Gerson Rodrigues Côrtes, o rei da Soul Music made in Brasil, deixou um imenso legado. Nesta primeira parte, traçamos seus passos iniciais, influências e seu impacto na música brasileira dos anos 1970
Felipe Tringoni é jornalista e pesquisador musical em São Paulo. Em passagens por Rádio e TV Cultura, Terra e Estadão, cobriu cinema, artes plásticas e até economia — sempre pensando no próximo disco pra rodar. Atualmente colabora com podcasts e projetos de curadoria ligados a música brasileira.
ilustrações por Nirtu Bergamini
“Diga bem alto: sou negro e tenho orgulho”
James Brown, em “Say It Loud I’m Black And I’m Proud”
“Vou lhe dizer o que é liberdade para mim: nenhum medo”
Nina Simone, no documentário What Happened, Miss Simone?
“O que eu passei na minha terra, bicho, porque eu era negro…”
Dom Salvador, no documentário Dom Salvador and Abolition
“A sabedoria dos reis
Gerson King Combo, Afrika Bambaataa, Martin Luther King”
Câmbio Negro, em “Não Pare”
“Assuma sua mente, brother!
E chegue a uma poderosa conclusão
De que os blacks não querem ofender a ninguém, brother!
O que nós queremos é dançar!
Dançar, dançar e curtir muito Soul!”
Gerson King Combo, em “Mandamentos Black”
Rio de Janeiro, 1977. O break de bateria anuncia o chamado, “Brother!”, que vem seguido pela entrada do restante da formação Funk: guitarra, baixo, teclado, percussão e metais. O vocalista assume o protagonismo, mas não canta. Como um proto MC, levanta que “o certo é seguir os mandamentos blacks”:
“Dançar como dança um black
Amar como ama um black
Andar como anda um black
Usar sempre o cumprimento black
Falar como fala um black”
Se esse fosse o único registro musical de Gerson King Combo em seus 76 anos de vida, seu nome já mereceria estar nas páginas de história da música e do orgulho negro brasileiros. Mas como figura onipresente por décadas, central na incorporação da sonoridade da Soul Music pela MPB e grande catalisador da cena musical da Black Rio na década de 1970, o legado do artista — falecido no último 22 de setembro em decorrência de infecção generalizada e complicações de diabetes — vai muito além do maior sucesso de sua curta discografia, “Mandamentos Black”.
“Apesar de ter gravado pouco, a voz e a imagem de Gerson alcançaram uma grande circulação, que atravessou décadas e acabou por consolidar, com sua forma de vestir, de dançar, de falar, uma estética revolucionária, que desestabilizava os discursos e hierarquias raciais, apresentando uma nova possibilidade de ser negro no Brasil”, diz a pesquisadora Luciana Xavier de Oliveira, autora de A Cena Musical da Black Rio (Edufba, 2018).
“Sou Gerson Rodrigues Côrtes de nascimento. Nascido em Madureira, Rua Andrade Figueira, 394, numa tarde de novembro de 1943. Meu pai era policial federal, cana dura, levando a gente sempre rígido, em igrejas, eu e meu irmão Getúlio Côrtes, autor de ‘Negro Gato’ e outras músicas. Então tivemos uma infância não muito pobre, mas também não rica. Uma coisa assim que dava pra gente ter um estudozinho mais ou menos. E nos colocou num caminho que, graças a Deus, eu, meu irmão e minhas irmãs não demos pro outro lado, marginal. Só deu pro lado do bem”. Assim ele abriu sua entrevista a Zé Octávio Sebadelhe e Luiz Felipe Peixoto, o Gaoners, autores de 1976: Movimento Black Rio (José Olympio, 2016).
A carreira artística de Gerson começa nos anos 1960, na Rádio Mayrink Veiga, no programa Hoje é Dia de Rock. Ele liderou o grupo de dança e dublagem The Drinkers entre 1961 e 65. “A dança era um lance primordial do programa, a gente ficava na expectativa. Toni Tornado, Gerson e duas bailarinas, sendo que uma delas veio a ser a esposa dele”, conta José Carlos de Souza, o Carlos Dafé, amigo e também ponta-de-lança da Black Rio na década seguinte, fazendo referência a Angélica Maria de Oliveira Galhardo — companheira de Gerson por mais de 30 anos.
“Então comecei na arte da música com meu irmão, que era um dançarino maravilhoso de Rock and Roll. Aprendi vendo Getúlio dançar e me tornei coreógrafo de várias nuances, Jovem Guarda, Chacrinha e por aí afora. Vários programas de TV”, segue Gerson. Gaoners, que colheu esse depoimento, completa: “Na década de 1960 existiam vários grupos de mímica que encenavam as músicas em inglês. Ele já vinha com essa bagagem de interpretação e foi, com o tempo, sendo solicitado pelas produções porque, além de antenado com tudo o que acontecia, também era muito bonito e forte”. O tipo físico, inclusive, o levou a ingressar no exército simultaneamente, na Brigada de Infantaria Paraquedista.
Com a ajuda do irmão Getúlio — que, além de “Negro Gato”, também assinou outras canções gravadas por Roberto Carlos, como “Noite de Terror”, “O Feio” e “Pega Ladrão” –, Gerson chegou ao programa Jovem Guarda, na TV Record. Além de dançarino e coreógrafo, era contrarregra. “Foi quando o conheci pessoalmente”, recorda Dafé, que visitava a emissora tentando apresentar suas próprias músicas a Roberto. Lá, Gerson também fez contato com o maestro Erlon Chaves, que o convidou para cantar com o astro Wilson Simonal, então no auge ao lado do trio Som Três, de Cesar Camargo Mariano, no show “De Cabral a Simonal”. Durante a apresentação do sucesso “Sá Marina”, o protagonista se escondia atrás do palco. Quando voltava à cena durante a música, revelava uma brincadeira com Gerson, seu “sósia”, posicionado à espera da estrela.
“O V Festival Internacional da Canção deixou um rastro de racismo, uma marca de preconceito contra artistas da raça negra, aquela que contribuiu para a música brasileira, como também para a cubana e a norte-americana, com o elemento mais proeminente de seu caráter, o ritmo.”
São dessa época os primeiros lançamentos da discografia do então Gerson Côrtes: dois compactos de 1968 e 1969 pelos selos Equipe e Epic, respectivamente, com músicas do irmão Getúlio. Àquela época, a Soul Music estourava nas paradas norte-americanas — e, em seguida, do mundo todo — com Aretha Franklin, Otis Redding, The Temptations, Marvin Gaye e dezenas de outros artistas dos elencos de gravadoras emblemáticas como Atlantic, Motown e Stax. Quem viu de perto essa ascensão foi Sebastião Rodrigues Maia, o Tim, que a essa altura estava de volta ao Brasil, deportado após uma longa estadia e boas doses de confusão nos Estados Unidos. Pioneiro, ele também já estava na ativa com seus primeiros compactos lançados, além de ter tido sua “Não Vou Ficar” gravada por Roberto Carlos. Simultaneamente, outros discos davam incisivas pistas da chegada das ondas da Soul por aqui: International Hot, de Raul de Souza (então Raulzinho) e seu conjunto Impacto 8; A Onda é Boogaloo, do egresso da Jovem Guarda Eduardo Araújo; Cry Babies, do combo instrumental de Oberdan Magalhães e Luis Carlos Batera, semente da Banda Black Rio; e Dom Salvador, álbum solo do mago pianista que contém “Be By My Side”, de Barbara Acklin, e anuncia na contracapa: “Síntese brasileira da música negra no mundo”. O ano era 1969.
1970 foi ainda mais emblemático para essa cena em nível nacional. Toni Tornado, também recém-chegado de uma deportação da América do Norte, venceu o V Festival Internacional da Canção interpretando “BR-3” ao lado do Trio Ternura, fez o gesto do punho cerrado dos Panteras Negras dos Estados Unidos e dedicou o prêmio à então namorada, a estelar atriz Arlete Salles. No mesmo evento, após sua performance de “Eu Quero Mocotó” com a Banda Veneno e uma turma de dançarinas que o beijavam, o maestro Erlon Chaves foi acusado de assédio moral e obscenidade, levado a uma delegacia e proibido de exercer suas atividades por 30 dias. Gerson Côrtes participou desse festival no conjunto de Dom Salvador, dando voz a “Abolição 1860–1960”, que tirou o quinto lugar. “O V FIC deixou um rastro de racismo, uma marca de preconceito contra artistas da raça negra, aquela que contribuiu para a música brasileira, como também para a cubana e a norte-americana, com o elemento mais proeminente de seu caráter, o ritmo”, escreveu Zuza Homem de Mello em A Era dos Festivais (Editora 34, 2003). Ainda em 1970, Tim Maia lançou — e estourou com — seu primeiro álbum, dos hits absolutos “Primavera (Vai Chuva)”, “Azul da Cor do Mar”, “Coroné Antonio Bento” e tantas outras.
É também desse ano o disco Gerson Combo e a Turma do Soul, lançado pela Polydor, que marca a estreia de Gerson em LP e de seu codinome “Combo”, tirado de King Curtis Combo (banda do saxofonista norte-americano). Com arranjos do maestro Waltel Branco, participações da banda Os Diagonais e de músicos como Hélio Delmiro, Marcio Montarroyos e Nelsinho Trombone, o álbum traz 12 releituras à moda Soul de canções que faziam a trilha sonora dos bailes cariocas da época. Gerson dá voz a sete delas, com destaque para versões envenenadas de “Quero Voltar Pra Bahia” (Paulo Diniz e Odibar), “Na Baixa do Sapateiro” (Ary Barroso), “Xote das Meninas” (Luiz Gonzaga e Zé Dantas) e “Is That Law” (Marcos e Paulo Sergio Valle).
“Fiquei tão empolgado que subi no palco e comecei a dançar perto da banda. Eu só queria um segundo pra aparecer. Demos dois passinhos juntos e ele falou pra eu descer do palco.”
Também nesse período ele começou uma série de viagens e intercâmbios musicais decisivos em sua trajetória: em 1970, foi para o México com Simonal e toda a turma da Pilantragem durante a Copa do Mundo de futebol; em 1972, conheceu Stevie Wonder durante a passagem do astro pelo Brasil, promovida pela gravadora Odeon; e em 1969 e 1971 teve seus dois primeiros encontros com James Brown.
“Eu era da banda do Wilson Simonal e durante uma turnê, em Porto Rico, assisti a um show com os mestres da música negra norte-americana: Four Tops, Diana Ross & The Supremes e James Brown. Eu nem o conhecia bem ainda. Mas quando ele apareceu pra cantar, pensei: ‘esse é o cara’. Fiquei tão empolgado que subi no palco e comecei a dançar perto da banda. Eu só queria um segundo pra aparecer. Demos dois passinhos juntos e ele falou pra eu descer do palco. Desci, fui embora, encontrei os músicos na saída e deixei meu endereço com o [saxofonista] St. Clair Pinckney”, Gerson contou em entrevista a Ramiro Zwetsch para a edição de fevereiro de 2007 da revista Bizz.
A segunda vez foi em 1971. “Fui pra Nova York com o Simonal e o Som Três. Ia ter um show do James Brown e acabei descobrindo o hotel em que ele estava. Chegando lá, o empresário não queria deixar eu subir na suíte dele. Daí apareceu o St. Clair, que me levou pra falar com o homem. Ele era baixinho, feio pra cacete, tinha uma ‘narigona’ maior do que a minha. Eu dei a maior força para ele vir para o Brasil porque ele era o ídolo do movimento negro que estava rolando aqui”.
“O Soul, com sua carga cultural, traz um comprometimento quase ritualístico que veio dos spirituals [cânticos religiosos], do Gospel, e foi transferido pelo Blues até chegar ao Funk, seu formato mais moderno e urbano. Mas a filosofia sempre foi a mesma: transcender para uma ancestralidade trazida pelo canto da alma negra, pelo espírito da mãe África”, disse o músico Otto Nascarella, o Nasca, em depoimento no livro 1976: Movimento Black Rio.
Em 1974, esse gênero vivia sua fase mais gloriosa nos Estados Unidos. Muitos dos seus grandes nomes estavam no auge da maturidade artística, lançando sequências de álbuns seminais que conciliavam inovações musicais com apurados olhares para questões políticas do momento: Guerra do Vietnã, luta por direitos humanos, antirracismo e até o escândalo de Watergate. Durante a entrega dos prêmios do American Music Awards daquele ano, os três indicados na categoria Artista de Soul Masculino — James Brown, Al Green e Stevie Wonder — foram perguntados: afinal, o que é Soul?
“Soul para mim é a identidade que um jovem negro precisa para ter uma vida decente e respeitável”
James Brown
“Soul é sentimento, profundidade e compreensão. Uma mescla de mente, corpo e espírito”
Al Green
“Soul é a expressão negra do interior de alguém. Sentimento”
Stevie Wonder
Além de articularem profundamente sobre a Soul Music em poucas palavras, as definições dizem muito sobre três personalidades — e artistas — bem diferentes entre si. Brown asperamente insere o componente sociopolítico e, da mesma maneira que em sua música, mostra enorme poder de invocar uma condição de vida em seu discurso. Anos antes, em 1968, ele lançou o single “Say It Loud I’m Black and I’m Proud” (Diga bem alto: sou negro e tenho orgulho) e redefiniu a causa Black Power: seus ecos são sentidos até hoje não apenas na música, mas no pensamento afrodiaspórico por todo o mundo. Da África — no mesmo ano de 1974, foi recebido com honras de rei para tocar no festival antes da luta entre os boxeadores Muhammad Ali e George Foreman na República Democrática do Congo (então Zaire), além de ter influenciado um sem-número de artistas — ao Brasil — onde esteve em 1973, 1988 e 1994.
No primeiro show no Rio de Janeiro, “a negrada encheu o Canecão. Eu estava com a minha esposa e lembro que me deu uma dor de barriga de nervoso porque eu queria que ele me visse, me reconhecesse e me levasse pro palco. Quando gritei, o St. Clair fez um sinal pra mim e eu quase me mijei de tanto êxtase. Fiquei louco em cima de uma mesa do Canecão. No camarim estava um assédio muito grande, não consegui chegar. Eu já estava começando a gravar meu disco, que seria completamente James Brown”, disse Gerson King Combo no depoimento a Ramiro Zwetsch.
Mas além do poderoso discurso e dos gritos, giros, espacates e microfones para o alto que compunham uma apresentação sem igual, o que acontece musicalmente que faz James Brown ser tão único? A resposta está no surgimento do Funk em 1964 — ano de lançamento do álbum Out Of Sight, que, segundo o próprio Brown em sua autobiografia (James Brown: The Godfather of Soul, Capo Press, 2003), “foi um recomeço, musical e profissionalmente. Você pode ouvir a banda e eu começando a nos mover para outra direção no ritmo. Os metais, a guitarra, os vocais, tudo estava começando a ser usado para estabelecer todos os tipos de ritmo de uma só vez. Eu estava tentando fazer com que todos os aspectos da produção contribuíssem para os padrões rítmicos”.
Nesse processo, Brown criou todo um novo padrão: em sua música a partir dali, a ênfase está no “um” do compasso — a clássica entrada do break de bateria –, o que cria espaço no groove para o restante da banda acrescentar síncopa às outras batidas, ou seja, inserir acentos e ritmo em lugares não esperados. “Ele escapou das melodias. Sua música era muito focada nos ritmos e acho que isso é o que fez do Funk um som tão dançante e popular, porque mesmo os músicos não estão sempre cantando. É mais coral em grupo. Mas não é conduzido por uma série de acordes, e sim por interações rítmicas”, diz Portia Maultsby, especialista do National Museum of African American Music de Nashville, nos Estados Unidos.
E tudo isso vem da igreja negra. O fraseado e os gritos de James Brown são mais influenciados por pastores do que por cantores propriamente ditos. O estilo de apresentação desses pregadores busca respostas da congregação presente — a famosa técnica do “call and response” (chamado e resposta), que inspirou gerações de artistas de Soul, Rap e até os ad-libs (improvisos e marcações vocais no contratempo) do Trap de hoje.
“O Black Rio só existiu porque havia James Brown. Ele mexeu com o orgulho negro, acordou aquela coisa que estava dormindo aqui nos morros.”
Cantar “sou negro e tenho orgulho” em meio a uma revolução estética era muita coisa. James Brown representou a intersecção de muitas coisas importantes e, se isso lhe custou uma parcela de sua audiência branca no final da década de 1960, também eternizou seu nome como maior arquiteto do Funk e autor da trilha sonora definitiva do orgulho negro. “Na minha humilde opinião, imediatamente após o assassinato de Martin Luther King, James Brown se tornou o negro mais importante dos Estados Unidos. Os negros estavam em busca de muitas respostas depois do festival de confusões de 1968”, diz Chuck D, líder do Public Enemy, no prefácio do livro O Dia em que James Brown Salvou a Pátria (Zahar, 2015).
No Brasil, sem James Brown e “Say It Loud I’m Black and I’m Proud”, é provável que não houvesse “Negro é Lindo”, de Jorge Ben, por exemplo. E certamente não haveria Gerson King Combo e todo o movimento Black Rio. “O Black Rio só existiu porque havia James Brown. Ele mexeu com o orgulho negro, acordou aquela coisa que estava dormindo aqui nos morros”, segundo o próprio Gerson.
Desde Gerson Combo e a Turma do Soul, sua música já se movia fortemente no sentido de afirmação da negritude e, em James Brown, Gerson encontrou o modelo perfeito para veicular suas ideias. Em entrevista de 2009 a Charles Gavin, para o programa O Som do Vinil (Canal Brasil), ele contou que seguiu o caminho da Soul Music por dois motivos principais: os discos que seu irmão Getúlio o apresentava e a influência de seu pai, policial, que via os integrantes das escolas de samba de sua região — Portela, Império Serrano e Tradição — como “marginais”: “existia discriminação com os sambistas”.
“Acho que o Gerson chama a atenção para o fato de que jovens negros, naquele momento, passam a não mais acatar representações tradicionais em termos de cultura e processos de identificação. Nesse sentido, era importante para esses indivíduos se entenderem como pertencentes ou se identificarem com uma comunidade ou uma identidade negra que ultrapassasse os limites da nacionalidade, da brasilidade. Penso que ia além de apenas manifestar um gosto musical por outros gêneros, notadamente norte-americanos, já que não podemos descartar a influência dos Estados Unidos na cultura popular massiva brasileira, mas especialmente atentar para a difusão aqui de uma produção cultural que englobava sons, valores, imagens de uma cultura também periférica por lá, que era a cultura negra urbana. Então era uma forma de diálogo entre comunidades negras, mas também entre periferias, na constituição de fluxos globais também entre subjetividades subalternizadas. Não que o samba não fosse importante ainda para esses jovens, mas para muitos ele passou a ser compreendido como música nacional, popular, e não mais música negra”, diz Luciana Xavier de Oliveira.
“Assim como o samba é universal, o Soul também é, e acredito que a tendência é um influenciar o outro, já que nasceram de uma mesma raça e estão procurando a sua linguagem internacional”.
Em depoimento a Nelson Motta, publicado em coluna de 25 de janeiro de 1977 no jornal O Globo, o próprio Gerson articula essas ideias. “O Soul não é apenas uma música negra, assim como o samba não é só música brasileira. Jorge Ben, Jair Rodrigues e Gilberto Gil fazem muito sucesso lá fora e já começam a influenciar outras músicas. Assim como o samba é universal, o Soul também é, e acredito que a tendência é um influenciar o outro, já que nasceram de uma mesma raça e estão procurando a sua linguagem internacional”.
Gerson seguiu manifestando esse método antropofágico em seus lançamentos na primeira metade da década de 1970. Sua discografia no período é inconstante, com três compactos por duas gravadoras diferentes. Pela Parlophone, ainda como Gerson Côrtes, lançou o simples com “Viva” e “Minha Menina”, em 1971; e o duplo com “Poluição”, “Nunca Pensei”, “Alguém no Meu Caminho” e “Pra Lá de Normal”, em 1972. Já pela Tapecar, soltou em 1973 o sete polegadas com “Quando a Cidade Acorda” (composta para ele por Roberto e Erasmo Carlos) e “Me Dá Mais um Cigarro”. Na foto da capa, Gerson posa com seu melhor visual James Brown de Madureira: costeletas, chapéu, peito à mostra pelo colete aberto e calça de couro.
Em paralelo a esses lançamentos próprios, que não receberam grande atenção da mídia nem tiveram grandes vendagens, Gerson foi diretamente responsável por injetar veneno Soul em incontáveis gravações de artistas brasileiros da época. “Como não havia muita gente articulando essa linguagem, ele tinha espaço e representava isso no Brasil junto com Tim Maia, Toni Tornado, Dom Salvador, Oberdan Magalhães e outros. Quando queriam uma parada Soul, ligavam para o Gersão”, conta Paulão Sakae Tahira, o DJ Paulão.
Entre 1968 e 1974, Gerson teve passagens por conjuntos como os Blue Caps de Renato Barros, The Fevers de Pedrinho da Luz e o Fórmula 7 de Márcio Montarroyos e Hélio Delmiro. Ao lado dessas bandas ou individualmente, também emprestou voz a gravações de Som Três, Dom Salvador, Ed Maciel, Orquestra Som Bateau, S.O.S. (Som Orlando Silveira) e Paulo Diniz. Até com a sueca Sylvia Vrethammar, aficionada por música brasileira, Gerson gravou nesse período, garante o expert DJ Lula Superflash. “E não tem o nome dele em muitos desses discos”, nota Paulão. Confira no fim do texto uma playlist com essas e outras inspiradas participações.
“O Gerson participou do Renato e seus Blue Caps ali no final dos anos 1960. Uma figura que faz falta a qualquer ambiente, muito alegre, brincalhão, não tem quem não goste dele”, recorda o líder Renato Barros — também falecido em 2020 — em depoimento a Lucinha Zanetti no livro Renato Barros: Um Mito! Uma Lenda! (Ed. Nelpa, 2019). Para Ronaldo “Groove” Pereira, amigo, empresário e assessor, além de criador da banda que acompanhou Gerson ao vivo nos últimos anos, “o [Carlos] Dafé e o Hyldon eram mais próximos, mas ele era amigo de todo mundo. Tinha até o apelido de ‘diretor de clima’, porque animava qualquer lugar que chegasse”. O próprio Dafé assina: “Era um cara muito ativo e sabia bem o que queria, o que dava certo e o que não dava dentro do seu segmento”.
A essa altura, não faltava muito para o Rei assumir o trono da música black brasileira.
Para ampliar o debate e a escuta, leia a segunda parte do Perfil e ouça as playlists abaixo:
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