Leia a edição de MARÇO/25 da Revista E na íntegra
Por tatiana nascimento
Ilustrações Daisy Serena
1. desistir do amor
a gente pode até desist
ir do amor, mas
o amor não desiste da gente
como bem me lembrou um
pé de ipê florescido
fora do tempo
derramando pérolas
de pipoca macia
em meu des
caminho
desatento
Atotô, papai,
por me contar
que o amor cura
qualquer machucado
y chove suas pétalas
quando menos
esperado
(vem temporal
aí, sinto cheiro
de molhado n
esse ar seco
do cerrado)
2. minha filha faz quatro meses, y há 98 dias não chovia
a cria tentou esperar acordada
a primeira chuva de sua
primavera primeira
(4 meses, já, aquecendo
meus 40 verões,
mesmo vinda
no inverno)
pegou no peito, largou
pus no colo, choveu
choveu choveu
choveu meu ombro
com suas lagriminhas
de mar longe y salgado
aí pegou no peito de novo,
sorriu de leve, dormiu
meio que magicamente
no mesmo instante
a primeira cigarra
acordou de seu
sonho velho (quase
soterrado, tanto asfalto)
cantou cantou cantou
y o céu, pardacento y seco,
atendeu seu
chamado y chorou
chorou chorou, brindando
todo o cerrado.
amanhã,
quando minha filha
acordar (de seus sonhos
de gente que ainda
só fala o idioma
das mil línguin
sones do
amor),
o cheiro do mato seco
vermelho em pó
vai saber
a verde molhado
um sonho, também,
feito
os da cigarra
os dela
o meu:
(que) o sonho de minha filha
acorde sempre a primavera
3. o amor causa poemas bonitos
mas não interrompe bombardeios
não apaga queimadas
não demarca terras
de povos que
cuidam da terra
desde seus mundos primeiros
não dissolve o plástico fundando
ilhas de morte em meio à fonte da vida
— a fonte das fontes
da vida, mãe
dos filhos-peixe mãe
de todos as cabeças, dos Orís —
o amor
causa poemas bonitos
mas não consegue impedir
que mais uma nascente seja
cimentada, a inauguração
gentrificada de um
prédio
espelhado
onde alados
perfeitos
colidem y morrem
nem suspender
agrotóxico
ordem de despejo
patologização da disforia
todas as violações
contra velhos
flores
criancinhas
y cachorros
o amor
é bem interessante
mas não parece forte o bastante
pra mudar o mundo;
e as pessoas que amam
a ponto de querer
mudar o mundo
não têm sido
fortes o bastante
contra aqueles poderes
que interrompem
o amor
suas causas
tudo que o amor
causa. o amor causa
poemas bonitos,
eu sei.
mas poemas bonitos
podem mudar
o jeito tão
feio
que parte grande
de nossa espécie tem
de ocupar esse mundão lindo ao
eus-dará?
tatiana nascimento, não binária, brasiliense, mãe da Irê, é cantora, compositora, escritora, tradutora, editora na padê editorial – livros pretes/lgbtqia+. Tem 17 livros publicados, finalista do Jabuti de Poesia 2022 com o livro palavra preta. Vencedora do prêmio Pallas de 2024 com o romance água de maré. Idealizadora e cofundadora do primeiro slam das minas no Brasil, em Brasília (DF), em 2015.
Daisy Serena é artista visual, fotógrafa e poeta. Autora de Tautologias (Padê Editorial, 2016), tem poemas publicados em revistas e páginas digitais como Escamandro, Chão da Feira e Encontros com a Nova Literatura Brasileira Contemporânea do Itaú Cultural. Participou das exposições coletivas FotoPreta (2018 e 2020) com curadoria do coletivo Afrotometria; Ocupação Olhares Inspirados: Raquel Trindade, Rainha Cabinda (Sesc 24 de Maio, 2021), entre outras.
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