Samba (1960), do qual Aparecida participou ao lado de muitos cantores”, explicou Rubem Confete.

Nesse momento, Aparecida passou a fazer parte “da seleta de cantores”. Quando perguntei a Confete sobre a censura e perseguição aos sambistas, ele respondeu: “a ditadura nem percebeu aquele monte de preto. Samba era coisa de preto, para eles”. De acordo com o radialista, poucos sambistas na época foram perseguidos e tiveram seus sambas censurados.


“Sabe como é, né, mulher preta e sambista? Não nos davam a chance de escolher. Aparecida sofria muito com essa situação de não ter os filhos perto”


Se de fato o samba não incomodava a ditadura, deixarei esse assunto para um outro ensaio. Por ora, parafraseio Beatriz Nascimento2: o samba, quero ressaltar aqui mais uma vez, é muito mais um instrumento ideológico para a luta do negro do que um instrumento ou gênero musical, é rebelião. O samba é espaço de aquilombamento afetivo, é local de experimentação de liberdade, de corporeidade e de celebração.

Em 1962, Aparecida se tornou mãe de Luis Alberto da Silva e, em 1966, de Paulo Henrique Leal. Em ambos os casos, a cantora foi impelida a entregar os filhos para doação assim que nascessem. “Sabe como é, né, mulher preta e sambista? Não nos davam a chance de escolher. Aparecida sofria muito com essa situação de não ter os filhos perto”, contou Geovana.

Paulo Henrique Leal reside há trinta anos na Europa, já passou por diversos países e atualmente trabalha como barman no sul da Espanha. Saiu do Brasil poucos anos depois do falecimento de sua mãe. Ele me contou que está escrevendo um livro autobiográfico: “quero contar a minha história de forma simples para que todos entendam”. Curioso observar que o movimento de narrar-se, de Paulo, acontece ao mesmo tempo que este texto reconta a história de sua mãe.

Em 1975, o caçula conheceu sua mãe. “Sua mãe vai passar na TV”, ouviu Paulo Henrique e foi diante do aparelho televisor que ele viu pela primeira vez a mãe biológica que fazia uma participação no programa de Sílvio Santos. “Havia um pai de santo, Milton, no bairro. Ele conhecia minha mãe e sabia onde eu a podia encontrar; assim, passei a ficar alguns finais de semana com ela. Minha mãe era muito fechada, discreta, não falava muito. Cantava. Quando eu a conheci, ela estava concorrendo na Caprichoso de Pilares”, nesse ano o samba “Sonata das Matas” seria o campeão na agremiação, fazendo de Aparecida a segunda mulher a vencer uma disputa de samba-enredo, sendo precedida por Dona Ivone Lara.

Por mais que cantasse e estivesse prestes a gravar o disco que marcaria a história da música preta brasileira e sua carreira, “Aparecida se sentia feia. Ser negra era um fardo para ela. Ela via muita gente, sem o talento dela, subindo, sendo reconhecida”, acrescentou Geovana.

“Ela se achou quando foi para o terreiro. Um dia ela virou para mim, estava na minha casa em Santa Tereza, e me falou que ia seguir um caminho mais afro, fazer as coisas delas no afro, sabe?”. Afro, nas palavras de Geovana, refere-se à umbanda e ao candomblé.

“Foi minha mãe que me levou para o candomblé ketu. Nossa família é de ascendência angolana, minha mãe frequentava de tudo: angola, ketu, jeje, nagô… umbanda. Eu ficava doido com o toque do tambor”. Contou Paulo, que foi iniciado no Ilê Akibugi Obaluaê, localizado no bairro do Xerém (RJ). Já Aparecida era ekedi no Ilê Yatôbomim Yemanjá, depois frequentou a umbanda e um terreiro jeje, na região de Nova Iguaçu (RJ).


“Aparecida cantava a ancestralidade, e esse era o seu ato subversivo, em um país que nos força a esquecer e negar quem somos: pretas.”


Dias antes de encerrar este texto, fui surpreendida com uma foto do arquivo pessoal de Paulo: na imagem, no meio da mata, homens sentados vestidos de branco tocam atabaques; no primeiro plano, duas mulheres de saias brancas rodadas e turbantes; ao centro, um garoto dança para o orixá. “A mulher da esquerda é minha mãe, ela foi ekedi, estudou até a quarta série, mas falava em ketu, iorubá e quimbundo”.

O conhecimento e as vivências de Aparecida tornam possível compreender o porquê de suas músicas evocarem a ancestralidade, “Com a voz forte e a poesia que eram dela”, relembra Confete, Aparecida cantava a ancestralidade, e esse era o seu ato subversivo, em um país que nos força a esquecer e negar quem somos: pretas.

A busca por identidade em meio aos processos de opressão atravessou as relações sociais, as construções simbólicas de um povo, de um grupo étnico e as disputas por novas narrativas. Não há novidade na afirmação de que o racismo, os processos coloniais, o capitalismo e o machismo são marcadores e atravessamentos que estabelecem as relações de poder, de disputas, refletindo-se na produção simbólica e nas experiências afetivas e no amor-próprio no tocante a nós, pretas. A despeito de todo processo de opressão instituído e contínuo, o samba se faz e se expressa como um manifesto, apresentando um território físico e estético através da roda, da música e da dança.

Durante duas horas, em uma terça-feira à noite, eu e Geovana conversamos. O motivo da longa conversa era uma foto tirada em maio de 1972, em que a imagem preta e branca mostrava uma cena-canção: duas cantoras pretas sentadas, conversando. Enviei a imagem para Geovana, e a partir daí mais histórias se levantaram.

A mim, me interessava saber mais sobre a história daquele rosto negro retinto, de traços marcantes: rosto e nariz largos, lábios grossos, turbante branco e dentes à mostra na capa do disco Foram 17 Anos.

“Ela foi uma mulher culta. Não era uma qualquer. Aparecida andava com as reportagens sobre ela na bolsa e as mostrava para as pessoas”. Entre 1975 e 1976, os trabalhos Aparecida, lançado em 1966, e Foram 17 Anos, respectivamente, ganharam espaço no Jornal do Brasil, através das críticas do jornalista José Ramos Tinhorão. “Aparecida, pelas qualidades de voz e interpretação: calma, colorida e precisa, é definitivamente uma cantora destinada a integrar-se ao panorama da MPB” (Tinhorão, 1975). No mesmo texto, parágrafos adiante, ele acrescenta, “deve procurar por compositores para ser definitivamente aplaudida e conhecida como a grande cantora do Brasil”.

Embora a afirmação pareça mais elogiosa do que depreciativa, é curioso observar que para Tinhorão as composições da sambista não estavam à sua altura e que seria necessário um compositor para elevá-la ao status de cantora do Brasil. Qualquer semelhança com a história de Dona Ivone Lara, que durante décadas teve seus sambas assinados pelo primo para que a letra fosse aceita, não é mera coincidência, antes revela como o machismo e o racismo operam em relação às pretas sambistas.

No mesmo texto, J. Ramos afirma que percebia “uma preocupação (talvez excessiva) com as raízes africanas de sua família”; contudo, quando do lançamento de Foram 17 Anos, o discurso do jornalista muda para “percebe-se a coerência do seu repertório”, e Aparecida se torna “a artista do povo que quer ser apenas uma voz do povo” (1976).

Se por um lado, Aparecida tinha problemas com sua imagem, relata Geovana, por outro, a capa do álbum em que sua pele contrasta com o turbante branco que lhe cobre o cabelo, causa uma impressão no mínimo arrebatadora.

Verso do LP com o recado escrito à mão | Imagem: Reprodução

No verso, logo abaixo do título do LP, um recado escrito à mão: “‘Este disco é o resultado de 17 anos de luta’, Aparecida”.

Logo no inicio, temos o canto desabafo que rasga a alma e dá nome ao LP, e com o corpo marcado pela labuta de quase duas décadas para a realização desse álbum, Aparecida entoa:

“Pai Oxalá no obatalá!
Com sua Sagrada permissão
Nossos trabalhos iremos começar
Foram dezessete anos
Dezessete sete sete
Foram dezessete anos
Dezessete sete sete
Após dezessete anos
Até peço a Oxalá
Acabou-se o desengano
Hoje vivo a cantar
Esta é a história da minha luta de 17 anos de paixão
Até conseguir a minha primeira gravação
Gente! Não foi mole, não!”

É na força do sete e de quem cuida dos caminhos que a sambista abre a sua gira, fazendo seu “Tributo às Almas” e a “Santo Antonio de Pemba”. Em seguida, é hora de saudar os “Deuses Afros”, e nas canções que se seguem Aparecida vai revelando ser conhecedora dos fundamentos e tradições dos cultos dos orixás.

Em “Grongoiô, Popoiô”, “Diongo, Mundiongo” e “Aruê”, a cantora reitera seu conhecimento de línguas africanas. Depois, vêm as faixas “Todo Mundo É Preto” e “Saravá Saravá, Bahia”.

“Ela dizia que era da Oxum”, conta Geovana; não à toa a última faixa do disco é “Lágrimas de Oxum”. Aparecida Martins nasceu entre as águas doces de Caxambu, no reino de Oxum. Oxum é a orixá feminina identificada com a fertilidade e a capacidade de enxergar o futuro. (…) Oxum é a mulher que foi capaz de reverter as estruturas de poder e riqueza e apropriar-se de fatias consideráveis de poder e dessa riqueza” (Werneck. 2021, p. 27).

São inúmeras as formas de falar quem é Oxum e de como ela se expressa, mas uma coisa é certa, a riqueza não se materializou na vida de Aparecida, visto que o machismo na indústria musical não possibilitou que a sambista recebesse o que lhe era de direito. “Aparecida queria viver de samba. Ela dedicava a vida dela para isso. E acabou sendo roubada pela gravadora. Muitas mulheres negras sambistas passaram necessidade: Zaíra, Júlia, Dila, Ilza, Sabrina… e Aparecida, todas morreram tristes” e subestimadas pela indústria musical e pelo racismo.

Foram 17 Anos é um dos poucos discos da série Álbum 10 anos que também se encontram disponíveis nas plataformas digitais

Após Foram 17 Anos, a cantora lançou Grandes Sucessos (1977), Cantigas de Fé (1978), 13 de Maio (1979), Os Deuses Afros (1980) e A Rosa do Mar (1983), e passou um tempo no Ceará, onde morreu em 1985.

Meses antes de viajar para o Ceará, Aparecida falou a Geovana: “o Rio é muito pequeno para os nossos sonhos e o que a gente faz. Vou para o Ceará”. Segundo Geovana, Aparecida havia ficado amiga de uma prefeita que facilitou para que a cantora fizesse shows na cidade.

Aparecida faleceu em 1985, no estado do Ceará. O dia, ninguém soube dizer. O que se sabe é que “ela recebeu muitas homenagens em Fortaleza, seu corpo foi enterrado lá”, relembrou o filho que esteve no carro do corpo de Bombeiros que desfilou pelas ruas da cidade, junto ao corpo de sua mãe.

Aparecida. Dona Aparecida. Tia Aparecida. Aqui me despeço, com essa singela tentativa de, ao te homenagear, honrar as mulheres negras sambistas que antecedem Tia Ciata e não se encerram na Pérola Negra, mulheres negras-sambas que cruzam as linhas invisíveis da história, se encantaram e hoje se encontram no canto de Fabíola, Luana, Maíra, Nina, Teresa, Fabiana, Juliana, Janine, Renata e tantas outras ainda desconhecidas, mas que não vão cair no abismo hegemônico do esquecimento.

Celebro sua ancestralidade banto, angolana, Aparecida, e me despeço de sua história, citando a cosmologia bacongo, registrada pelo músico e pesquisador Tiganá Santos: “Mono i kadi kia dingo-dingo (kènda-vutusika) kinzungidila ye didi dia ngolo zanzingila. Ngiena, kadi yateka kala ye kalilila ye ngina vutuka kala ye kalulu la”, que para nós, ainda colonizados, se traduz em: “Eu estou indo-e-voltando-sendo em torno do centro das forças vitais. Eu sou porque fui e re-fui antes, de tal modo que eu serei e re-serei novamente”.

Que a sua história possa voltar a ser revisitada e escrita por outras mulheres como nós: negras.

Notas

  1. WERNECK, Jurema. O Samba segundo as Ialodês: mulheres negras e cultura midiática. 2021. Hucitec. ↩︎
  2. Em seu texto “Historiografia do Quilombo” (1977), Beatriz Nascimento afirma que “Então, o quilombo, eu quero ressaltar aqui mais uma vez, é hoje em dia muito mais um instrumento ideológico para a luta do negro do que um instrumento, como foi no passado, de rebelião”. In: Quilombola e intelectual. Possibilidade nos dias da destruição. Editora Filhos da África. 2018. ↩︎

Agradecimentos

Geovana, Helena Theodoro, Fabíola Machado, Raquel Thobias, Nega Duda, Rubem Confete, Lucas Nobile, Luiz Simas e Paulo Henrique Leal.

Referências

Aparecida, a voz dos orixás. Acessado em 15/02/2021

Aparecida_(cantora). Acessado em 15/02/2021

Cid. Acessado em 15/02/2021

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________________. Matriarcado da miséria. Correio Braziliense, p. 5, 2000. Disponível em https://www.geledes.org.br/o-matriarcado-da-miseria/

________________. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117–133, Dec. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300008&lng=en&nrm=iso>.

_______________. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: Racismos contemporâneos. Ashoka Empreendedores Sociais e Cidadania, Rio de Janeiro: Takano Ed., 2003a.

FREITAS, Maitê. (org.). Massembas de Ialodês. 1. ed. São Paulo: Polen Editorial, 2018.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericanoSão Paulo: Zahar, 2020.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória. Ed. Perspectiva e Mazza Edições, 1997.

SANTANA, Bianca. A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao racismoTeses USP, São Paulo, 2020.

SANTANA, Marilda. As bambas do samba. Salvador: EDUFBA, 2016.

WERNECK, Jurema. O samba segundo as Ialodês: Mulheres negras e a cultura midiática. Porto Alegre: Hucitec, 2021.

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