Os caminhos do samba paulista

27/08/2020

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Lucas Marchezin é historiador, professor de história do ensino básico e educador popular. É mestre em Filosofia (2016) pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP). Além de apaixonado pelo samba, estudou no mestrado um pouco da história do samba paulistano contada pelos sambistas no disco “Plínio Marcos em prosa e samba: com Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro.”

Pirapora eh, Barueri, Pirapora eh, Barueri
Quem tem dinheiro vai, quem não tem que fique aí
Pirapora oh, Barueri, Pirapora oh, Barueri
Quem tem dinheiro vai, quem não tem que fique aí


Entre Pirapora e Barueri há a rodovia SP — 312, também conhecida por Estrada dos Romeiros. O nome é emblemático, pois trata-se de um dos trajetos percorridos por aqueles que desejam chegar à cidade para a festa de Bom Jesus no mês de Agosto. Por décadas, esse foi um dos caminhos percorridos por romeiros e romeiras vindos da cidade de São Paulo que, sem ter condições de se hospedar na cidade, ficavam nos barracões nos arredores de Pirapora, cedido pela igreja católica. Famílias inteiras se reuniam ali, famílias negras em sua maioria. Vinham, geralmente, de trem até Barueri, pela antiga estrada de ferro Sorocabana, hoje mais conhecida como linha 8 — Diamante da CPTM e de lá seguiam pela Estrada dos Romeiros. Ali, nos barracões, encontravam pessoas de outras cidades e mesmo de outros estados, como Minas Gerais.

Era também nesses barracões que aconteciam, em paralelo aos festejos no centro da cidade, rodas de jongo, batuque de umbigada e, principalmente, samba de bumbo. A festa nos barracões devia ser muito boa, a ponto de ficar gravada na memória dos que frequentavam esses espaços e que, tempos depois, se tornariam figuras centrais no universo do samba da cidade de São Paulo. Os versos que abrem esse texto são prova disso, pois trata-se de um samba de bumbo, gravado por Toniquinho Batuqueiro, em 1973, no disco Plínio Marcos e prosa e samba: com Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro.

De Pirapora a Barueri

A festa de Bom Jesus, aquela festa que acontecia nos barracões, reunia gente vinda de todo o canto para celebrá-la ao som do bumbo, do pandeiro e de outros instrumentos. Um espaço de encontro, de troca e de desafio entre os grupos — ou batalhões — que ali se alojavam. Seu Carlão do Peruche, ao relembrar sua infância, assim descreve as idas a Pirapora:

Eu já era levado pelos meus pais, década de 30, devia ter uns sete, oito anos. Eu me lembro que tava no primário. Ia em procissão, quem conhece Pirapora do Bom Jesus […] nós íamos, meu pai, minha mãe, me lavavam para a festa de Pirapora de Bom Jesus. […] O que acontecia? O que acontecia, minha mãe ia pra reza, ia para a igreja prestar homenagem aos santos. O que fazia meu pai? Meu pai, lá nas margens do Tietê tinha um barracão de madeira, grande […], meu pai me pegava e “vem menino, vamo comigo” […]. Me levava pro barracão onde a gente ia jongar […]. Pai do samba, com zabumba, reco-reco, tudo artesanal, tarol e etc., vamos jongar. Batida característica dos cordões de São Paulo. […]. Dividia-se as mulheres e as meninas de um lado. Nós, os homens e as crianças do outro lado. Pai do samba, um bumbão, chamava de zabumba grande, artesanal, todo artesanal. […]. Separava, o pai do samba ia tirar um ponto, uma cantiga. E dizia assim […] As mulheres vinha naquele movimento de vai e vem, vai e vem. E o pai do samba parava e cantava. Uma que vem até os dias de hoje, ainda vem. Dizia assim: “Em Tietê fizeram cadeia nova”. […] cantava-se duas vezes claro. Pra que? Pra plateia que estava lá que não soubesse aprender. “Em Tietê, fizeram cadeia nova/ Em Tietê, fizeram cadeia nova/ Mariazinha, coitadinha e criminosa/ Mariazinha, coitadinha e criminosa”. Aí, quando começava aquela batida forte […] ia aquele vai e vem. […] Cantava-se aquilo, cantava uma , duas, cinco, dez vezes. Tava cansando, aquela cantiga tava cansando? Que acontecia? Com todo respeito, se alguém quisesses cantar, que teria de fazer? Punha a mão no bumbo […] parava de tocar, to pedindo licença para poder cantar. Ai o pai do samba dizia assim: “Ea”, todo mundo respondia “Ea”. Por que esse grito de “Ea”? Eu pedi licença pra poder cantar e vocês todos vendo, toda plateia que tava lá, pessoa que tava jongando e prestava atenção em quem ia cantar […]. Um outro que fosse improvisar, qualquer coisa. Vinha, até o pai do samba, punha a mão no bumba e voltava a gritar “Ea”, então era outra pessoa que ia cantar […] “Em Pirapora, em Barueri/ Em Pirapora, em Barueri/ Quem tem dinheiro vai, quem não tem que fique aí/ Quem tem dinheiro vai, quem não tem que fique aí”. Assim era Pirapora do Bom Jesus.

A fala de Seu Carlão é rica em informações, por isso, vale a pena analisá-la com cuidado. O primeiro elemento que chama atenção, e mais óbvio, é o fato de ele cantar uma versão muito próxima da canção gravada por Toniquinho Batuqueiro. O segundo, diz respeito à estrutura das canções, que são todas dísticos: soma-se a isso a informação de que cada verso é cantado duas vezes. Essa estrutura e a forma de execução que Seu Carlão identifica é reproduzida na gravação de “De Pirapora a Barueri”. O terceiro está ligado a descrição que o sambista faz dos instrumentos utilizados — todos percussivos — e o papel de destaque que dá ao bumbo, o que condiz com o arranjo feito para o disco, em que foram utilizados apenas um surdo, um timbal e um pandeiro. Sendo o primeiro, o surdo, responsável por executar variações como o “bumbão” descrito por seu Carlão. Aquele que o toca é chamado, não por acaso, de “pai do samba”, dado a sua centralidade na condução da festa. Por fim, um detalhe, mas importante: Seu Carlão diz: “Pai do samba, com zabumba, reco-reco, tudo artesanal, tarol e etc […]. Batida característica dos cordões de São Paulo”.

Nascido em 1929, em Piracicaba, Toniquinho se tornou um dos maiores defensores da cultura popular e do samba | Foto: Reprodução/Meu Samba é Roots

Tradição e festa de Pirapora

Nesse ponto talvez valha a pena transformar uma afirmação feita anteriormente em questão: o que a festa de Pirapora do Bom Jesus tinha de tão especial a ponto de ficar marcada na memória dos sambistas de São Paulo? E a ela podemos acrescentar: qual o seu papel em sua formação? Assim como Seu Carlão do Peruche, Geraldo Filme — outra figura central do samba paulistano — também participou dos festejos ao Bom Jesus de Pirapora e em duas canções buscou retratar essa sua experiência: “Tradição e festa de Pirapora” e “Batuque de Pirapora”.

Tradição e festa de Pirapora, por Geraldo Filme | Fonte: Reprodução/Youtube

Batuque de Pirapora, por Geraldo Filme | Fonte: Reprodução/Youtube

A primeira canção foi composta como um samba-enredo da escola de samba Unidos do Peruche, para o carnaval de 1971, em parceria com B. Lobo e gravada pela primeira vez por Geraldo Filme em 1974, no mesmo disco da canção “Pirapora a Barueri”, cantada por Toniquinho Batuqueiro. Já a segunda, “Batuque de Pirapora” foi gravada no Programa Ensaio da TV Cultura, em 1992, e traz, na forma de canção, um relato pessoal de suas experiências em Pirapora quando ainda era menino.


“os sambas têm várias, e não apenas uma fonte e que elas advêm de diferentes práticas negras surgidas no Brasil, cuja base comum teria sido as culturas centro-africanas, oriundas da costa ocidental […]. também apelidados como bantu”.


Chama atenção, nos dois casos, a ênfase que Filme dá ao fato de que havia uma divisão interna da festa em dois espaços distintos: a festa oficial, realizada no centro da cidade, marcada pela religiosidade católica, pela banda tocando o dobrado, uma “festa de branco” como ele mesmo canta e a festa realizada nos barracões, na periferia da cidade, ao som dos batuques de terreiro, do samba de bumbo, realizada pelas famílias negras que ali se reuniam. Uma divisão calcada na intersecção das questões de classe e, principalmente, raciais que estruturam nossa sociedade. Em “Batuque de Pirapora”, por exemplo, tais questões ficam explícitas nos versos: “Ouviu-se a voz do festeiro, no meio da multidão/ Menino preto não sai, aqui nessa procissão”.

A tensão decorrentes dessa interdição impostas pelo festeiro é resolvida, dentro da letra da canção, com a decisão da mãe de Geraldo de abandonar a procissão, pedir licença ao santo pela promessa não cumprida e levar o menino para o barracão. É nesse ponto que talvez resida as respostas para as perguntas que fizemos. No barracão o menino foi “batizado no samba de Pirapora”, foi “iniciado” no “batuque de terreiro, samba de Piracicaba, Tietê e campineiro”. A festa de Pirapora de Bom Jesus — aquela festa que acontecia nos barracões — era especial porque conseguia reunir, em um mesmo espaço, pessoas que dominavam saberes, práticas e musicalidades negras diversas.

A cidade de Pirapora do Bom Jesus tem uma importância vital na formação do chamado samba de bumbo, identificado também como samba campineiro ou samba rural paulista | Foto: Reprodução/Acervo das Tradições

Como diz o músico, historiador e professor Salloma Salomão Jovino “os sambas têm várias, e não apenas uma fonte e que elas advêm de diferentes práticas negras surgidas no Brasil, cuja base comum teria sido as culturas centro-africanas, oriundas da costa ocidental […]. também apelidados como bantu”.² A festa de Pirapora reunia, como dissemos, algumas dessas fontes, desses saberes, dessas musicalidades negras, consideradas pelos sambistas paulistas como fundamentais para a sua constituição na capital. Portanto, batucar, dançar e conversar era uma forma não só de integração dos grupos familiares que ali estavam hospedados — vindos das cidades do interior e da capital -, mas também um mecanismo de apropriação de certa tradição oral, de apreensão e reafirmação de uma memória coletiva.


“[…] um processo contínuo de higienização étnica, de expropriação dos espaços ocupados pela população negra na região central da capital e que vai expulsando-a, em um primeiro momento, para os bairros da Barra Funda, Bexiga, Liberdade e baixada do Glicério e, em um segundo momento, para além da várzea do rio Tietê, para a região da Casa Verde, Cachoeirinha, Parque Peruche, entre outras.”


Caminhos percorridos

A partir do final da década de 1930 a igreja católica começou a impor a proibição dos sambas nos barracões e, anos depois, demoliu-os. Isso não pôs fim às romarias e aos sambas realizados em Pirapora, mas fez com que diminuísse até praticamente desaparecer nas décadas de 1960 e 1970. A festa nos barracões em Pirapora foi aos pouco ficando apenas nas memórias dos sambistas paulistanos que a frequentaram, mas isso não significou a perda das experiências ali vividas, dos conhecimentos e saberes que ali eram compartilhados. Na capital o samba seguiu outros caminhos, rearticulando espaços de encontro, de festas e aprendizados. Em uma entrevista ao Canal Preto, no YouTube, o sambista e sociólogo Tadeu Kaçula traz considerações muito importantes sobre esse processo.

Entrevista de Tadeu Kaçula ao Canal Preto

Ao descrever a história de sua família traz o papel central da festa, dos encontros, como parte de um processo de transmissão de saberes, como momento formativo. Processo esse que estende para além de sua experiência pessoal. Mas, vai além. Ao analisar a história da formação dos territórios negros em São Paulo, em especial da Zona Norte, aponta para a mesma dicotomia e segregação observadas e cantadas por Geraldo Filme ao se referir a Pirapora. Indica um processo contínuo de higienização étnica, de expropriação dos espaços ocupados pela população negra na região central da capital e que vai expulsando-a, em um primeiro momento, para os bairros da Barra Funda, Bexiga, Liberdade e baixada do Glicério e, em um segundo momento, para além da várzea do rio Tietê, para a região da Casa Verde, Cachoeirinha, Parque Peruche, entre outras.

Nesses espaços buscaram criar clubes, times de futebol de várzea e escolas de samba. Não é por acaso que Kaçula reforça a importância desses locais de sociabilidade, em especial das escolas de samba, como espaços de construção de conhecimento, saber e poder. Escolas que, como nos lembra, foram formadas por famílias negras, como a de Seu Carlão, um dos fundadores da Unidos do Peruche. A mesma escola que, em 1971, buscou levar para a avenida a história das festas de Pirapora de Bom Jesus. Nos caminhos percorridos pelo samba paulista as festas nos barracões podem até terem ficado na memória, mas os segredos e saberes ali aprendidos não se perderam, foram passados e ressignificados cotidianamente nas quadras de samba e nas comunidades de samba.

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