O céu será cinza

29/04/2021

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Humberto Finatti é jornalista musical e de cultura pop há 30 anos, com passagem pelos principais veículos de mídia impressa do Brasil, como os jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, Gazeta Mercantil, e as revistas IstoÉ, Bizz, Interview e Rolling Stone Brasil. Atualmente é curador de eventos musicais e editor do blog de cultura pop Zap’n’roll. Foi amigo pessoal do vocalista da banda Harry, Johnny Hansen, ao longo de três décadas.

Na segunda metade da década de 1980 as tecnologias de comunicação mundial estavam bastante avançadas para os padrões da época. Mas ainda nem em sonho havia a conexão global que a internet e a telefonia móvel via celular iria permitir uma década e pouco depois. Assim, quando reouvimos nos dias de hoje um álbum como Fairy Tales, lançado pelo grupo santista Harry em 1988, ainda ficamos totalmente impressionados com o dinamismo musical e as inovações estruturais sonoras e melódicas que o quarteto imprimiu ao trabalho ao conceber um disco com camadas e camadas de teclados, aliados a bateria e percussão também eletrônicas. O resultado foi um compêndio de dez canções avassaladoras, que traziam em seu bojo as referências mais modernas e contemporâneas do punk e do pós-punk inglês (isso em uma época em que o rock brasileiro dominava o cenário musical, mas as bandas do chamado circuito mainstream das grandes gravadoras ainda produziam suas músicas no conceito tradicional elétrico, de guitarras, baixo e bateria acústica). Essas referências eram obtidas em publicações especializadas importadas ou em LPs também importados (que custavam muito caro) ou ainda em gravações em fitas cassete, copiadas dos discos de vinil do amigo mais afortunado. Foi assim que um quarteto da cena independente autoral do rock de Santos (maior cidade do litoral de São Paulo, que apresentava então uma cena rock’n’roll bastante ativa, com diversos grupos de diferentes tendências sonoras em atividade) entrou para a gigante história do rock brasileiro ao lançar um disco totalmente eletrônico e, ainda por cima, com todas as letras cantadas em inglês. Artística e musicalmente muito à frente de seu tempo, o Harry permanece até hoje como um monumento imbatível do rock eletrônico nacional.

Capa Fairy Tales (1988) foi baseada em uma foto de Araquem Alcântara feita em Cubatão | Imagem: Reprodução

A história do grupo começou cinco anos antes, em 1983, quando o vocalista e guitarrista Johnny Hansen (seu nome artístico, sendo o de batismo Marcos Pereira da Fonseca) participava de um grupo de heavy metal razoavelmente conhecido em Santos, o Vulcano. Pouco tempo depois, Hansen se uniria ao baterista César Di Giacomo e à cantora Denise Tesluki para formar a banda Bi-Sex. Influenciado pelos eflúvios da new wave e do pós-punk inglês, que começavam a chegar ao Brasil, o trio compôs algumas canções com letras em português e inglês. A sonoridade pop eletrônica e algo dançante, e o vocal feminino de Denise ajudaram o grupo a ter boa repercussão em algumas emissoras de rádio FM da Baixada Santista. O mercado musical mainstream no Brasil era então totalmente comandado por grandes gravadoras, mas, sem contrato com nenhuma delas, a banda alternativa resolveu novamente mudar seu rumo artístico e direcionamento musical. Foi quando nasceu, enfim, o Harry — nome escolhido por Hansen, segundo o tecladista e baixista Richard Johnsson, em alusão a um boneco inflável com as feições de um coelho chamado Harry, que pertencia à filha de Johnsson.

Formação clássica da Harry com Verta, Hansen, César e Johnsson (da esq. para dir.) | Foto: Urge Site

Entre 1985 e 1986 e já estabelecido como quarteto (com a entrada de Johnsson na formação), o Harry concebeu o material que se tornou seu primeiro EP, lançado pelo selo paulistano Wop Bop, para onde o grupo foi levado graças aos contatos que o primeiro empresário do grupo, Marcelo “Panda”, tinha com o proprietário do selo, o jornalista e lojista René Ferry. Em um tempo em que quase a totalidade dos lançamentos discográficos brasileiros eram feitos pelas grandes gravadoras multinacionais, e também começaram a surgir alguns selos menores e independentes que tentavam “furar” o bloqueio e o domínio das majors do disco sobre o mercado musical, a Wop Bop (pertencente à loja de discos de mesmo nome) começou a ter prestígio e respeitabilidade junto à imprensa musical especializada e a um público consumidor mais específico, interessado em lançamentos da vanguarda musical e do rock daqui e do exterior. Caos, o EP de três faixas do Harry, lançado pela Wop Bop em 1986, começou a repercutir bem entre público e mídia com a faixa-título, tendo sido bastante tocada na 89 FM, uma das emissoras de maior audiência do dial paulistano na época.

Mas algo na concepção musical da banda ainda não satisfazia o cérebro sempre inquieto do vocalista e letrista Hansen. Já com a cabeça totalmente mergulhada na eletrônica do Kraftwerk e no punk e pós-punk dos grupos ingleses The Clash e Joy Division (ambos então já com discos lançados em edição nacional no Brasil), Hansen convenceu os outros dois músicos do grupo (Johnsson e César) de que eles deveriam ir cada vez mais na direção da eletrônica total, além de compor e cantar todas as músicas em inglês. Foi quando entrou em cena o produtor musical e tecladista Roberto Verta, amigo de longa data dos outros integrantes e sempre antenado e municiado com as últimas novidades em termos de sintetizadores e programações de ritmos eletrônicos. Verta (que nas décadas seguintes também iria trabalhar como diretor artístico de diversas gravadoras e da maior produtora de shows internacionais da América Latina) acabou entrando para o Harry, e o novo direcionamento sônico do grupo provocou uma baixa, a saída da cantora Denise.


“Longas noites, muitas descobertas.”


“Viemos de uma primeira experiência, em 1986, com o EP Caos, da Wop Bop, onde passamos a conhecer os parcos recursos de estúdio”, recorda o baixista e tecladista Johnsson. “Duas músicas cantadas em português e uma em inglês. Só para ver no que ia dar. Naquela época tinha ainda os recursos de cortar fita manualmente e inverter no aparelho para criar efeitos. Também usamos um teclado para fazer o baixo e uma drum machine para a parte rítmica (que aprendemos a usar no decorrer das sessões). Some-se a isso o uso de um pedal, o Digital Delay, para efeitos nos vocais. Ainda havia baixo e guitarras elétricos. Longas noites, muitas descobertas. E o principal: a liberdade de produzir conforme nossa ótica. Foi assim que chegamos ao Fairy Tales. Dois anos depois do EP, que deu algum burburinho na época, conseguimos o projeto de um LP, nas mesmas condições de liberdade de produção”, completa.

Quando o Harry mostrou o resultado obtido nessa imersão profunda no rock eletrônico, com o lançamento de Fairy Tales no segundo semestre de 1988, o quarteto santista causou furor e choque na imprensa musical do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Com uma sonoridade que impressionava pelo contexto totalmente avant-garde e muito à frente do que se ouvia naquele momento no rock brasileiro, o grupo chamou a atenção dos cadernos culturais dos grandes jornais diários de então, além da revista Bizz, a principal publicação musical da época. Em uma matéria que ocupou a metade da capa de uma das edições do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo escrita pelo autor deste texto, o Harry era mostrado como uma novidade genial e improvável do rock nacional, ainda mais por ser egresso de uma cidade litorânea de clima quente praiano e verão eterno, que em nada sugeria a avalanche sonora sombria, sustentando letras igualmente sombrias (quando não desalentadoras), todas cantadas em inglês bastante correto. Já a mensal Bizz, além de tecer rasgados elogios ao álbum, ainda elegeu sua capa como a segunda melhor de 1988. “A capa do disco foi baseada em uma foto de Araquem Alcântara feita em Cubatão, que retratava trabalhadores utilizando jatos de areia em uma usina”, recorda Verta. “Reflete de forma profunda o que está dentro do disco”, completa ele.

O que “está dentro do disco” é uma autêntica e soberba coleção de vesânias sonoras e textuais, egressas de um pesado e poderoso arcabouço eletrônico e dançante que servia de amparo para as letras escritas por Hansen, em que ele expunha as inquietudes de uma mente brilhante e bastante perturbada na observação do mundo. Desde a adolescência, o vocalista se mostrou um outsider existencial que não se adequava em nada ao mundo e ao tecido social considerado “normal”. Quando encontrou outros companheiros com esse mesmo viés outsider, a química musical não demorou a acontecer. E a química musical do Harry nada mais era do que a representação em tormentas sonoras da dura realidade que cercava o lugar onde seus integrantes moravam nos anos 1980. Apesar de ser uma cidade com praia e clima de verão perene, Santos tinha todos os problemas do mundo: enchentes que a cada início de ano castigavam o município, encostas de morros que desabavam pelo excesso de chuvas, soterrando e matando os moradores miseráveis das favelas, a violência urbana produzida pela desigualdade social e pelo tráfico de drogas, a poluição vinda da vizinha Cubatão, gerada pelo polo petroquímico e pela refinaria de petróleo etc etc.

A contracapa de Fairy Tales trazia os dizeres: “From the far-fetched shores of the third world. A piercing sound of rock’n’roll mixing atmospheres. That of a loud cry of agony in the scorching. TRY IT.” Algo como “Das profundezas do terceiro mundo. Uma mistura de penetrantes atmosferas sonoras do rock’n’roll. De um grito alto de agonia no escaldo. TENTE.” (em tradução livre) | Foto: Reprodução

Todos esses problemas e o ambiente urbano hostil, jamais retratados nas obras musicais de outros artistas santistas, forneceu farto material e munição para que a banda produzisse as dez músicas da versão original de Fairy Tales (em reedições posteriores do disco, em formato CD e nas plataformas digitais, foram acrescentadas mais faixas, entre sobras de estúdio, remixes e versões demo de algumas canções). Todas mergulhadas em um turbilhão de melodias soturnas, pesadas e dançantes, onde abundavam efeitos sonoros, vocais processados e em eco, camadas e camadas de teclados, baterias eletrônicas e muita personalidade musical. Como se não bastasse tudo isso, o quarteto ainda se deu ao luxo de permear a música “The Beast Inside” com um feroz solo de guitarra heavy metal. Já a belíssima e tristonha “Soldiers” (talvez uma das canções mais belas e melancólicas já feitas na história do rock nacional) tem sua melodia perpassada por sons de gaitas de fole. Há ainda anátemas sonoros como “Sky Will Be Grey”, “Genebra”, “Joseph In The Mirror”, “Lycanthropia” e “Death”, mostrando que o Harry em nada ficava devendo ao rock eletrônico de vanguarda que se fazia naquele momento na Europa, Inglaterra e Bélgica (nação símbolo do estilo musical Eletronic Body Music, ou EBM, com o qual o som dos santistas também mantinha total similitude). “Fairy Tales é o disco com nossas melhores canções e ideias”, atesta Roberto Verta. “Talvez, se fosse regravá-lo novamente (como a banda o fez no Electric Fairy Tales, em 2014), optasse pelo som mais orgânico dos shows da época, mas, em compensação, o álbum acabou sendo um bom exercício em produção e experimentação”, conclui.


“Éramos crianças com passe livre na Fantástica Fábrica de Chocolates.”


Uma curiosidade sobre o processo de criação e gravação do disco é revelada por Johnsson: “O interessante é que todas as músicas estavam sendo criadas e ensaiadas de forma elétrica: guitarra, baixo e bateria”, revela o músico. “Mas a intenção era soar eletrônico. O César já havia incorporado módulos de bateria Simons, o Hansen encaralhando o máximo a guitarra e o vocal de efeitos de pedais mil, e o baixo emulando o ritmo pulsante dos eletrônicos. A partir daí, resolvemos, o Verta encabeçando a parte técnica, a fazer tudo no formato eletrônico. Não foi planejado. Foi ali, na hora, durante o curso. Sempre nos sentimos atraídos pela experimentação. O César passou toda a parte rítmica para uma drum machine e tudo mais sincronizado, tudo eletrônico. Teve até partes eletrônicas não programadas, tocadas no dedo e na raça. Teve guitarras tocadas, gaita de fole, scratches de DJ, coro com amigos na “Soldiers” e o que mais pintasse. Éramos crianças com passe livre na Fantástica Fábrica de Chocolates”, recorda Johnsson com entusiasmo.

A iconoclástica Soldiers

Fairy Tales tornou-se um marco e um ícone tão importante, venerado e respeitado — não apenas na cena rock brasileira, mas também europeia — que a própria banda o regravou em versão “elétrica” mais de uma década e meia depois (com guitarras, baixo e bateria “humana”, conforme a intenção original dos músicos). Batizado de Electric Fairy Tales, foi gravado ao longo de 2014 e lançado oficialmente no ano seguinte. É o álbum derradeiro com o emblemático Johnny Hansen nos vocais. Nessa década e meia entre o disco eletrônico e sua versão elétrica, a banda teve uma trajetória bastante errática, com muitas mudanças em sua formação e poucos shows ao vivo — o que, de certa forma, contribuiu para que o grupo passasse a ser venerado pelos fãs como uma espécie de lenda da cena independente brasileira. Os membros originais se distanciaram fisicamente: Verta se mudou para o Rio de Janeiro, e Hansen viveu com sua derradeira companheira por cerca de dez anos na pequenina cidade de São Thomé das Letras, no sul de Minas Gerais. Algum tempo após voltar a morar em Santos (para cuidar de sua mãe octogenária e adoentada), Hansen se foi do nosso mundo, para imensa tristeza do autor deste texto, que com ele manteve uma sólida amizade por 30 anos. Vitimado por um infarto fulminante, faleceu em 17 de abril de 2017, aos 56 anos de idade. Mesmo não tendo tido em vida o reconhecimento gigante que merecia, por sua genialidade como músico e assombroso e enciclopédico conhecimento musical, tornou-se um símbolo post mortem do que de melhor o rock Brasil nos legou nos anos 1980.

Entrevista épica de Hansen para César Gavin no Vitrola Verde em 2014

Todos os outros integrantes originais do Harry permanecem vivos (felizmente). Johnsson e Verta andam, aliás, produzindo material inédito, que pretendem lançar futuramente. E Verta, que possui muitas canções não lançadas do grupo, pretende que elas ganhem lançamento até 2023, quando a banda (que nunca encerrou atividades oficialmente) completará 40 anos de existência.

Mas mesmo que essas músicas inéditas nunca sejam lançadas, o Harry já cumpriu com louvor máximo sua missão em toda a história do rock nacional, e essa missão está nas faixas de Fairy Tales, a obra-prima do conjunto, que será reverenciada ad eternum, enquanto houver garotos e garotas interessados no grande rock’n’roll.

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