Conversamos com amigos, estudiosos e artistas de diferentes épocas para entender o papel fundamental de Gerson à frente da cena Black Rio, seu legado e como sua música e discurso estimulam a autoestima negra
Felipe Tringoni é jornalista e pesquisador musical em São Paulo. Em passagens por Rádio e TV Cultura, Terra e Estadão, cobriu cinema, artes plásticas e até economia — sempre pensando no próximo disco pra rodar. Atualmente colabora com podcasts e projetos de curadoria ligados a música brasileira.
ilustrações por Nirtu Bergamini
Simultaneamente às inúmeras participações do então Gerson Côrtes em produções de outros artistas, aos primeiros lançamentos de sua carreira própria e aos sucessos de Tim Maia, Cassiano, Hyldon e Toni Tornado na primeira metade da década de 1970, a cena musical da Black Rio se desenvolvia de fato nos subúrbios do Rio de Janeiro desde pelo menos 1969. Multidões de jovens negras e negros lotavam bailes em clubes, galpões e quadras de escolas de samba para dançar a Soul Music irradiada pela potente aparelhagem das “equipes” e seus discotecários. São fundamentais nessa história nomes como Asfilófio de Oliveira Filho, o Dom Filó, e Luiz Stelzer, o Luizinho Disc Jóquei Soul, no Baile do Renascença, em Andaraí; o DJ Ademir Lemos e o lendário radialista e entertainer Newton Alvarenga Duarte, o Big Boy, responsáveis pelo Baile da Pesada e por pioneiras coletâneas de Soul produzidas para o mercado brasileiro; e disc-jóqueis como Oséas Moura dos Santos, o Mr. Funky Santos, dos bailes do clube Astória, no Catumbi.
Em 17 julho de 1976, após meses de entrevistas e pesquisas, a repórter Lena Frias trazia à luz e dava um nome ao fato Black Rio em matéria de quatro páginas publicada no Jornal do Brasil. O título: “Black Rio: O Orgulho (importado) de ser Negro no Brasil”. “Uma cidade de cultura própria desenvolve-se dentro do Rio. Uma cidade que cresce e assume características muito específicas. Cidade que o Rio, de modo geral, desconhece ou ignora. Ou porque o Rio só sabe reconhecer os uniformes e os clichês, as gírias e os modismos da zona sul; ou porque prefere ignorar ou minimizar essa cidade absolutamente singular e destacada, classificando-a no arquivo descompromissado do modismo; ou porque considera mais prudente ignorá-la na sua inquietante realidade. Uma cidade cujos habitantes intitulam a si mesmos de ‘blacks’ ou ‘browns’; cujo hino é uma canção de James Brown ou uma música dos Blackbyrds; cuja bíblia é Wattstax, a contrapartida negra de Woodstock; cuja bandeira traz estampada a figura de James Brown, Rufus Thomas ou Marva Whitney; cujo lema é ‘I am somebody!’ (Eu sou alguém!); cujo modelo é o negro americano, cujos gestos copiam, embora sobre a cópia já se criem originalidades”. Nas semanas seguintes, o fenômeno foi esmiuçado pela imprensa de todo o Brasil.
“Não me preocupo em ver se a música é black soul ou qualquer outra. Mas o black, agora, é uma realidade. Se ele existe, está aí, a gente transa”
No mercado fonográfico, algumas gravadoras de porte modesto, como Top Tape e Tapecar, já apostavam desde o final dos anos 1960 no lançamento de discos de artistas norte-americanos como Curtis Mayfield, Diana Ross, Marvin Gaye e Stevie Wonder, formando um segmento rentável. Mesmo assim, só quando a Black Rio se tornou um grande fenômeno popular é que essas empresas começaram a criar departamentos específicos para a Soul, investindo em novos nomes nacionais. Outra estratégia foram os lançamentos das coletâneas assinadas pelos discotecários ou pelas grandes equipes — como Soul Grand Prix, Dynamic Soul e Black Power. O público dos bailes representava um enorme mercado em potencial, que passou a ser explorado pelas gravadoras.
“Não me preocupo em ver se a música é black soul ou qualquer outra. Mas o black, agora, é uma realidade. Se ele existe, está aí, a gente transa”, contou Roberto Menescal, então gerente de produtos da gigante Phonogram, em reportagem de Ana Maria Bahiana publicada no Jornal de Música de fevereiro de 1977 — e presente no livro-coletânea Nada Será Como Antes: MPB Anos 70–30 anos depois (Editora Senac Rio, 2006). A matéria mostra que a linha de produção da gravadora investia nos já veteranos Cassiano e Tim Maia e em “duas novidades”: a banda União Black e Gerson King Combo. “Agora, entrosado com o Black Rio em colocação e imagem (…), Gerson tem carta branca para formar a equipe soul da gravadora, onde é o carro-chefe da ocupação mercadológica black”, segue Bahiana.
“Ele gravou na Phonogram com a União Black e eu na Warner com a Banda Black Rio, tudo na mesma época. Já era o Movimento Black Rio com música brasileira, porque as gravadoras tinham que ter um casting nacional pra isso”, lembra Carlos Dafé. “E começamos a tocar nos bailes. No meio do baile entrava o ao vivo. E foi dando uma visão bonita”. Dafé e Gerson foram os artistas que mais fizeram shows nas festas da época.
1977 foi o ano de ouro da música black brasileira. Foi quando o som do subúrbio carioca, trilha sonora dos bailes da Black Rio, chegou de fato às grandes gravadoras através de uma geração de músicos fenomenais, que registraram álbuns conectados com o melhor da Soul Music do mundo e, ao mesmo tempo, extremamente singulares em sua brasilidade. Maria Fumaça e Pra Que Vou Recordar, estreias da Banda Black Rio e de Carlos Dafé, respectivamente (ambos emplacando temas em novelas da TV Globo naquele ano); Nossa História de Amor, terceiro LP de Hyldon; Nesse Inverno, de Tony Bizarro; homônimos de Robson Jorge, Tim Maia, e Mita; Black Soul Brothers, único disco solo de Miguel de Deus; e os dois lançamentos capitaneados por Gerson King Combo na Phonogram: a estreia da banda União Black e o seu próprio disco solo, batizado com seu novo nome artístico.
Gerson começou aquele ano nos estúdios da Warner com a Banda Black Rio, quando foi convidado por Pedrinho da Luz para gravar seu álbum pela Phonogram. O compositor e então diretor artístico da gravadora relembra no programa O Som do Vinil: “O Gerson, com aquele vozeirão que ele tem, fazia muito bem a coisa. E eu disse: que tal a gente fazer uma historinha com você sendo o cantor? Porque não tem ninguém cantando esse tipo de música”. O próprio Gerson completa: “Lá, você vai ser o crooner na Banda Black Rio, lembra disso. Aqui, você vai ser ‘Gerson, o rei do Black’ — esse seria o nome do disco. Vou ser o ‘King’, então bota ‘Gerson King Combo’ e já era. É um nome sugestivo”.
Gerson King Combo foi gravado com a União Black como banda de base. Desde sua gestação em 1975, o grupo não teve uma formação fixa e chegou a contar com 13 músicos, mas Dom Luiz (voz), Bira (sax e flauta), Ivan Tiririca (bateria), Lula Barreto e Claudio Café (guitarras) eram seus nomes mais regulares. As orquestrações no álbum são do maestro Miguel Cidras e os arranjos-base de Pedrinho, Augusto Cesar e Ronaldo Correa — que também assina a produção executiva. Além do manifesto-maior da Black Rio, “Mandamentos Black”, o álbum embala Funk pujante, letras autobiográficas de exaltação à negritude (“Andando nos Trilhos”, “Hereditariedade” e outras) e baladas românticas (“Just For You” e “Foi Um Sonho Só”) no grande registro da discografia de Gerson, que rendeu até telegrama de James Brown, o próprio, exaltando o “excelente trabalho de Black Soul Music no Brasil”. Na entrevista a Charles Gavin para o programa O Som do Vinil (Canal Brasil), Gerson diz que o contato se deu via Raul Seixas e Paulo Coelho, que fizeram uma cópia do álbum chegar a Brown. Ainda deu tempo de estampar uma cópia da mensagem na contracapa do LP.
De fato, o disco de 1977 é um divisor de águas em sua carreira. Até então, Gerson era figurinha carimbada na cena, respeitado por artistas, produtores e até executivos, mas não muito além do meio musical. Lançado por uma grande gravadora no auge do movimento do qual já era um dos grandes expoentes, Gerson King Combo catapultou sua projeção em escala nacional — e ele assumiu o trono de rei com naturalidade. No embalo, fechou 1977 com o compacto Jingle Black, que deseja feliz Natal, feliz ano novo e presta homenagem “a todas as equipes que direta ou indiretamente cooperam com o Soul”. Com “Good Bye” no lado B, esse lançamento deu pistas da sonoridade de seu próximo disco, Gerson King Combo Volume II, lançado no ano seguinte.
Em seu segundo trabalho solo, o apoio a Gerson é do Super Bacana, conjunto tarimbado na cena dos bailes cariocas do começo da década de 1970 (ao lado de Renato e seus Blue Caps, The Fevers e Painel de Controle) e que também trabalhava com Pedrinho da Luz na Phonogram. O resultado é uma sonoridade menos Hard-Funk que a do álbum anterior, por vezes próxima da discoteca, com coros femininos arranjados à moda da novíssima música pop brasileira da época (em “Pro Que Der e Vier”, “Na Trilha do Coração” e outras). Ainda assim, há espaço de sobra para o balanço em faixas como a já citada “Good Bye”, “Tenho um vulcão dentro de mim” e mais um hino do Black Power tupiniquim, “Funk Brother Soul”. Os arranjos orquestrais são de Hugo Belardi e os de base ficam, mais uma vez, com Pedrinho e Ronaldo Correa, além do Super Bacana. Em retrospecto, Volume II pinta, junto com Gerson King Combo, o retrato definitivo do rei da Black Rio no auge de seus poderes.
A partir dali, a inconstância de seus lançamentos coincide com o novo momento daquela cena musical. A exposição midiática e o interesse do mercado no nicho aumentaram, o que trouxe novos artistas, produção em larga escala e novas sonoridades, com destaque para a influência massiva da Disco Music. Nesse contexto, em 1979, Gerson lançou o compacto simples com “Melô do Hulk” e “Mr. John It’s Pay Day (Melô Do Pagamento)” — que ganhou apresentação no programa de Carlos Imperial em clima de discoteca brasileira. Nos anos seguintes, participou da trilha sonora brasileira da animação Doutor Sinuca, exibida pela TV Globo, com a faixa “Não Faz Isso (Don’t Do Dat)”, e lançou apenas mais dois sete polegadas próprios: Melô do Mão Branca em 1980 e De Madureira à Central em 1985. Em paralelo, medidas autoritárias de repressão — tanto à produção Soul nas gravadoras quanto aos bailes da Black Rio — eram colocadas em prática pelo regime militar da época.
É impossível falar sobre Black Rio sem citar a perseguição sofrida pelo movimento. Apesar de tratar-se de entretenimento popular e de consumo, esse foi um momento em que o negro se afirmou como lindo, autônomo e cidadão — movimentações essencialmente políticas, que receberam críticas tanto de setores da esquerda quanto da direita. “Para a esquerda, o racismo seria um problema menor ou motivado pelas desigualdades econômicas. Havia uma crítica ao consumo de músicas e modas norte-americanas pelos jovens negros, que seriam cooptados pelo imperialismo cultural estrangeiro. Já para a direita, especialmente para a polícia do regime militar, os bailes black — ou qualquer movimentação de cunho antirracista — eram vistos como um suposto conflito racial, representando uma ruptura na ideia de unidade nacional”, mostra Luciana Xavier de Oliveira na pesquisa de A Cena Musical da Black Rio (Edufba, 2018). Gerson King Combo, Toni Tornado, DJs e produtores das equipes de som mais famosas eram vistos como lideranças de um movimento revolucionário, uma célula dos Panteras Negras no Brasil.
O regime fazia o jogo da inversão narrativa. Em 1976, a equipe Soul Grand Prix foi investigada pelo Departamento da Ordem Política e social (DOPS) por “prática e incentivo de discriminação racial”. Para não perderem seus valiosos LPs importados, os DJs colocavam os discos de Soul em meio a outros de Samba durante as batidas e apreensões policiais nos eventos. No mesmo ano, após desembarcar de um voo no Aeroporto Santos Dumont, Gerson foi detido e levado para a sede da Polícia Federal na Praça Mauá, centro do Rio de Janeiro, onde foi interrogado por três horas. Luciana aponta: “Era comum também a polícia reprimir os bailes. Isso ocorreu durante a festa de lançamento do disco Gerson King Combo em 1977, que reuniu uma multidão de 30 mil pessoas no subúrbio do Rio”.
“Nós tínhamos a consciência de que só unidos sobreviveríamos”.
Diversos veículos de mídia também se opunham à cena e disseminavam preconceito. Em depoimento publicado no seu blog pessoal em 2011, o próprio Gerson fala sobre a cobertura do baile de lançamento de seu LP feita pela TV Globo. “Na época, o Fantástico fez uma matéria bastante duvidosa a respeito, que pode ter me prejudicado um pouco. Além de darem destaque a um tiro dado no meio da plateia, a matéria trazia também comentários e imagens sobre conflitos raciais nos Estados Unidos. Aquele tiro em pleno show poderia insinuar aos militares, que governavam o Brasil na época, que eu estaria fomentando tais conflitos aqui no Brasil. Isso poderia me prejudicar seriamente. Fiquei indignado. Esperava que aparecer no Fantástico fosse promover meu trabalho”. O amigo Carlos Dafé corrobora: “Gerson sofreu pra caramba. Um artista do naipe dele! Eu sofri, mas ele sofreu mais. E você vê: ele nunca teve ego, nunca foi de dizer ‘eu sou o melhor’, pelo contrário. Não só ele, mas todo o nosso movimento. Nós tínhamos a consciência de que só unidos sobreviveríamos”.
Em outubro de 1977, uma coluna assinada por Ibrahim Sued no jornal O Globo usa uma frase repetida pelo atual Presidente da República: “no Brasil não existe racismo”. Diz o texto: “Posso informar que um grupo da área musical brasileira está tentando lançar o movimento black power no Brasil. O líder é o cantor Gerson King Combo e o vice-líder Tony Tornado. A tônica do movimento é lançar o racismo no país, como existe nos States. Eles chamam uns aos outros de ‘brother’, e o cumprimento é com o punho fechado para o alto. Nos shows que promoveram no Rio e em São Paulo conseguiram a presença de 10 mil pessoas. Os brancos são evitados, mal tratados e até insultados. As autoridades estão atentas ao movimento, pois pode se tratar de problemas de segurança nacional. E mais: no Brasil não existe racismo. Existem as pessoas que alcançam posições mais elevada e outras menos. Nos espetáculos os negros aproveitam a oportunidade para agitação, jogando negros contra brancos e fazendo uma preleção para o domínio da raça no Brasil, a exemplo do que acontece nos States. Too bad, e bola preta”.
O controle ostensivo dos órgãos de repressão se estendia também pelo mercado fonográfico. André Midani, à época diretor da gravadora Warner, sofreu ameaças e foi pressionado para conter os lançamentos de Soul no Brasil. Em paralelo, a indústria apontava para a Disco como alternativa. “A Warner praticamente impôs que deveríamos entrar no segmento da Disco Music. Foi quando optei pela rescisão do contrato”, diz Dom Filó, que lançava as coletâneas da Soul Grand Prix pela gravadora, em entrevista no livro 1976: Movimento Black Rio (José Olympio, 2016).
Por sua vez, “Gerson era bem aberto a mudanças de estilos e estava fazendo isso de certa forma nos anos 1980, com ‘Melô do Hulk’ e ‘Melô do Mão Branca’, mas não deu muito certo comercialmente e ele foi deixando de fazer shows”, conta Ronaldo Pereira. Além do contexto político e das questões mercadológicas, a morte da companheira Angélica em 1990 também o desiludiu, diz o amigo, empresário e assessor. “Era um casal muito bonito e ela foi muito importante na vida dele. Dançavam juntos desde os anos 1960”. Afastado da música, Gerson trabalhou como coordenador de eventos da FUNLAR (Fundação Municipal Lar Escola Francisco de Paula), instituição da Prefeitura do Rio de Janeiro que atende crianças carentes e excepcionais no bairro de Vila Isabel. Exerceu essa função até meados de 2010, mesmo depois do retorno aos palcos e estúdios.
“Minha mãe é negra, graças a Deus
O meu pai é um black também, graças a Deus
E por isso que meu corpo treme todo com o Soul a balançar
Quando começa, mexe tudo, se agita e já não posso parar
É, brother
Desde pequeno isso acontece comigo, man!
Acho que é hereditário
Porque a mesma coisa aconteceu com os meus pais
Aquele suinguezinho malandro, velho
Quando ouviam um som black
Dançavam! Dançavam, man!”
Gerson King Combo, em “Hereditariedade”
A volta de Gerson ao meio musical começa a se desenhar em 1998. Quem conta é Zé Octávio Sebadelhe, coautor de 1976: Movimento Black Rio e ávido colecionador de discos. “Eu era fã e consegui o contato do Gerson através de outros colecionadores. Liguei e no mesmo dia combinamos o encontro na casa dele em Vicente de Carvalho, na zona norte do Rio. Ele morava num apartamento simples, quarto e sala, com seu filho. E me recebeu de hobby amarelo, com as iniciais ‘GKC’ bordadas em letras douradas”.
Nos dias seguintes, Sebadelhe, então repórter do caderno de cidades do Jornal do Brasil, passou o contato para Paulinho Black, ex-baterista da Banda Black Rio, que convidou Gerson para uma participação no show de seu conjunto Clave de Soul, e para Silvio Essinger, também jornalista do JB e que cobriu essa apresentação na Ballroom — antiga casa de shows do bairro do Humaitá — para o jornal. “Essa matéria deu uma levantada nele”, lembra Ronaldo Pereira. Segundo Sebadelhe, “o gancho era o retorno do Gerson aos palcos. Depois da publicação, ele participou do programa da Regina Casé e a coisa decolou”. O programa em questão era Muvuca, da TV Globo. Não demorou para chegarem novos convites de shows.
“Penso muito nos caras que vieram antes da gente, que construíram o caminho, e o Gerson é um deles. Foi uma honra brutal ter convivido com ele”.
“Muitos artistas valorizaram a obra do Gerson nessa volta, como Funk Como Le Gusta, Paula Lima e Fernanda Abreu, que já o chamavam para cantar desde o finalzinho da década de 1990. Mas foi a partir de 2010 que ele começou a tocar mais frequentemente com bandas da nova geração em todo o Brasil. E deu liga! Ele era um cantor de Soul que se apresentava geralmente para um público jovem, até em festival de Rock ele cantou”, diz Ronaldo, que é fundador da Supergroove, a banda que acompanhou o cantor em diversas turnês nas últimas duas décadas. Nesse período, Gerson lançou dois discos: Mensageiro da Paz, de 2001, que tem participações de Sandra de Sá e das bandas Cidade Negra e Clave de Soul, além de produção do grande parceiro Pedrinho da Luz junto a Jairo Pires; e Soul da Paz, de 2009, produzido pelos mineiros Berico Roots e Adriano George. Além disso, também colaborou em gravações de vários novos artistas até recentemente, como Black Machine, Big Pacha e Tomba Orquestra. Carlos Dafé atesta essa vitalidade: “Você nunca via o Gerson reclamando. Ele amava cantar e dançar. Eu andava preocupado nos últimos tempos, porque ele tinha feito uma cirurgia no pé, tirado de dois a três dedinhos por causa da diabetes. E depois disso, em shows nossos cantando com a banda Black Mantra, ele dançou pra caramba. Não podia, mas vai fazer o quê? Vai segurar?”
Outro parceiro e figura fundamental na volta de Gerson aos palcos foi Bernardo Santos, o BNegão. No Planet Hemp, ele e Marcelo D2 costumavam citar os “mandamentos black” nas performances ao vivo de “Zerovinteum” — como no registro do MTV Ao Vivo, de 2001. “Meu primeiro contato com o Gersão foi através de uma outra banda, o Câmbio Negro, grupo fundamental do rap nacional, o primeiro que estrondou fora de São Paulo. Tinha uma música chamada ‘Não Pare’ em cima dos mandamentos. Isso foi no começo da década de 1990. Anos depois, o Gerson voltou a fazer shows no centro do Rio, eu fui acompanhando e nos conhecemos. Eu o considerava um segundo pai, tinha muito a ver a nossa parada. Ele me chamava de ‘Bee Negão’, com o B em inglês. ‘Bee Negão se parece comigo quando eu era mais novo’, ele dizia. A gente fez muito show junto, uma turnê maravilhosa pelo Nordeste, muitos lugares. Gerson é fundamento”, lembra emocionado. “Minha música ‘Funk Até o Caroço’ é uma homenagem a todos esses heróis da Black Music brasileira: Tim Maia, Jorge Ben, Marku Ribas, Di Melo, Carlos Dafé, Sandra de Sá, Banda Black Rio, tanta gente… E Gerson na cabeça. E eu fico felizaço porque todos gostaram da música. Penso muito nos caras que vieram antes da gente, que construíram o caminho, e o Gerson é um deles. Foi uma honra brutal ter convivido com ele”.
“No auge do Planet Hemp eu tinha aquele CD com o acrílico verde”, lembra o mais jovem Fabrício Oliveira, o Fabriccio, destaque da cena Soul contemporânea, em referência ao MTV Ao Vivo. “E eles cantavam aquela ‘Dançar, como dança um black’ e falavam o nome do Gerson King Combo”. Ele descreve seu contato com Gerson como “um grande tapa”: “Era aquela figura preta, com influência forte dos pretos norte-americanos, discurso super direto e bem elaborado. E uma música muito bem tocada. Eu ficava curioso sobre como devia ser a caminhada para gravar uma parada nessa época com essa estética, esse discurso. Acho que a referência principal para mim é o lugar que o trampo dele ocupa na linha do tempo — não só da música brasileira, mas mundial. A nossa resposta aqui para o som preto norte-americano dessa época, Soul, Funk e tal, foi muito boa. E desenvolveu uma linguagem própria ali, nessa geração”.
Gerson King Combo era um performer completo: além de cantor e dançarino, era um MC à frente de seu tempo, com uma performance diferenciada no palco — declaradamente inspirada em James Brown. Seus passos inspiravam a plateia e integravam o show à pista de dança, enquanto seu canto rasgado, intermediado por palavras de ordem, pregava a conscientização racial e se conectava à atmosfera dos bailes. Esse efeito estético também estava nos figurinos, nas roupas chamativas que lembravam os cafetões dos filmes de Blaxploitation — como Willie Dynamite, Super Fly e Dolemite. Para Luciana Xavier de Oliveira, “a capa, o chapéu, o terno e os sapatos faziam parte da performance, e o que podia ser visto como certo exagero na indumentária era uma forma de chamar atenção para a possibilidade do negro se ver como bonito, protagonista, importante, emulando uma via de ascensão social. Acredito que esses trajes vibrantes e glamourosos apontavam, de certa forma, para um horizonte mais criativo, imaginativo e pujante, diferente da vida cotidiana, e que permitiam à juventude negra dos bailes fortalecer sua autoestima”.
“Era melhor do que James Brown, porque era brasileiro”
Sandra de Sá, no programa O Som do Vinil
“Na busca da identidade absolvida e pertencimento, eu também busquei na América (A Torre) o caminho da nossa liberdade através do Funk de todas as eras! Esteja em paz, GKC! Nossos heróis te aguardam!”
Mano Brown, no Instagram
De fato, Gerson King Combo é como um padrinho honorário do Hip-Hop e das gerações seguintes de artistas negros brasileiros. Suas músicas comandaram pistas de dança no fim da década de 1970 e são referência para diversas gerações de rappers, de Marcelo D2 (que também cita os “mandamentos black” em “Qual é?”, um de seus maiores hits) a Rashid (em “Um Sonho Só”, que divide com Kamau, ele sampleia “Foi Um Sonho Só”, de Gerson). Mano Brown, Thaíde, Rincon Sapiência, Max B.O. e outros prestaram homenagens após sua morte. Além disso, seus discos e compactos são hoje objetos de culto por DJs e colecionadores do mundo todo, com cópias dos vinis originais negociadas por cifras que chegam à casa dos milhares, segundo o Discogs.
Não só padrinho, como também pioneiro. Como mostram Zé Octávio Sebadelhe e Luiz Felipe Peixoto em 1976: Movimento Black Rio, Gerson King Combo teria lançado o primeiro “melô” (espécie de antepassado do Rap no contexto carioca, com versos no estilo paródia, mais falados que cantados, em cima de batidas Funk ou Boogie): o “Melô do Hulk”, em 1979 — antes mesmo de “Melô do Tagarela”, de 1980, composta por Luiz Carlos Miele e Arnaud Rodrigues por cima de “Rapper’s Delight”, do Sugarhill Gang, e amplamente considerada a primeira gravação de Rap brasileira. No mesmo 1980, Gerson lançou o “Melô do Mão Branca”, em compacto sem sua assinatura ou qualquer tipo de crédito a intérpretes. A faixa, de conteúdo bastante questionável, faz apologia à violência de um justiceiro da Baixada Fluminense, presença constante nos tabloides sensacionalistas da época. Ele fala sobre a música e sua influência em entrevista no programa Manos e Minas, da TV Cultura: “Eu gravei a música do Mão Branca, que era toda falada. A moçada curte, os DJs conhecem muito, e me colocaram como o ícone deles do Rap e Hip-Hop. E eu me sinto maravilhosamente entrosado com eles”.
Entrosamento instantâneo aconteceu entre Gerson e o visionário do Rap Afrika Bambaataa, em encontro de 2012 que Ronaldo Pereira relembra aos risos. “Ele vinha muito ao Brasil e há anos queria se encontrar com o Gersão. Eu e o empresário que estava trazendo a turnê conseguimos combinar uma noite na porta do Canecão, antes de um show beneficente que teve participação do Gerson. Ele [Afrika Bambaataa] era enorme e desceu da van todo vestido de brasileiro, cantando ‘Uma Chance’ em inglês: ‘One more chance’. Gerson soltou um ‘Oh man!’ e emendou uma conversa com aquele inglês macarrônico dele. Depois de se despedirem, ele veio me perguntar: ‘Como é o nome desse negão mesmo?’”.
Na mídia, a última aparição de Gerson veio em abril deste ano, no Big Brother Brasil da TV Globo: uma performance de “Mandamentos Black” que emocionou o ator e participante do jogo Babu Santana. “Sempre foi bem difícil, ele queria mais reconhecimento ao seu trabalho”, segundo Ronaldo. Fabriccio reflete sobre isso: “Quando eu soube da morte dele foi um nó na garganta terrível. Veio aquela sensação de ‘mais um que se foi’. Será que conseguimos devolver o que ele deixou? Será que deu tempo? Esse sentimento é muito ruim”. Autor de “Teu Pretim”, “Orfeu”, “O Negro quando canta” e outras canções que buscam conexão com ancestralidade e exaltam a negritude, ele se enxerga trilhando os passos do ídolo. “Nem que eu não veja a diminuição de pretões reis como ele partindo sem um reconhecimento mais próximo do que mereceria, mas que as próximas gerações possam ver isso, sacou? Em esfera muito menor de qualidade e significado que o Gerson, acredito que a gente faça parte do mesmo legado. E me sinto muito privilegiado por ter o acesso facilitado a esse tipo de obra hoje. Como diria James Brown, o mind power vai lá no alto”.
O preconceito que existia em 1977 se atualizou: hoje, é replicado contra novas culturas musicais negras — vide a criminalização de festas como o Baile da Gaiola, no mesmo Rio de Janeiro, e o grau de intensidade jurídica no caso do DJ Rennan da Penha em 2019. “Sempre vai ser importante cantar sobre o orgulho negro”, diz BNegão. “Você vai puxando uma galera que ainda não sentiu o preconceito, mas é amassada todo dia. Vivemos num planeta atrasado e o racismo está aí desde sempre. E o movimento Black Rio foi chave, falava e se colocava sobre isso. E vamos seguindo o caminho dos mestres. Como me inspirei neles, muitos se inspiram em mim e em outros que estão chegando agora: Rincon Sapiência, Djonga, Baco Exu do Blues, BK. Pra poder expandir o peito e chegar chegando, como tem que chegar. Caso contrário, você é atropelado”.
“Gerson faleceu produzindo”, diz Ronaldo Pereira. No último dia 30 de novembro, seu aniversário, foi lançada a última música composta por ele em parceria com seu irmão, Getúlio Côrtes: “Tira esse joelho daí”, produzida por Marquinho OSócio (ex-The Voice Brasil). Também em 2020, ele gravou voz para uma música do novo projeto do cantor e compositor Lino Krizz.
Ronaldo adianta também que as negociações estão avançadas para um relançamento em vinil do disco Gerson King Combo (1977) pela Universal Music em 2021. Mas o principal plano para o próximo ano é a finalização do DVD Gerson King Combo 70 Anos, registro do show de 2013 no Teatro Rival, Rio de Janeiro, ao lado da banda Supergroove. Duas faixas da apresentação já foram disponibilizadas em vídeos e singles nas plataformas digitais (“Uma Chance” e “Deixe Sair o Suor”) e a intenção de Ronaldo, à frente da CopaSoul Produções, é lançar o show completo no próximo ano. “É o único registro ao vivo do Gerson, com participações do Carlos Dafé e da Lady Zu”.
Outro projeto para 2021 é o documentário Gerson King Combo — Viva a Black Music, dirigido por David Obadia e que inclui dez anos de filmagens de Gerson, além de entrevistas com Fernanda Abreu, Elza Soares, Marcelo D2 e vários outros artistas. “E temos algumas outras ideias para o futuro”.
Os passos de Gersão vêm de longe. Seu legado é imenso e o potencial transformador de sua música é eterno. Salve, Gerson King Combo! Nós te amamos, brother!
Agradecimentos especiais pelo apoio, conhecimento e generosidade de Giovana Suzin, Ronaldo Pereira, Carlos Dafé, Paulão Sakae Tahira, Ramiro Zwetsch e Marcelo Pinheiro.
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