Por Luísa Pécora*
No início dos anos 1980, o diretor Walter Lima Jr. buscava a atriz ideal para interpretar Inocência, personagem-título do romance de Visconde de Taunay (1843-1899) que adaptaria para o cinema. Um dia, subindo a Rua Cosme Velho, no Rio de Janeiro, viu o ator Cláudio Marzo (1940-2015) passar dirigindo um jipe. Parou para cumprimentá-lo, e entre os passageiros deparou-se com Fernanda Torres, então com 16 anos. “Ali, sentada, eu vi a Inocência”, relembrou, em recente entrevista à rádio Metrópole.
Este encontro ao acaso significou o início da carreira cinematográfica de Fernanda Torres, hoje a atriz mais celebrada do País. Sua já enorme popularidade explodiu recentemente com Ainda Estou Aqui, filme dirigido por Walter Salles que levou mais de 3 milhões de brasileiros aos cinemas, foi premiado no Festival de Veneza, recebeu três indicações ao Oscar (melhor filme, melhor atriz e melhor filme internacional) e deu à Fernanda o Globo de Ouro de Melhor Atriz de drama, feito inédito para o Brasil.
Aos 59 anos, e com mais de 40 de carreira, Fernanda também encontrou o sucesso no teatro, na televisão e na literatura. Mas o cinema representou um papel especialmente importante em sua trajetória: ofereceu-lhe um caminho em direção a uma identidade artística própria, que extrapolasse a influência da mãe, Fernanda Montenegro, e do pai, Fernando Torres (1927-2008). “Naturalmente, no início, o cinema me escolheu. Fiz uns quatro filmes seguidos e eles não estavam no cinema, então senti que aquilo foi um lugar próprio”, disse, em 1992, no programa Roda Viva da TV Cultura.
Antes de chegar ao cinema, Fernanda já tinha experiência nos palcos e na televisão. Nas palavras de Lima Jr., era “de um lado uma menina muito informada, por ter vivido com a mãe, o pai, o teatro e tudo isso, mas, de outro lado, uma menina, que tinha o encanto desejável para a personagem”. Lançado em 1983 e ambientado no século 19, Inocência narra o romance proibido entre um médico e uma garota tratada como propriedade pelo pai e pelo fazendeiro a quem foi prometida em casamento.
Depois da sofrida Inocência, Fernanda interpretou a divertida Carula em A Marvada Carne (1985), já demonstrando versatilidade e talento para transitar entre drama e comédia. Carula é uma jovem interiorana determinada a se casar, que finalmente encontra um noivo na figura de Nhô Quim (Adilson Barros). Como o maior sonho de Quim é comer carne, Carula tenta atraí-lo com a falsa história de que seu pai matará um boi para a festa de casamento. Por este filme, dirigido por André Klotzel, Fernanda ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Gramado.
Troféu mais importante viria com Eu Sei que Vou te Amar (1986), de Arnaldo Jabor (1940-2022), no qual Fernanda e Thales Pan Chacon (1956-1997) interpretam um casal recém-separado que se reencontra para discutir a relação. O filme competiu no Festival de Cannes e rendeu o prêmio de melhor atriz à brasileira, num empate com a alemã Barbara Sukowa, protagonista de Rosa Luxemburgo (1986).
Fernanda ensaiou começar uma carreira internacional ao contracenar com Anthony Hopkins em A Guerra de um Homem (1991), produção britânico-mexicana dirigida por Sergio Toledo. Mas não demorou a perceber, como disse no Roda Viva, que “ainda ia ter de andar pra burro” antes de usufruir de qualquer coisa que o prêmio em Cannes pudesse lhe dar.
A caminhada incluiria papéis de destaque em O Que É Isso, Companheiro (1997), de Bruno Barreto, e Terra Estrangeira (1998), de Daniela Thomas e Walter Salles, obras emblemáticas da Retomada, como é conhecido o período de recuperação da produção nacional após a paralisação promovida pelo governo de Fernando Collor.
Adaptação do livro homônimo de Fernando Gabeira, O Que É Isso, Companheiro? foi indicado ao Oscar de Filme Internacional, apesar da polêmica quanto ao modo como representou a luta armada contra a ditadura. Já Terra Estrangeira – a primeira parceria de Fernanda e Salles – conta a história de Paco (Fernando Alves Pinto), um brasileiro que aceita levar um pacote misterioso a Portugal como forma de chegar à Espanha, onde nasceu sua mãe. Em Lisboa, ele se envolve com Alex (personagem de Fernanda) e conhece a difícil e por vezes perigosa situação dos imigrantes.
Com fotografia em preto e branco assinada por Walter Carvalho, o filme é permeado por imagens marcantes, como a do casal que se abraça em frente a um navio encalhado, metáfora do Brasil do início dos anos 1990, e a de Alex entoando os versos da canção “Vapor Barato”.
O CineSesc exibirá Terra Estrangeira em cópia restaurada em 4K, no feriado do dia 25 de janeiro, às 18h30. A sessão especial será gratuita, com retirada de ingressos a partir das 17h30 na bilheteria do cinema.
Se de início o cinema representou independência para Fernanda Torres, aos poucos virou espaço de colaboração não apenas com os pais, mas também o irmão, o cineasta Cláudio Torres, e o marido, Andrucha Waddington, que a dirigiu em Gêmeas (1999) e Casa de Areia (2005). O longa O Juízo, lançado em 2019, talvez seja a melhor representação da parceria familiar: tem roteiro de Fernanda, direção de Andrucha e, no elenco, o filho do casal, Joaquim, que contracena com a avó.
Nas últimas décadas, a comédia ocupou maior destaque na carreira audiovisual de Fernanda Torres, sobretudo com o sucesso das séries Tapas & Beijos (2011-2015) e Os Normais (2001-2003), esta última levada à telona em dois longas-metragens dirigidos por José Alvarenga Jr.. A atriz também protagonizou o divertido Saneamento Básico – O Filme (2007), de Jorge Furtado, no qual os moradores de um vilarejo gaúcho recorrem ao cinema para tentar obter um sistema de tratamento de esgoto.
Fernanda ainda foi uma das atrizes convidadas por Eduardo Coutinho (1933-2014) a encenar histórias reais narradas por outras mulheres no excelente Jogo de Cena (2005). No documentário, a atriz falou sobre a dificuldade em interpretar o relato de uma jovem sobre a maternidade precoce: “Com um personagem fictício, se você atinge um nível medíocre, pode até ficar nele, porque ele é da sua medida. Com um personagem real, a realidade um pouco esfrega na sua cara onde você poderia estar e não chegou.”
É curioso rever esta passagem no momento em que Fernanda é celebrada pelo retrato de Eunice Paiva (1929-2018), um dos símbolos da luta contra a ditadura militar no Brasil. Em atuação contida e sem grandes arroubos de emoção, a atriz buscou ser fiel ao comportamento de uma mulher que “enfrentou uma tragédia, mas evitou o melodrama”, como definiu durante o Festival de Veneza.
Não se sabe se a torcida por Ainda Estou Aqui nas premiações estrangeiras se traduzirá em maior valorização do audiovisual brasileiro, abalado pelo descaso e ataques políticos. Ao mesmo tempo, não é preciso esperar pelo Oscar para se sentir convidado a conhecer melhor a carreira de Fernanda Torres e, por consequência, o cinema nacional.
* Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.