A bossa do samba ou A recriação – radical – do samba

04/04/2023

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Aqui estão uma vez mais aquelas coisas que nos deleitam e ensinam a inteligência e a sensibilidade, como “uma fonte inesgotável de prazer e aprendizado”, como disse Vinicius de Moraes, sempre que voltamos a ouvir João Gilberto: a ginga das sílabas e das notas, da conjugação das frases poéticas com as melódicas num todo coeso e único, na voz, com seus nuances timbrísticos e suas inovações rítmicas, sentidas simultaneamente no violão; o conjunto, violão e voz, soando com um balanço e um suingue inconfundivelmente próprios e envolventes.

Mais do que bossa nova, trata-se de samba, há muito sabemos: em relação ao gênero que inventou e propiciou, João está “suspenso pairando sobre e fora dela”, escreveu, há já quase quarenta anos, meu parceiro José Miguel Wisnik. E samba muito mais do que jazz: o gênero, uma das maravilhas inventadas pelo gênio negro norte-americano há cerca de cem anos (como amar música sem amar jazz?), entra na formação, na forma e na fórmula criada pelo “bruxo de Juazeiro” – como Caetano começa, chamando-o, uma canção chamada “A Bossa Nova é foda” – como uma música que lhe traz sonoridades outras com as quais ele se instrumentaliza para promover uma releitura pessoalíssima da tradição musical brasileira. São elementos de que, junto a outros, de nossa tradição, ele se serve para realizar a recriação do samba; para reencontrar o gingado e a readquirir o domínio do ritmo complexo do samba. A bossa, enfim, do samba. A cujo espírito ele dá uma interpretação a mais original e profunda.

Pondo o “velho” em nova perspectiva e promovendo um corte seletivo rigoroso, João escolheu seus predecessores, aos quais se religou, filiando-se assim a uma linhagem de nobreza em que encontrou – e encontramos – aquilo que era e é e será grande e luminoso na tradição, isto é, dos anos trinta aos cinquenta do século passado: o período dos inventores (no sentido mais literal, não no poundiano, do termo) originais e originários da música popular brasileira. E que reencontramos aqui, nas gravações deste álbum, na revisita a repertórios de intérpretes como Orlando Silva e Ciro Monteiro e de compositores como Ary Barroso e Dorival Caymmi, além de Wilson Baptista, Herivelto Martins… Orlando e Caymmi, um carioca e um baiano, respectivamente, têm um lugar privilegiado nesse paideuma (aqui, sim, na acepção poundiana) joãogilbertiano. O primeiro (intérprete que lançou “Aos pés da cruz”, “Curare” e “Preconceito”, aqui relidas de novo por João) foi a sua maior referência como cantor, quem o inspirou e o estimulou a criar um modo de cantar e tocar samba. E o segundo, o autor de “Rosa morena” (também presente na presente obra), “por ele [João] eleita como tema para a construção do estilo que veio a se chamar de bossa nova”, de acordo com Caetano, para quem “a limpidez e a enxutez de João foram aprendidas com Caymmi; vêm dele”.

A limpidez e a enxutez são expressões da radicalidade ímpar, do rigor raro de João: pouquíssimos artistas são tão rigorosos e radicais, dentre nossos contemporâneos só se identificando um assim, ao meu ver, e atuando no campo erudito experimental: Augusto de Campos, o maior poeta vivo. Augusto, aliás, numa de suas intervenções críticas no terreno da música popular, no livro “Balanço da Bossa”, de 1968, sugeriu uma sutil associação entre João e ninguém menos que Anton Webern, o mais radical, das peças mais límpidas e enxutas, do trio de compositores que inventaram o dodecafonismo, no século passado. A analogia – simbolizada no texto em questão por uma sílaba: “ber”, no meio de Webern e Gilberto – é a mesma que se pode estabelecer entre o próprio Augusto e João (ambos do mesmo ano de nascimento, 1931, por sinal), em função de duas características comuns e caras a ambas as obras, embora de artistas que operam em planos e níveis distintos: a síntese e a redução drásticas que marcam seus fazeres, suas criações (e recriações, se levarmos em conta que tanto um, por sua admirável, maravilhosa obra de tradução para o português de poesia universal, quanto o outro, por suas releituras de canções do passado, não fizeram senão re-criar, em termos concretistas).

Em relação às gravações das canções aqui incluídas já feitas por outros intérpretes, redescobrimos neste “relicário” aquelas pequenas mudanças que contribuem para a grande diferença representada pelas interpretações de João. Neste sentido, ao compararmos estas com as anteriores, particularmente a primeira de cada uma das mesmas canções, é interessante observar os cortes e as trocas de palavras que ele aplica às letras originais (essas supressões e substituições, que mereceriam uma abordagem à parte, são apontadas nas transcrições das letras neste encarte, com sua explicação), pondo em prática um projeto de dissecação, contenção e economia, que cria espaços e retira excessos, elimina repetições e atenua dramatizações, além de acrescentar lances musicais, intervindo assim, e recriando as próprias composições (alheias), das quais o intérprete se torna, de certa forma, coautor.

Em “Saudade da Bahia”, de Caymmi, por exemplo, ele não canta as interjeições “ah” que abrem os versos iniciais das duas primeiras partes do samba (e na rara vez que o faz, numa das repetições da canção inteira, ele pronuncia “ai”). No chorinho “Carinhoso”, de Pixinguinha e Braguinha, omite os quatro primeiros sucessivos “véns” do famoso dístico “Vem, vem, vem, vem, / Vem sentir o calor” (um decassílabo imperfeito), instaurando um vazio espacial no qual flutuamos e insinuando, à nossa audição apegada à memória afetiva das palavras silenciadas, que o violão é que, na verdade, “faz” cada “vem” que a voz não emite. Em “Vivo sonhando”, de Tom Jobim, elide o segundo “não vindo” do verso “Você não vindo, não vindo, a vida tem fim”. Em “Eu sei que vou te amar”, de Tom e Vinicius, mais extremadamente, deixa de cantar a expressão que nomeia a canção e que, depois de abri-la, é repetida três vezes logo a seguir. Tampouco repete a palavra-título que começa e reaparece, na versão original do samba, pouco depois, em “Louco”, de Wilson Baptista e Henrique de Almeida. Assim como em “Ave Maria no morro”, de Herivelto Martins, suprime “Pois” e “Já” das frases “Pois quem mora lá no morro / Já vive pertinho do céu”.

O repertório aqui coligido demonstra como João Gilberto é antenado com a vida e o sentimento das pessoas simples, deixando entrever como ele, sutil mas agudamente, se liga nas questões social e racial brasileiras. As canções que escolhia para cantar, e a forma como o fazia, dão conta de um cantor altamente refinado e afinado com a sensibilidade popular, que ele não desdenhava e com a qual se identificava de modo orgânico e natural por sua própria origem de homem do povo – e portanto comum, por mais incomum que tenha sido. Reconheça-se a atenção que dava para a temática racial, por exemplo, em “Isto aqui o que é”, “Pra que discutir com madame”, “Curare”, as três trazendo em seus versos a palavra “raça” (em “Curare” também ouvimos “nega neguinha” e “gente de cor”), e no antológico samba intitulado simplesmente “Preconceito” (“Você diz a toda gente que eu sou moreno demais”).

“Pra que discutir com madame” evidencia uma crítica à classe privilegiada; cantar e tocar esse samba era uma forma de escarnecer, com fina ironia, da elite brasileira, o que indiciava percepção da nossa perversa estratificação social. Era ao mesmo tempo um modo de fazer o elogio do gênero popular com um verso particularmente significativo no momento histórico presente: “O samba brasileiro, democrata, brasileiro na batata, é que tem valor”. O samba é cantado ainda em “Rei sem coroa” (“O samba é minha nobreza”), e a cultura popular, louvada, em “Lá vem a baiana”. Assim como o violão, o instrumento por excelência em que os sambas são compostos, em “Violão amigo” e “A primeira vez” – ambos da grande dupla de compositores da fase heroica do gênero formada pelos cariocas Bide e Marçal. Ambos, igualmente, exemplos de canções-lamentos, tão características do sentimento do povo e por isso mesmo típicas do cancioneiro brasileiro, e que João traduz em seu trabalho.

Sob este aspecto, são exemplares peças clássicas como “Ave Maria” e “Ave Maria no morro”, mas também “A valsa de quem não tem amor”, uma dessas pérolas que ele pescava e nos dava – e segue nos dando, como prova a presente obra –, modelares na sua expressão sentimental da simplicidade da gente do país. Criada por um excelente compositor, estimado por Tom Jobim, que morreu precocemente, aos 35 anos, Custódio Mesquita e por seu parceiro Evaldo Rui, a canção é um pequeno primor na descrição singela que faz da condição tristíssima de solidão e carência amorosa de alguém. Numa letra de apenas treze versos relativamente curtos, ocorrem dez fonemas com o som de “im”, como que exprimindo, de forma sub-reptícia, no plano sonoro, o que está entronizado, e é sentido com intensidade, no interior profundo do protagonista. O auge disto se dá justamente no trecho final:

nessa IMensa solidão
a mINha confissão
ecoa tristEMente
cantarei sozINho
IMerso em mINha dor
a valsa de quem não tem amor

Um punhado de canções que podemos classificar de tristes compõe de fato o repertório reunido neste álbum, ao lado daqueles clássicos da bossa nova que se notabilizaram pela novidade da introdução de um sentimento e uma atmosfera de felicidade predominando no tratamento da temática amorosa. No entanto, mesmo nessas canções com traços melancólicos, nelas e como que acima delas, paira e prevalece ao mesmo tempo, suprema, uma alegria que é a da beleza que assinala as suas execuções: a alegria da grande arte. Aqui me ocorre a definição curta e fina dada por aquele outro radical das vanguardas do século vinte, outro João, outro cultor de espaços e de silêncios, o músico-poeta norte-americano John Cage: “Art is a happy thing”. A arte de nosso João é assim: uma coisa alegre – o que tem a ver com as ideias de promessa de felicidade e de prazer para sempre, como respectivamente Stendhal e Keats entendiam beleza. Reouvir João agora, aqui, nos dá a chance de renovarmos essa percepção fundamental pra seguirmos – ou voltarmos a seguir – vivendo com a necessária esperança. Isto tem relação, sim, com sermos – e voltarmos a nos orgulhar de ser – brasileiros; com reafirmarmos o que existe de luminoso em nós, na brasilidade, neste momento de nossa história, de restabelecimento do valor da arte e da cultura no país, o que equivale a dizer: de nossa alma.


Carlos Rennó, letrista. Assistiu ao primeiro e ao último dos três shows de João Gilberto no Sesc Vila Mariana em abril de 1998, do qual se originou a gravação do álbum Relicário: João Gilberto (Ao vivo no Sesc 1998).


Sobre Relicário: João Gilberto (Ao vivo no Sesc 1998), leia também:


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